quinta-feira, 20 de novembro de 2014

MISTÉRIOS, PAIXÕES E MACUMBARIA

Perto dali. Quatro da tarde. O vento mudara seu curso. Soprava com mais força. Com mais vontade. Eu ouvia Summertime enquanto pressionava com avidez o meu copo de cerveja para que ele não se afastasse de mim. As folhas desprendiam-se das árvores e rodopiavam alegres no ar. Havia vento e muita poeira. Transeuntes caminhavam com dificuldades pela Getúlio Vargas. O vento os empurrava para trás. Impedia-os de avançar com suas vidinhas simples. Olhei uma garota. Tinha um belo corpo: quadris, pernocas e peitinhos perfeitos. Tive a impressão de conhecê-la. Ela caminhava contra o vento. E como em um filme antigo e em preto e branco, o seu guarda-chuva fora arrancado de suas mãos, deu quatro ou cinco piruetas no ar e voou para longe dela. Ela correu atrás, sorrindo. Acompanhava a cena ouvindo Summertime. O vento maroto parecia brincar com ela. Uma brincadeira maliciosa. Ele levantara a saia dela. Vi sua calcinha cavada aparecer. Não lembro da cor, mas isto não tem importância. A pecinha realçava-lhe perfeitamente as nádegas morenas e bem cheias. A forma. O recheio. É tudo de que me lembro com fuligens nos olhos. A garota levou a mão á boca. Dava risadas no vento. Senti uma ereção boa, ali, sentado, tomando minha cerveja e ouvindo Janis Joplin. Um cara comprido, logo atrás, deixou as sacolas de compras e foi ao seu socorro. Resgatou o guarda-chuva dela. Abraçaram-se dando risadas. Fui lembrando deles aos poucos. Era o casal da festa Rave. De uns meses atrás. O mesmo casal da urina e das fezes. Eles seguiram andando. Dobraram a esqüina da Getúlio e sumiram. O céu escureceu de verdade. Mesas e cadeiras voaram pra longe.  Começaram a cair pingos grossos de um céu furioso. Resolvi entrar. Me juntei aos outros caras que bebiam no balcão do Cinco. Pedi outra bebida. Vento e poeira e Summertime ainda tocando. O nome da garota era Érica. Havia lembrado. E por alguma razão achei que ainda tivesse o cartão dela na carteira. Dei uma boa olhada. Necas. O Cinco me serviu uma cerveja e veio com a de sempre:

“Grande Mário Augusto! Agora diz aí pro Delegado Marcolino, Mário Augusto, o que você acha do cara que dá o rabo.”

“Maravilhoso.” Respondi. O Cinco caiu na risada. Uns outros bebuns também. Estavam acostumados com a panacéia. O Delegado Marcolino não disse nada. Mantinha-se ereto e sério demais. Não que tivesse ficado chateado com o que ouvira. Mas porque aquele era o seu jeito de ser e de estar sempre ali, postado, naquele balcão. Usava um chapéu panamenho e sentava-se bem ao centro, como um ditame ou um rei.  Ao contrário dos outros, o Delegado Marcolino bebia um uísque do bom. Um júnior, do outro lado do balcão, mirou na minha direção:

“Então me responda, Mário Augusto, qual é o maior escritor vivo da atualidade?” Olhei pra ele antes de tomar uma golada da minha cerveja. Nunca tinha visto aquele júnior antes:

“Dostoievsky!” Respondi-lhe.

“Não, esse não vale. Quero um atual.”

“Este é atual.” Disse.

“Quero um vivo!”

“Não há.”

“Deixem de bobagens. Shakespeare é o melhor. O mais atual de todos.” Disse o Delegado Marcolino com sua voz de trovão. Não havia como sair dali. A chuva desabara de vez.

“Aí conhece, não é doutor?” Disse o Cinco puxando-lhe bem o saco. Era sua especialidade puxar sacos de juízes e de delegados.  

“Ninguém foi mais profundo na alma humana do que Shakespeare, meus filhos!” Confirmou o Delegado Marcolino. Tinha um timbre perfeito. A voz profética e altiva de um Nelson Gonçalves.

“Uhuuu...” Vibrou o júnior do outro lado. “O que me diz agora hein, Mário Augusto?”

“Não tenho muito saco pra Shakespeare.” É, eu na verdade não tinha mesmo não. Na faculdade tentaram me empurrar Shakespeare, mas eu fugia para o Bar do Cabeludo. Lá eu afogava minhas tragédias em copos de cerveja. Você passa a vida toda com as pessoas tentando lhe dizer como você deve agir, ler ou ouvir as músicas certas. Eu já estava ficando de saco cheio daquilo.

“Vocês precisam ler Shakespeare.” Disse o Delegado Marcolino segurando o seu chapéu para que ele não voasse com o vento. E depois, continuou: “Shakespeare é o melhor. Todos são capazes de dominar a dor, exceto quem a sente. Está lá em Hamlet. Em Romeu e Julieta. A escolha da vida e a certeza dos sofrimentos. Leiam Shakespeare, meus filhos. Brandiu o Delegado com o gogó inflado.

“Ouça o que o delegado diz, Mário Augusto.” Disse o júnior.

Aí começou um barulho de vozes. Ninguém mais se entendia. Elas se entrecortavam, misturando-se com o ruído da chuva brava. Um pé d´água. Como se não bastasse, o júnior veio sentar-se ao meu lado. Os júniors são uma espécie de meus demônios mirins. E eles se espalham. São como lepras  ou como alguma enfermidade desse século.

“Você Mário Augusto, se esgueira como um animal pantaneiro. Quando é que vai mostrar a sua cara?”

“Eu só quero terminar minha cerveja.”  

 Com o júnior me enchendo o saco, e o Delegado Marcolino com sua língua mais solta - tentando convencer á todos que Shakespeare era o melhor caminho - me vi na obrigação de abandonar o lugar. Dei as costas para a horda e escapei de mansinho entrando no meu carro que estava estacionado logo á frente. Dirigi de volta sob a chuva grossa. Os parabrisas dançavam. Iam e vinham fazendo um ruído patético. A estrada de volta é sempre mais escura e sinuosa. Eu sobrevivia a ela. Olhei pela janela do carro as ruas vazias. Os semáforos apagados. Nenhuma puta pelas esquinas. Uma vez em casa, coloquei um blues melancólico pra tocar, abri as janelas e sentei pra escrever. Não me veio nada á cabeça. Olhei a solidão do lago, mergulhado no escuro. Blues, frio, chuva e solidão. Corria um leve e agradável vento. Me senti só. E não é bom que um homem esteja só. Está lá nas escrituras sagradas. Procurei pelos meus entulhos, o cartão de Érica. Eu havia guardado em algum lugar. Fiquei ali procurando. Fui encontrá-lo dentro de um ensaio de Spinosa. Sentei á beira da cama e olhei o cartão com telefone e endereço. Imaginei Érica. O vento levantando sua saia. O seu sorriso. Sua genitália beiruda. Vermelha e beiruda. Minha língua deslizando ali. Mordiscando-lhe a pelezinha suave e macia, como tinha que ser. Ah, como eu precisava meter minha trolha ali. Quem sabe eu não teria uma chance com Érica. Iria dar um tempo com as putas. Necessitava de uma aventura nova. De um maldito afeto para seguir enganando a mim mesmo. Guardei o cartão na carteira. Fui ao banheiro lavar meu rosto. Lá estava eu outra vez de frente ao espelho. Olhava minha velhice corrosiva. Minha vida ao avesso. Olhos cerrados a remoer a solidão como ela deve ser necessariamente remoída. Olhar-se no espelho é sempre uma boa maneira de resumir-se. Segui me olhando. Este outro sem rumo e do avesso ancorado dentro de mim. Depois voltei para a sala, tomei o trago que restava do vinho na garrafa, e tentei voltar a escrever...    


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O VELÓRIO DO RAIMUNDO PERFUMADO - OU O PRIMEIRO BEIJO

I

Chovia no velório de Raimundo Perfumado. O velório mais triste e mais estranho de que me lembro. Foi aí então que ela me apareceu...

II

   A chuva espocava lamuriante no lajedo da capelinha da paróquia: o som oco, duro, perturbador e apaixonante da chuva. Eu segurava fortemente nas mãos de minha mãe que era pra não deixá-la chorar. Mas o seu semblante era duro e firme enquanto olhávamos para aquele esquife largado e sofrido no centro do salão. Lembro de seus óculos escuros; o lenço colorido e elegante formando um discreto xale em volta de seu pescoço materno e delicado. (Que Deus me conserve a lembrança desta imagem para sempre!) Aonde quer que ela fosse ou estivesse, havia sempre de espalhar o seu charme, sua coragem, seu aroma de amor e sua bondade humana. Aí, uma senhorinha se aproximou de nós. Chamava-se, Dona Betinha. Carregava seus quase oitenta e poucos anos nas costas encurvadas pelo tempo. Naquele momento de dor careada, eu lembro o que ela disse para minha mãe:

  “Você, Eunice, foi mãe e pai desse menino! Eu acompanhei a tua aflição, minha filha. Mas ele agora não sofre mais. Foi daqui pro colo de Deus! Já o irmão do Zé Arigó – este infeliz - já não posso dizer o mesmo, pois nem no inferno vai encontrar descanso...” Foi o que nos disse Dona Betinha com sua voz tremulada de reticências. E a palavra, Inferno, eu fiquei pensando bastante nela, olhando pra cruz de Jesus dependurada na parede. Não resisti e cochichei um pouco alto no ouvido de minha mãe, que amavelmente inclinou-se para ouvir minha pergunta:

  “Será que o inferno existe mesmo, mãe?”

  “Que besteira, Augusto!” Dona Betinha que ouviu minha pergunta alta demais tratou de explicar:

 “É claro que existe, meu filho. E lá só há sofrimento e dor. O inferno é o fim da linha para os danados.”
  Foi nesse instante de medo infantil que lancei a vista assombrada na direção da porta da capelinha e vi entrar a Dulcimar. Meus olhos e meu coração logo se encheram de júbilo e  encantamento. Dulce (como era conhecida na minha rua) era cinco anos mais velha que eu, e morava em uma estância pobrezinha atrás de nossa casa. Tinha cabelos crespos de sarará; os olhos bem negros, as coxas grossas e os seios volumosos que mais pareciam duas maçãs do amor. Neste dia de dor velórica, ela estava linda e simples em seu vestidinho de dançar quadrilha. Ela se aproximou do esquife conduzindo a vozinha dela pelas mãos. Meu coração começava a batucar um pouquinho mais alegre sempre quando eu via a Dulce, e ela me sorria. O seu sorriso tinha um encanto sonoro e chamativo de uma flauta doce. Nesse dia ela me sorriu do outro lado do caixão. Dulce me provocava a pecar. Aqueles seus peitões de maçã do amor; o seu corpo de curvas todo ajustadinho no vestidinho colado e florido. O cheiro discreto que emanava de sua pele. Dulce era o meu medo. Meu pecado. Minha libertação. Enfim, meus arroubos apaixonantes de menino...  

  III

 “Teu filho tá ficando rapaz, hein, Eunice? Lembro dele zangado e tristinho querendo comer as hóstias. Tu ainda te lembra, meu filho?”
Voltei a mim. Devia ter os meus oito ou nove anos de idade, só que tinha vergonha em lembrar. Eu era uma espécie de papa-hóstia mirim. Chegava sempre cedo na Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, na companhia de minha mãe, só pra comer das bolachinhas brancas que curiosamente tinham gosto de papel e nada. Aquilo havia se tornado um ritual sagrado de todos os domingos. E quem corajosamente pegava as hóstias para mim - quando elas ainda se achavam na sacristia - guardadas dentro de um recipiente dourado, antes do coroinha levá-las para o altar - era a Dona Betinha:

  “E aí de mim se não conseguisse as bolachinhas, ele cruzava os braços emburrado, ameaçando fazer um escarcéu na Igreja, não era Augusto?”

 “Era mesmo, meu filho?” Perguntou com denguice, minha mãe, afastando para trás as mechas de meus cabelos morenos, junto com as picadas da dor. Encolhia-me todo com vergonha. Cristo já me olhava desconfiado da cruz.
  Vi quando Dulce afastou-se um pouco de sua vó e caminhou com charme ondulante até a quadra que ficava anexa á Igreja. Não esqueço mais a imagem de seus dedos finos e longos deslizando chamativos pelas paredes azulejadas da capela, e também daquele seu olhar e sorriso penetrantes que me convidavam a segui-la. Enfeitiçado que estava, evidente que fui. Pus-me da porta da sacristia observando em silencio os movimentos graciosos dela que iam e vinham sobre um balanço abandonado, nos fundos da quadra. A chuva agora caía leve como sementinhas vindas do céu. Era tarde demais para esquivar-me. Seus olhos entraram nos meus, como ondas elétricas e copulativas. Chamou-me de lá com o dedo fazendo uma curva:

 “Vem cá, vem, Augusto!” Me aproximei dela sobre o balanço. Suas coxas juntinhas e grossas eram bem mais lindas de perto. Pediu para que eu a empurrasse. Posicionei-me por trás dela:

 “Não por aí, seu bobo, pela frente mesmo!” Atrapalhado, não sabia onde botar minhas mãos. Desci-as levemente sobre as suas coxas grossas e nuas.  Agarrei-as firme e a impulsionei para o alto, largando-a no ar.  

 “Com mais força, Augusto!” Pedia-me. Obedeci. O seu corpo foi mais longe. Mal sentia as pinicadas da chuva. “Mais força, Augusto! Cuida!” Implorava-me, sorrindo. Divertia-se. Minhas mãos tremidas sobre sua cintura.  A calcinha à amostra. Branca. Discreta. Aparecendo lá no fundo. O balanço a ir e a vir. Cada vez mais para o alto. A chuva molhando meu sorriso. O dela também. Não era mais uma tarde triste e velórica. Mais uma tarde alegre, doce e sedutora. Uma tarde de sensações Elétricas por todo meu corpo.

 “Chega, vai! Pára! Pára, Augusto!” Fui diminuindo a velocidade. Ela pousou á minha frente como um pássaro lindo. Seus olhos negros. O corpo provocador. Seu cheiro natural. Ficamos assim, nos olhando de perto. Aí ela disse:

 “Tá triste, não é Augusto?”

 “Um pouco! Mais pela minha mãe.”

 “Fica assim, não. Fecha os olhos!”

 “Han?”

 “Fecha os olhos!”

 “Mas pra quê?”

 ”Fecha logo!”

  Fechei. Fiquei um tempo sentindo a chuva doce deslizando em meu rosto. Depois, o toque suave dos lábios de Dulce nos meus. Sua língua morna penetrando devagar na minha boca, vasculhando todo o seu interior. Foi como uma eternidade. Não sei definir a sensação sentida. Meu coração batendo acelerado. O gosto daquele beijo. O primeiro de minha vida. Doce. Suave. Inesquecível. Como o piano do Richard Clayderman que eu ouvia. Poderia ficar aqui remoendo mais lembranças, reiventando coisas, mas os lábios de Dulce desgrudaram-se dos meus, e foram assim, se afastando para longe de mim como uma imagem pura e santa que se recolhe ruborizada para trás do espelho intransponível da alma.

  Não falamos nada um para o outro. Não havia o que dizer. Rimos apenas. Ela, mais que eu.  Depois – como uma mãe zelosa e preocupada - removeu o beijo que ficou pintado em minha boca. Pegou em minha mão e caminhamos com nossos dedos entrelaçados de volta à capelinha...     

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

O RETORNO DA MOSCA DE OLHOS VERMELHOS


    A MOSCA DE OLHOS VERMELHOS voltou a freqüentar minha casa. Como não posso alojá-lo dentro, têm-se virado com uma rede na varanda, ou mesmo dormido no banheiro de fora sobre um colchonete velho. Tenho lá minhas razões para não acolhê-lo dentro; deixá-lo dormir no sofá. E ademais, minha esposa não aprovaria, pois ela, assim como eu, tem lá suas razões.
   A Mosca nos assegurou que é por pouco tempo, até conseguir alugar um quarto. Voltou a trabalhar como Chapeiro no Bar do Cinco Estrela. Reclama que o dono do estabelecimento lhe paga muito mal pelo trabalho que faz. Além de chapeiro, ele encarrega-se de fazer outros serviços como limpeza e arrumação do Bar. E ainda por cima – ele me diz – tem que aturar os fregueses insuportáveis e mal humorados. A Mosca sempre tem uma história interessante para me contar. Outro dia, enquanto tomávamos café, contou-me sobre um sujeito que lhe pediu que fizesse um sanduíche urgente, no que ele explicou que o pedido teria que ser feito primeiramente ao patrão, e que este o ordenaria a fazer. As coisas funcionavam exatamente assim. Foi bem claro. Um outro sujeito que neste dia estava ao lado deste cliente – e que porventura – já havia certamente bebido todas – gritou-lhe do balcão: “Vá logo fazer a merda deste sanduíche, rapaz!” A Mosca olhou para o sujeito sem muito acreditar naquela descompostura – e olha que o Mosca, apesar de sua finura e estatura baixa, não é de levar desaforo para casa, não, e que portanto, reagiu: “Como é que é? Quem é você para falar desse jeito comigo, seu merda! Vá cuidar da sua vida! Aqui eu só recebo ordens de uma pessoa que é o proprietário desta casa, não de um merda como você que mal conheço.” O sujeito então levantou-se com o propósito de desferir-lhes alguns socos, mas os bebuns o  cercaram e o impediram. A Mosca foi até a cozinha e pegou uma faca de cortar carne e disse-lhe mais algumas coisas: “Pois então venha! Venha agora, seu merda!” A Mosca contou-me que o sujeito valente olhou para a ponta do seu facão que brilhava, e por conta disso, resolveu mudar
de idéia. E o bar voltou a sua normalidade.
No entanto, a Mosca decidiu que não ficaria mais ali, livrando-se do seu avental e da sua toca de cozinheiro. Mas o Cinco - quase chorando – o impediu de ir embora.   E ainda prometeu que aumentaria seu salário de R$ 35, para R$ 40,00.  Acabou convencendo-lhe de ficar. “Cara, não sei por quanto tempo vou aguentar aquilo ali, não, Mário. Ficarei só mais este mês. Tratarei de economizar uma grana e me mandar desta cidade, deste país.”
Terminamos o nosso café. Ele levantou-se e foi olhar discretamente na minha estante de livros. Senti temeroso quando ele folheou alguns deles. Sempre quando ele se aproxima da minha estante de livros, alguns deles desaparecem. Eu tinha que ficar sempre de olho em seus movimentos pela casa. A Mosca é como um ilusionista barato que me engana os olhos e às vezes faz chorar meu coração. Mas neste dia ele devolveu o livro à estante e me disse: “Me deixa ficar só alguns dias morando aí no teu banheiro até arranjar um lugar decente pra ficar. Até eu me equilibrar de novo. Eu sei que essa vida somos nós que escolhemos. Um dia, quem sabe, não acerto viver decentemente.”

Disse-lhe afinal que podia ficar morando lá no banheiro até ele se ajeitar. Agradeceu-me com um leve abraço. Ofereceu-me um peguinha do seu barato. Fumamos na sala, em silêncio. Chegamos até rir de nada olhando a fumaça que subia devagar... Depois, ajudou-me a lavar as xícaras e os pratos de ontem, e recolheu-se ao banheiro.    

terça-feira, 11 de novembro de 2014

O HÓSPEDE DO BANHEIRO

Eu andava ás voltas com um novo conto, quando senti a presença de uma sombra magra e apequenada posicionar-se atrás de mim. Virei-me subitamente e dei com a Mosca que segurava muito à vontade, uma xícara de café e um pedaço de pão:

“Pô, cara, que susto!”

“Ah, me desculpa, te assustei, não foi?”

“Faça isso não, cara.”  

“É que o banheiro tava muito frio e eu vim tomar um pouco de Nescau quente.” 

  Disse aquilo sentando-se em seguida à beira da cama. Parecia mesmo muito à vontade pela casa. E aquilo não soava bem. Como se não bastasse, perguntou:

“O que está escrevendo agora?” Voltei-me furioso em sua direção, e disse:

“Não interessa. Olha, deixa eu te explicar uma coisa. Não me leva a mal, mas é que eu não gosto que fique entrando e saindo da casa sem o meu consentimento.”

“Eu sei, eu sei, é que eu precisava tomar alguma coisa quente. Faz um frio desgraçado no chão daquele teu banheiro. O colchonete não resolve, e eu ainda fui perder a porra da minha rede.”

“Não, você não perdeu, você penhorou na boca a porra da rede, você me disse.”

“Tá, eu penhorei, tudo bem...”

“Então, e eu não tenho nenhuma para emprestar-lhe agora...”

“Não estou pedindo nada emprestado. Estou sabendo me virar muito bem naquele banheiro frio. Tudo é uma questão de adaptar o corpo a qualquer circunstância da vida. Não sei se já lhe contei esta, mas certa vez, quando peguei a estrada para Venezuela, dormi no acostamento da Basiléia, debaixo de uma carroceria de caminhão abandonada. Havia só um cara lá dormindo debaixo de um cobertor sujo e mal cheiroso que mal cabia-lhe o corpo. E fazia um frio desgraçado, putz!  Me sentei perto dele e perguntei se ele podia  dividir o agasalho comigo. Ele grunhiu de lá qualquer coisa, aí então eu mostrei-lhe uma garrafa de cachaça pela metade e algumas castanholas que eu havia colhido pelo caminho. Ele permitiu que eu me aproximasse dele e fizemos um leve banquete. Naquela noite,  revezamos o cobertor e eu tive um sonho mais ou menos tranqüilo, então eu lhe digo que não estou me queixando de nada, só preciso aquecer um pouco as células do meu corpo, não me leve a mal, sim?

“Tá tudo bem, só me faz esse favor, de não ficar entrando e saindo sem minha permissão...”

“Pode deixar. Mas eu tenho uma coisa pra te contar, mas espero você acabar aí, não quero atrapalhar. Lhe espero na sala.”

Ele então deixou o quarto em passos leves de ladrão e foi para a sala. Fiquei ainda ali pelejando com conto, mas logo desisti dele e desliguei o computador.
Na sala, o flagrei sereno enrolando seu baseadinho:

“Mas já?”

“É o costume. O sol brilha melhor pela manhã depois do primeiro baseado.”

“Só que eu estou com uma sobrinha agora passando uns dias aqui em casa, e acho que não fica legal.”

“E eu não sei. E ela é uma gracinha, radiante e inteligente, com todo respeito. Mas enrolo esse aqui e vou fumá-lo no banheiro, fica tranqüilo.”

“E o que você ia me falar mesmo?”

“Ah, sim, cara, larguei aquela joça lá...”

“O trabalho no Cinco Estrela?”

“Aquilo lá é um inferno, cara, e você é explorado até á medula.”

“Tá, mais como é que tu vai se virar agora?”

“Como sempre me virei. Voltarei com os artesanatos e pegarei a estrada outra vez. Vou passar uns meses na Venezuela. Tenho um corpo e ele não está preso à servidão nenhuma.” Disse ele celando definitivamente o papelote com a língua. Fazia aquilo com uma perícia impecável.

“E o que aconteceu dessa vez?”

“Deixa eu lhe contar. Um tal de Gerente voltou a trabalhar como garçon. O Cinco alugou um dos quartos pra ele e pra esposa, e ele agora trabalha de graça pra pagar o aluguel. Só que o sujeito, esse tal de Gerente, além de grosseirão, é bastante enrolado, e ainda por cima espanca a  própria esposa e ninguém consegue dormir com os gritos dela. Uma noite dessas, uma vizinha ao lado, após ouvir o quebra-quebra e gritaria, acudiu em defesa da mulher que apanhava, e o Gerente, como se não bastasse os impropérios, acertou-lhe um soco no peito da intrometida que a lançara ao chão. Ela então esperou o marido chegar, e aos prantos, contou-lhe todo o ocorrido. O cara, que me parece um cabo da polícia, armou-se do seu revólver e foi até o Bar do Cinco tomar as satisfações devidas. O azar é que o Gerente encontrava-se na cozinha conversando comigo quando o brutamontes do cabo entrou  e apontou-lhe a arma para a cabeça dele.  Fez-lhe ajoelhar aos seus pés. O cara urinou-se todo porque aquilo lá ia disparar de verdade. Eu fiquei sem voz, encolhido no canto imaginando os miolos do Gerente espalhados pela cozinha. Ouvi o gatilho sendo acionado, e o som que fez era seco, como dentes amolados que se trincam de pavor. Então tomei coragem e disse: “Vai com calma aí cara, foi o que eu disse. “Fica na tua, poeta! Esse sujeito tem que aprender a respeitar a mulher dos outros.” E bumba! Só que – para meu alívio - não foi um tiro, mas um tabefe certeiro que o valentão dera no Gerente, seguidos de pontapés e uma infinidade de murros. O pobre do Gerente apanhou muito e eu não pude fazer nada. Até achei bom ele apanhar daquele jeito pra aprender, por outro lado, a cozinha ficou um estrago. Mais tarde, após toda aquela confusão, O Cinco, eu e mais um morador de rua que sempre estava por ali no bar mendigando umas doses de conhaque, olhávamos atordoados para o corpo desacordado do Gerente:

“Tu e tu, pega esse filha da puta e arrasta lá pra trás.” Ordenou o Cinco. “E eu quero essa minha cozinha limpa, poeta!”

  Eu e o sujeito arrastamos o corpo pros fundos. O cara voltava devagar. Estava mesmo bastante machucado:

 “Ei poeta, tem como descolar uma dose daquelas de conhaque pra nós?” Perguntou o morador de rua. Olhei pra ele e disse:

  “Até uma garrafa, se você quiser.”

  Depois, voltei para a cozinha, limpei tudinho como ele havia mandado. Até furei meus pés em alguns cacos de vidro. Mas deixei a cozinha bem arrumadinha e cheirosa outra vez. Já se aproximava das duas da manhã. Eu vi no relógio da parede. Já havia uns poucos clientes. Os mais enjoados haviam deixado o Bar. Restando só aqueles que ainda acreditavam em algum latido de esperança.  
  Uma boa hora, portanto, pra eu negociar com o Cinco.  Eu ainda usava a touca e cheirava a fritura de tomates e cebolas. Então eu disse pro Cinco:

“Cara, preciso que você aumente minha diária.”

“Porra, você tá aqui há menos de um mês e já quer aumento? Rola não, poeta. Volta pro teu posto é que é, caralho.”

“Tudo bem então.” Disse-lhe, abrindo um sorriso camarada.

“Olha, escuta, prepara um tira gosto daqueles pra mim.”

“Sim senhor.”
 Voltei pra cozinha. Caprichei no tira gosto. O seu cheiro espalhou-se pelo bar inteiro. Tenho certeza que seu aroma alcançou o outro lado da rua. Sei bem como agradar um bom paladar. Até do mais frio e miserável dos homens. Olhei para o alimento no prato, puxei o catarro de dentro do peito e cuspi sobre a comida. Fui servi-lo. Aproveitei o momento  em que ele ficou distraído deliciando-se com o prato, e surrupie-lhe uma garrafa de alcatrão sobre a prateleira. Levei para a cozinha e a escondi na bolsa. Removi imediatamente meu avental e minha touca, lavei bem as mãos e preparei-me para dar o fora. Ao me ver passar apressado, ele levantou a vista do prato e gritou de boca cheia, desesperado:

“Ei poeta! Onde tu vai?”

“Sacando fora!”

“Não pode fazer isso não, porra!”

“Não posso é um caralho. Eu sou livre!”

“Não vou lhe pagar diária porra nenhuma.”

“Faz o que você quiser com a grana. Pode até enfiar naquele lugar. Fui!” Ele ficou de lá gritando com as mãos no quadril. Me xingando pra valer. Alguns bebuns riam da cena. Mas eu já ia longe. Atravessando a noite alta e fria. Encontrei  o  sujeito  que me ajudou com o corpo do Gerente. Ele dormia sobre um banco de concreto de uma parada de ônibus.  Cutuquei-lhe o corpo molabento e mostrei-lhe a garrafa de conhaque inteiraça. Ele abriu um largo sorriso:


“Porra, poeta, tu é de fé mesmo.” Trazia também comigo uns queijos e mortadelas que havia me apropriado da cozinha do Cinco. Atravessamos a rua, e nos alojamos debaixo de uma marquise. Detonamos os dois, aquela garrafa inteira de conhaque. Sabe, Mário, as pessoas acham mesmo que me conhecem, mas o que elas não sabem é que sou um lutador de esgrima, e que a cada manhã, me nasce um sol diferente e eu então sigo caminhando, indiferente as dores, e talvez isso me baste, me salve, me redima... O homem é o seu próprio destino, e portanto eu vou...”

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

carniceiros

ainda  resisto. vejo agora tudo de cima deste muro branco. um corpo que bóia.  mas é só um corpo. as águas podres arrastam-no para à margem. curioso. um a um os urubus vão pousando. cercando a carniça. começam a bicá-la. bicos longos e negros.  são muitos agora. fazem furos precisos. se eu aqui pudesse sonorizar os ruídos destes pássaros. mas é que um outro chega. reparem. é maior e mais negro.  asas bem abertas. ameaça os demais. quer sozinho banquetear-se do cadáver. o egoísmo não é uma qualidade apenas do homem. está no âmago dos pássaros e das flores. gaivotas passam ao largo. não foram convidadas. voraz, este pássaro enorme e negro  retira vísceras que ficam grudadas em seu bico. também sente fome. uma fome voraz.  imagens e sentimentos que não me saem da cabeça. os outros apenas olham. contentam-se com as carcaças de peixes. mas não é a mesma coisa. não como este corpo inchado. suculento. que se afogou. você daí entende este quadro vazio da vida? um menor se aproxima. na distração, arranca-lhe o olho do cadáver. fica um buraco. afasta-se. vai comê-lo ao longe. seis desta manhã. o sol nasce quadrado. um bêbado olha a cena. cabelos pintados de acaju. sua solidão é como esta água barrenta, amarela e podre. toma logo um trago. olha o céu. tudo é um nada sem respostas.  nuvens densas que se fecham para a vida ali dentro dele. melhor é não ter nascido. ele pensa um instante. os urubus não desistem. uma centena deles agora.  cercam  o boião outra vez. o outro se vê acuado. cedi-lhe o egoísmo que bate em retirada pro céu. os urubus fazem a festa. destroçam a carniça até não restar nada.           

sábado, 8 de novembro de 2014

A SINA DO OLHO


                                                                                        ***

      Eu não sei o que acontece com este olho esquerdo.  Parece ser  uma sina. É sempre ele que recebe os golpes duros da vida; da mesquinhez e do ódio humano.  
     P.J estava possuído naquela noite. Havia bebido e cheirado aos montões. E agora me acusava de estar tendo um caso amoroso com Berenice. Disse ainda que ele não era corno coísíssima nenhuma - e que eu iria pagar muito caro por estar fazendo aquilo com ele. Tudo de que me lembro é do rosto da Madonna transfigurando-se numa coisa hedionda logo que recebi aquela garrafada certeira na cara. Levantei-me terrivelmente nervoso da mesa procurando imediatamente o meu globo ocular pelo chão. NADA. Deixei calmamente aquele bar e atravessei cambaleante em direção à praça.  Os sinos da São Sebastião bateram horrorizados. Uma da manhã. Senti medo. Solidão. Pavor de estar cego. Já um pouco distante dali, e mais seguro, sentei-me em algum banco de que não me lembro bem e procurei mais uma vez por meu globo ocular. Chequei amargamente nos bolsos da camisa. Pelo chão. Eu não sentia mais o meu olho esquerdo de verdade bater. Cogitei tê-lo perdido definitivamente. Segui andando, atordoado. A madrugada era fria como num conto de Edgar Alan Poe. (mas isso não é hora pra brincadeiras, Mário) Bom. Fui sentindo dor e solidão. Fiquei dando voltas e voltas pelo centro da cidade, talvez em busca de alguma resposta para a selvageria humana. Parei numa vendinha suja, já ali pelos arredores do porto hidroviário e pedi um conhacão daqueles de arrebentar o peito e cozinhar os miolos. Uma moça veio me trazer a bebida. Ela me olhou estranho enquanto limpava a mesa com um paninho fedido. O bar fedia. As pessoas fediam. A garçonete fedia. A cidade fedia. Tudo federia muito mais se eu perdesse o meu olho. 0 OLHO É O OLFATO DA ALMA. Arre que fui tomando goles carrascos de meu conhacão que me descia amargamente e me acariciava o fígado como a mão enluvada de Deus. A garçonete me olhava com tanta curiosidade e penúria que acabei arriscando:
- Diga-me sinceramente, meu bem, se eu perdi este meu olho, porque eu não o sinto mais bater neste lugar. 
- Está terrivelmente inchado que não dá para ver bem, meu senhor. Ela disse. Depois ela sugeriu que eu fosse olhar no espelho do banheiro, mas achei melhor que não, e acreditei nela e pedi a ela uma outra dose de conhacão que me foi servido prontamente. Duas doses daquela bebida de alma negra e reluzente seria o bastante para eu continuar andando e pensando na lógica do ódio humano – e não obstante toda a desgraça sofrida, parecia ser aquela, uma noite maravilhosamente agradável e doce. Paguei as doses e segui pensando: tudo vão lhe roubando bem devagar; a esperança, a alma, os sonhos, e agora o olho. O olho que tudo vê e que tudo sente. As glórias do céu e do inferno. Mas nada nos destrói ou enfraquece. Só nos deixam um pouco mais humanos e pensantes. Resolvi bater na casa dela àquela hora da noite.  Explicar a ela o que aconteceu e pedir que tomasse as providências que cabiam a qualquer mulher de sensatez humana. Bati na porta dela às duas da manhã. Foi ela mesma que atendeu. Tomara até um susto em me ver ali naquele estado deplorável da alma:

   - Que foi isso, Mário?
   - P.J me acertou este olho com uma garrafa. 
  - Meu Deus! Entra! Ela disse. Entrei. Sentamos em um sofá. Tudo ali parecia fora de órbita. De lugar.
   Mas aí eu disse pra ela:

  - Não sinto mais ele aqui batendo. Acho que finalmente o perdi.
 - Está muito inchado para ver se perdeu. Vou pegar uma compressa de gelo para baixar o inchaço. Ela disse. O outro olho que estava vivo e que acompanhava tudo impassívelmente do outro lado do espaço observou com certa malícia que ela usava uma camisolinha linda e bem curtinha, cor de limão, e que seu rosto continuava redondo e lindo com uma nádega infantil e doce. Ela iria cuidar de mim agora.  Posicionou-me em seu colo e comprimiu  com delicadeza o pano molhado e gelado em cima do inchaço do olho. Fui me sentindo melhor.

  - Não usarei um tapa olho e muito menos um maquinismo de vidro no lugar. Saberei muito bem conviver com este buraco.
  - Deixa de besteira, o olho está no lugar. Foi só um baque. Me olhou e sorriu.
  - A culpa é sua, Berenice. Você tem um dedo podre para os homens.  
  - O quê que eu posso fazer?
   Ficamos em silêncio. Depois eu disse:
  - E se ele voltar?
  - Tranquei as portas e reforcei os cadeados. Vai ficar seco de gritar que não abro. Fica calmo.

    Fiquei ali no seu colo como uma criança sentindo o perfume de suas coxas brancas. As suas varizes rosadas. Ai ela levantou-se e, sensualmente descalça, foi até a cozinha, retornando de lá com dois copos e uma garrafa de vinho. Bebemos. E quando meu olho finalmente voltou á vida, eu pude olhar outra vez aquele seu sorriso de rosas naquele seu rosto de leite. A iluminária toda azul no centro da sala...   

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

O ATAQUE

Olha, eu não sei o que dizer. Tampouco explicar a origem daqueles homenzinhos. Mas o fato é que eles surgiram de algum lugar. E vieram furiosos e aos montes...

***

Florêncio Jardim preparava-se para morder um belo pedaço de frango frito que sua esposa carinhosamente havia deixado pronta antes de partir quando um homenzinho passou correndo por entre suas pernas atravessando o vão da sala. Caralho! Florêncio Jardim largou o que fazia e inclinou-se para olhar melhor. O homenzinho ficou ali parado, no canto da sala. Florêncio Jardim foi até lá de gatinhas para olhar com detalhes. O homenzinho tinha aproximadamente 12 centímetros de altura, isso mesmo, e, acuado, agitava bastante os bracinhos.  Como explicar isso agora? Florêncio Jardim pensou, sorrindo. Aproximou-se bem da espécimen quando esta soltou-lhe uma catarrada  segura na imensa cara do gigante e correu veloz para o outro lado da sala. Ora veja, nunca alguém havia lhe cuspido na cara daquele jeito, nem mesmo o corretor de imóveis ou o vidraceiro da esquina, pensou bastante irritado, Florêncio Jardim. Partira na captura dele. Só podia estar em algum lugar daquela casa. Viu quando a sombra apequenada disparou pra cozinha e meteu-se entre as panelas. Furioso, Florêncio foi botando todas elas ao chão até se deparar de novo com a criaturinha atrás do saleiro. Aproximou o seu nariz grande do homenzinho e perguntou:
“Quem é você afinal?”
“Que importância tem isso?” É verdade, o homenzinho tinha razão. Ele dessa vez avançou no gigante mordendo-lhe em cheio o nariz, partindo novamente em disparada. Aquilo não podia estar acontecendo com ele.  Nunca fora tão humilhado assim. Desesperado saiu à caça do homenzinho outra vez. Mas nem um sinal dele. Atordoado, afundou-se no sofá. Gotas de suor pingavam-lhe do Pomo de Adão. O frango esfriava no prato. Àquela altura, decerto, havia perdido o sabor. Como a vida e todas as coisas ao redor. Tudo enfim, parecia encerrado ali (tratando-se obviamente de mais uma alucinação sua) quando, aterrorizado, vira sair debaixo da porta do quarto, centenas de homenzinhos e mulherzinhas. Só pode ser uma foda de sonho, pensou novamente Florêncio Jardim quase não acreditando mesmo no que via.  Mas o que os seus olhos grandes testemunhavam era uma realidade palpável. Seus dias estavam contados. Os homenzinhos avançavam contra ele cantando uma espécie de hino. Atirou alguns apetrechos que tinha ao seu alcance sobre a horda. Alguns corriam desesperados e com medo, já os outros avançavam obstinados contra ele. Apareciam de todos os cômodos da casa. Um verdadeiro exército implacável de seres bem pequenos e desprezíveis.  E estavam revoltados. Furiosos com ele. Mas se ele capturasse ao menos alguns deles guardaria em uma caixa de sapatos e os forçaria a lutar com as suas caranguejeiras de patas peludas que havia no quintal de sua casa, impondo assim, a sua força e importância impoluta sobre aqueles seres diminutos e de alma bem pequena. Cogitou. Mas ele não conseguia pegá-los. Eram muitos e rápidos demais. E como se não bastasse não paravam de proliferar surgindo em centenas de milhares, vindos do ralo da pia, detrás dos retratos, descendo aos montes da parede e do espartilho da esposa. Todos gritavam, de longe, avancem homens! Eram centenas, milhares de homenzinhos diminutos e ferozes que se reproduziam como uma praga de gafanhotos vorazes. O mais bravo usava um jaleco verde e óculos com aros de metal. No fundo as criaturinhas tinham era medo de Florêncio, porque na verdade, custavam a avançar sobre ele, posto que o gigante era um homem furioso e sofria de terríveis enxaquecas.  A situação, pois, se agravava. Florêncio estava agora acuado. Espremido no canto da sala. Cercado de homenzinhos por todos os lados. Não sabia o que fazer. A casa encheu-se daqueles sereszinhos impertinentes que agora cantavam hinos de vitórias, tendo em vista, a eminência derrota de Florêncio. E não havendo mais escolha, portanto, Florêncio desistiu de lutar. Mal se podia divisar agora o seu corpo, coberto que estava por uma massa compacta e cinzenta de humúnculos que lhe mordiam vorazmente os dedos das mãos, dançavam na ponta de seu nariz - fazendo gestos obscenos - e ainda por cima entoando uma espécie de cântico que dizia, “Passarás em silencio por meu amor/ e fingirei um sorriso/ um leve e doce e sorriso.” Decerto que a canção era irônica e que não havia nenhum sentido. Não obstante, eles cantavam felizes da vida, certos da grande vitória sobre o gigante. Uma lagrimazinha ofendida brotava agora dos olhos resignados dele. Somente com a cabeça de fora, Florêncio Jardim ainda avistou o seu cachimbo na parte mais alta do armário de vime da sala. Ao menos uma última cachimbada antes dele ser tragado de vez, pensou.  Mas já era tarde. A morte é mesmo incompreensível. Nada de foices ou túnicas negras. Viria em forma de homenzinhos implacáveis. Eles agora penetravam-lhe todos os orifícios, cu, nariz, olhos, ouvidos, boca; a enorme boca que ele teimava inutilmente em mantê-la fechada. Os homenzinhos agora começariam a explorar todo o interior de seu corpo.   


quinta-feira, 6 de novembro de 2014

A GARÇONETE SEM CALCINHA

Eu sei. Sou um espírito porco bebendo nesse chiqueirinho de merda. Mas tenho lá minhas razões que são óbvias e francas. A garçonete sem calcinha. É ela a causa de todo meu sofrimento e torpor. Deste meu eczema. Imaginem que ela tem um rosto infantil e uma nádega boa. E a impressão que me dá é que ela nunca usa calcinha. Faça frio ou calor. Sol ou chuva. Tenho quase a certeza disso. A garçonete está nua! E se porventura, ela assim o faz, é somente para me provocar porque é evidente que ela sabe que sou um homem ordinário e doente. É natural que o senhor estranhe este meu comportamento. Este meu desvario. Mas devo prosseguir. Reparem agora que levo o copo devagar à boca que até sinto meus dentes trincarem na borda de vidro. Como se o mordesse, o que na verdade o faço. Tenho esse costume de morder as bordas do copo. Mas é impressão minha ou as bordas desse copo me ferem os lábios? Sinto-os sangrar. Pedirei pra garçonete trocar. Assim eu a sinto mais próxima de mim. O seu cheiro. Ela se diverte com minha presença nesse chiqueirinho insalubre. É natural que o senhor estranhe. Mas é que a feiúra destes outros velhos em minha volta é que me dói. (Tusso). Todavia, eles tem o direito de vir aqui e sonhar com a garçonete sem calcinha. Masturbam-se. Desejam-na. Há em tudo isto, um mistério insondável. A do desejo platônico das paixões que dominam as nossas almas passivas. Se prestarem bem atenção, o velho a minha esquerda pressiona devagar seu músculo morto enquanto bebe sua cerveja. Vive no mundo da fé. Nos ensinaram a ter fé. A velhice é imoral. É uma besta de canino careado e esquecida em um bar sórdido. Levo novamente o meu copo à boca. Assim, bem devagar. Apreciem. Sempre que faço isso, um novo desejo me aflora. Como uma margaridinha sem anáguas. Vou me perdendo em meus devaneios líquidos. Mas a gente se perde que é pra se encontrar. Eu me encontro no fundo do que sou. Esta superfície lisa e plana. Ela agora sorri pro flanelinha que tem um membro rijo e uns peszinhos tortos. Mas não é disso que quero falar. Mas do seu cheiro. Byron chamaria isto de instinto leviano da nobreza. Seja o que for, da pele emana o cheiro. Um cheiro que entorpece. Que alucina. Cheiro sujo. A garçonete não tem cor. Desço levemente o copo sobre a mesa. Nada do que somos é uma verdade inteira. A nossa mentira é que são os nossos valores mais nobres. Mentira! Mas por que isso agora? Voltamos ao cheiro que emana de sua pele. Um azedume bom. (Tusso outra vez, que raios!) Um azedume bom, eu disse. Venho só para ver o seu corpo moreno suado no calor destas tardes febris de agosto infindável e sonhar. Suas omoplatas ondulantes que saltam sobre a pele reluzente. O sal das axilas. O corpo transpirante de prazer. O azedume de tudo. Penso que se ela se inclinasse mais um pouquinho só que seja enquanto limpa as mesas com seu paninho fedido, daria certamente para ver se neste dia, ela estaria ou não usando calcinha. Mas é certo que não está. A garçonete está nua! Faça chuva ou sol. Calor ou frio. Ela vai estar sempre nua. Vem trabalhar sem calcinha. Engulo a prece. A vida passa devagar como a sombra de um boi. Espero um dia ela inclinar-se para ver melhor. Mas enquanto isso, ela me sorri de lá. Abaixem a cortina.   

terça-feira, 4 de novembro de 2014

O ANÃO TROMPETISTA

V

Mas ainda não é o fim. Calma! Deixe-lhes contar mais um pouco. De como o conheci.
                Eu o vi pela primeira vez tocando naquele Bar que tinha um cheiro estranho e doce, de patchuli. Mas o cheiro, na verdade, vinha daquele trompete. Um cheiro bom. Sinestesiante. Quando não saiam odores, saiam flores. E tudo que dali desprendia-se inexplicavelmente, dependia unicamente de seu estado e da amplitude de sua alma. É como escrever, sabe? Quando estamos tristes, escrevemos poemas amargos. Quando estamos felizes, escrevemos poemas doces. Somos como estações que se alternam dentro da gente. Assim era ele com o seu trompete. Eu já o manjava há tempos. Definitivamente, a alma daquele anão estava ali, naquele sopro. Eu ia todas as noites àquele bar só para vê-lo tocar. Tornara-se uma espécie de celebridade. Fiz amizade com ele. Paguei-lhe cervejas, cigarros. Mais feliz fiquei ainda ao saber, que o anão era meu conterrâneo. Apresentei-lhe à turma da República que freqüentava em peso, o lugar. Logo, enturmou-se e, numa rodada alegre de cervejas, ele nos perguntou se já tínhamos ouvido o hino da China. Todos riram temerosos.  Perguntou se ele podia tocar o hino da China, e que por causa do hino da China, os soldados bateram nele pra valer, deram-lhe choques e pontapés e o amarram de cabeça para baixo em um pau de arara, e ainda por cima quase confiscaram-lhe o seu único bem, que era o seu trompete, e tudo porque ele tocava o Hino da China. Havia algum mal em tocar o Hino da China? Quis saber. Comovia-me a pureza e a ternura que emanavam daqueles olhos grandes e infantis. E foi com meus lábios retorcendo-se de compaixão que expliquei-lhe que podia tocar sim, o Hino da China, mas não ali, naquele momento e lugar, ainda que aquele bar fosse uma espécie de Gueto de Resistência e que servia de certa maneira de encontro para alguns remanescentes do MR8. Sem entender nada, acatou cabisbaixo, recolhendo tristemente o seu trompete. Como não tinha onde dormir naquela noite fria daquele outubro de 76, acabamos levando-o conosco pra morar uns tempos na República. Lá, o politizamos um pouco, explicamos a situação do país e que ali, naquela casa todos eram camaradas que lutavam contra o regime ditatorial, de modo que ele podia tocar em paz o hino da China, da Conchichina, da Internacional Comunista, do raio que os parta, se assim o quisesse. O azar foi que em apenas um dia, espantosamente, ele aprendera a tocar o Hino da Internacional Comunista, e todas as manhãs, logo cedo, éramos arrancados de nossas camas com o Hino da Internacional Comunista que o anão tocava exaustivamente em seu trompete. Mas no fundo, gostávamos dele. Tornou-se o nosso emblema de luta: o nosso mascote da sorte. Ia conosco em todas as passeatas e mobilizações que fazíamos contra o regime. Houve uma que ocorreu no Largo da Candelária e que não esqueço nunca mais. Ele seguia na frente, todo vaidoso soprando o seu trompete. Dele saiam granadas coloridas, escopetas cuspindo flores, gerânios azuis, pipoquinhas verdes, algodões doces, estilingues, bolinhas de gudes, baionetas em formas de mariposas... Os cavalos e os coturnos não avançavam contra nós, não podiam avançar, nada mais podia nos deter, descemos pela Uruguaiana até a Praça Quinze, onde finalizamos com um grande comício seguido de um concerto do anão que colocou todos nós pra dançar um mambo alegre e eletrizante. Foi uma festa. Uma grande celebração pela liberdade. Nunca mais esqueço aquele dia. O regime tinha seus dias contados. E digo-lhes mais, senhore
s, (é porque a história vergonhosamente não nos conta a verdade), mas não foi o Movimento Estudantil, nem o MR8, tampouco a Guerrilha do Araguaia, o grande símbolo de resistência contra a ditadura militar no país, mas aquele anão e o seu trompete mágico, este sim, e eu estou cada vez mais convencido disso, e sei muito bem que, por mais que registre todo este acontecimento em um conto, como agora o faço, quem acreditaria em mim, não é mesmo? Mas o fato é que depois daquele dia histórico, de profundas mudanças, o anão sumiria misteriosamente. O procuramos no bar, mas ele não aparecera para tocar. Esperamos apreensivos o seu retorno. Nada.  Procuramos por toda a cidade: delegacias, hospitais, IML´S, necas, tentamos, sem êxito, encontrá-lo. Não o vimos mais. Transcorreram-se alguns meses desde aquele seu desaparecimento misterioso, quando certo dia, assistindo indignado a um pronunciamento do General Geisel na televisão, vi entrar esbaforido no quarto, um dos camaradas da República: “Tem um cara aí que viu o anão, Pablo.” Fomos até lá. Tratava-se de um velho mendigo que esmolava na esquina da Sé, e que nos assegurou ter visto o anão pela última vez tocando o seu trompete para uma atiradora de facas que ganhava a vida debaixo dos semáforos. Garantiu-nos também que o anão tinha uns olhos grandes e apaixonados e que do seu instrumento saiam fogos de artifícios e centenas de milhares de maçãs do amor, e que naquele final de tarde, o sol brilhava com todo seu fulgor e que o trânsito todo parou para ouvir o anão que tocava apaixonadamente o instrumento, enquanto a moça bonita atirava facas amoladas para o céu, cuspindo labaredas de fogo que logo se transformavam em sorrisos flamejantes, ocasionando um congestionamento monstruoso na avenida. “Depois daquilo, a moça agradeceu, pegou na mão do músico e desapareceram bem ali naquela esquina! E aí eu nunca mais o vi de novo, tocando por aqui, seu moço!” Agradecemos ao senhor pela informação, demos a ele algum dinheiro e retornamos tristes e cabisbaixos para a República, certos afinal de que nunca mais veríamos o anão outra vez.
E é fato que nunca mais o vimos. Transcorreram-se 38 anos desde esse dia. Olho agora da minha janela, uma garoa coloridinha cair. Tépida. Calma. Mansa. Como uma melodia doce e aguda que afetuosamente embala-me a alma neste instante. O país hoje é outro. Mas não sei se mudou muita coisa, não. Ainda existe fome, injustiças, roubos, matanças... Quando olho as crianças esmolando pelas esquinas, debaixo dos faróis, meu coração logo se parte em pedacinhos. Lembro de Simplício e do seu trompete incrível. De como ele transformava tudo dentro dele em cifras mágicas e que milagrosamente eu podia vê-las, tocá-las; senti-las vivas pulsando dentro de meu coração, naqueles anos tão difíceis. Não tenho trompete. Mas tenho ao meu alcance, uma caneta que agora me treme de emoção nas mãos ao acabar de escrever estas notas. Aprendi que de uma caneta também se extrai sentimentos vivos e puros que são como músicas. Como as melodias mágicas que maravilhado um dia eu vi sair do trompete de Simplício e que nada mais eram do que a expressão de sua alma larga e generosa. Por isso é que resolvi escrever este conto.  Antes que alguém o escreva por mim. Antes que esta chuva tépida e colorida pare de cair. Antes que eu feche esta janela e perca definitivamente a esperança nas pessoas e no mundo...
Talvez seja isso. Bom.


                                                                           

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O ANÃO TROMPETISTA

            IV

Agora ele estava sozinho e duro, ele e o seu trompete mágico. Caminhava a esmo pelas ruas molhadas da Paulista, longe dos holofotes e dos aplausos do venerado público. Andava magro, maltrapilho; a alma enferma. Batia de porta em porta mendigando emprego pelos botequins, boates, igrejas, prostíbulos.  Alguns o acolhiam por um tempo. Já outros riam e fechavam-lhe duramente as portas. Uma noite, embebedado, um praça o reconheceu nos fundos de um bar. Ele e mais um cabo, conduziram-no até uma delegacia. Lá, o entregaram aos agentes do DOPS que o levaram a um porão e deram-lhe com o trompete em sua cabeça chata. Ao abrir dos olhos, Simplício recebera uma luz forte na cara, que quase o deixara cego para sempre. Fizeram-lhe perguntas estranhas, do tipo, o porquê dele tocar, o hino da Internacional Comunista.  “Da China, porra!” Corrigia, batendo o pezinho.  Mas tabefes. Os agentes riam, batiam nele com o trompete; davam-lhe duras telefonadas, choques nos testículos, aquilo tudo que os torturadores sabiam fazer como ninguém. No segundo dia, como se não bastasse, penduraram-lhe no pau de arara, onde recebera mais choques nos testículos e um novo alcunho: o de Anão Comunista. Ele não entendia porque faziam toda aquela maldade com ele. Só porque tocava o Hino da China? Ah, se ele soubesse que lhe custaria tão caro tocar o hino da China; que lhe valeria a desgraça dos pais como também a sua, enfim, toda aquela judiação sem tamanho, jamais teria lhe ocorrido a tocar o Hino da China. Ficou ali quase um mês apanhando e refletindo sobre aquilo. Depois, já cansados de torturá-lo e interrogá-lo, os agentes decidiram liberá-lo. “Esse aí não faz mal a uma mosca!” Convencera-se um deles. Implorou para que devolvessem o seu trompete. Sem ele, não valia um centavo de réis. Vedaram-lhe os olhos, o puseram em um porta-malas de um carro e o abandonaram em uma estrada deserta qualquer.
“Vai, cabeçudo!” Foi o primeiro e único chute no traseiro. Contudo, permitiram que ficasse com o trompete. Olhou em volta. O instrumento ali estava. Ele limpou bem aquilo. Checou o bucal, a campana, a rosca de encaixe, os pistons, tudo em perfeita ordem. Nem um arranhãozinho sequer. Soprou uma nota que logo transformara-se em uma linda borboleta. Emocionado, sorriu abraçado ao instrumento. Depois seguiu andando pela estrada. Não sabia onde estava, apenas andava, feliz, tocando seu trompete. O sol ardia com todo seu brilho e esplendor.  Girassóis coloridos abriam-se à sua passagem...


sábado, 1 de novembro de 2014

O ANÃO TROMPETISTA

PARTE III


1975. Ano ruim aquele.

Enquanto tanques e coturnos ganhavam mais e mais às ruas do país, Simplício Honorino dos Santos seguia tocando feliz o seu trompete. O mundo que se explodisse. Já sabia tocar de tudo um pouco, do jaz ao soul, blues, rumba, merengue, a comancheira...  As bochechas dele se enchiam como as do incrível Louis; as veias dilatavam-se em seu rosto duro enquanto os olhos esbugalhavam-se parecendo assustadoramente saltar das órbitas. Contudo, a visão não era de dor ou de sofrimento algum, mas de infinita alegria e satisfação plena, pois que a alma daquele anão estava ali, em cada sopro seu. Dir-se-ia um Charles Parker ou um Dizzy Gillespie à brasileira. Mas ele era o Simplício Honorino dos Santos. Fazia questão que o tratassem assim. O público ia ao delírio. Fama. Dinheiro. Nada disso o comovia. Ele só queria tocar seu trompete sossegado e seguir dando orgulho aos pais. Mas aí um dia, sem querer, ele ouviu em uma barbearia, o hino da China e quis aprender a tocar. A infeliz idéia quase levou o pai ao infarto do miocárdio. O pai que ostentava orgulhosamente um imenso retrato do General Medici na sala de casa, proibiu-lhe sumariamente o filho de tocar o hino da China. Só faltava essa, o Hino da China. Mas teimoso como era, o homúnculo batia com teimosia o pezinho outra vez, querendo porque querendo tocar o hino da China. E ele assim o fez, aprendendo às escondidas. Se porventura alguém agora o ofendesse, chamando-o de trompetista anão, cambota ou de cachalote, e também obrigasse a vestir roupas de palhaço, ele tocaria o hino da China. Todos iriam ver só uma coisa. Nunca mais iriam rir dele. Ele não era um palhaço. E foi assim, que no Programa do Bolinha, após ouvir o apresentador chamá-lo de anão trompetista, ele tocou, pela primeira vez, em rede nacional, o Hino da China. Houve um silêncio sepulcral. O medo tomou conta de toda aquela gente petrificada que tentava a todo custo desviar-se de foices e barafundas. O pai caíra infartado na platéia. O apresentador pediu os comerciais. No dia seguinte, como era de se esperar, o programa saíra do ar, e Simplício, obviamente, nunca mais receberia convites pra tocar na televisão ou em rádio alguma. No velório do pai, ele tocou umas notas tristes que eram como flocos brilhantes de neve despencando docemente do Aconcágua. O da mãe, ele não me contou com detalhes, pois que engasgou-se de emoção, mas suponho ter sido algo de espedaçar o coração.


sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O ANÃO TROMPETISTA

PARTE I            

            Tolice. Nada se explica. Nem mesmo nossa presença no mundo. Ainda sim, vou lhes contar.
Sentava-se sempre nos fundos daquele bar e ali ficava sem que ninguém o percebesse. Um dia, ele sacou seu trompete e pôs-se a tocar: “Ora, um anão trompetista,” estranhei. Todavia, do seu trompete saiam flores, rosas, corais, luas, estrelas, navalhas, corações espicaçados... Tudo enfim saía dali de dentro sem nenhuma explicação aparente. Não obstante – e já refeitos do susto - a clientela punha-se a dançar alegremente embalados pelas imagens e pelo som doce-amargo daquele instrumento encantado. Não tardou para que o dono do bar lhe oferecesse de pronto o emprego. E Simplício Honorino dos Santos (pois este era seu nome de batismo) passou da amargura daquele momento ao prazer absoluto da vida que era o simples deleite de tocar o seu trompete mágico. Foi assim que o conheci, naquele ano e lugar, e ele então me contou um pouco da sua vida.


PARTE II  

              É óbvio que para melhor entendermos este comecinho de história, sugiro que voltemos bem lá atrás – naquele julho de 1960 - que foi o ano que Simplício nascera. Os médicos lutaram heroicamente. A cabeça de tão chata e grande, dificultou-lhe deveras a passagem, levando quase a óbito, a pobre mãe. Mas nascera. Contrariando toda a lógica de um parto digno e natural que confere a uma criança normal. De outro modo, morreria ali dentro estrangulado pelo cordão umbilical. Nas mãos do parturiente a criaturinha estourava de gritar. Um grito estranho e estridente que mais parecia o som agudo de um instrumento afinado. “Um anão, que azar!” Atestara o médico, segurando pelos pés, o tenorzinho. Mas ele viera ao mundo, sim. A muito contra gosto é bem verdade.  Os pais receberam a trágica notícia de que o bebê era um anão. Fazer o quê? Averiguaram a fundo. Não havendo histórico de nanismo na família, nem da parte dele quanto do dela, acabaram aceitando o fardo, julgando tratar-se, talvez, de alguma provação divina.  Quanto à avó, esta não chegaria a ver os feitos do prodigiozinho, posto que  sofrera um aneurisma e morreu. O que apesar da fatalidade, pouca importância tem no curso desta história. Seguimos, portanto. O curioso, e eu me pego pensando, é que ter um anão na família é mesmo um troço estranho e engraçado. Entretanto, no caso de Simplício Honorino dos Santos, não se tratava de um anão qualquer; desses que costumeiramente vemos todos os dias na televisão levando chutes e bordoadas no traseiro para levar alegria aos seus lares. Não, não era. Simplício era excepcional. Único. O maior trompetista que conheci em vida. Um colosso. Transformava em cifras vivas e pulsantes, toda a dor e alegria que transbordava dentro dele.
Mas você não acredita. Tudo bem. Sigo contando. O fato é que Simplício Honorino dos Santos foi crescendo calado, arredio; carrancudo pelos cantos da casa. O pai que era músico, e que tocava na banda da Marinha Brasileira foi quem dissera à esposa:
“Vamos fazer deste menino, alguém muito importante, Marinalva.” Aos cinco, portanto, deram-lhe uma chuteira e uma camisa do Flamengo. Mas o moleque, que tinha as pernas tortas, chutava errado. Um ano depois, presentearam-lhe com um disco do Simonal, que furioso, ele arremessaria à parede da sala, espatifando-o. Aos onze, ganhara um violão, no que ele selvagemente roera-lhe as cordas. Nada o apetecia. Na sua rua, recebera dos coleguinhas o triste alcunho de cachalote e de cambota, em razão de sua enorme cabeça chata e de suas pernas terrivelmente tortas. O pai, entrementes, não desistia dele – e em uma de suas viagens ao Mediterrâneo, naquele ano de 72, trouxera de lá um trompete de verdade que comprara num bazar de quinquilharias, em um Mercado Persa. O velho que lhe vendeu, advertiu-lhe: “Isto não é um instrumento comum, meu senhor!”
E de fato não era mesmo, garanto-lhes. A esposa estranhou: “Um trompete, Honorino?” O menino olhou interessado pra aquilo. Pareceu gostar. Soprou uma vez. Outra. Depois outra. Foi soprando, até não largar mais do notável instrumento. Foi aprendendo rápido a tocar. Tocava o dia todo. O curioso é que, à medida que ele ia aprendendo a arrancar as primeiras notas daquele instrumento, saiam de lá, borboletinhas coloridas. O seu quarto logo se enchera de borboletinhas coloridas, de variados tamanhos. Esse era o seu mundo até ali: um mundo de borboletinhas coloridas. Mas quando estava profundamente triste, machucado por dentro, porque o chamavam de cambota ou de cachalote, ele fazia sair de seu trompete, um montão de estrelinhas mortas. E todos estes acontecimentos inverossímeis, eu de fato não saberia explicar aos senhores, pois que sentimentos como estes não se explicam, não é mesmo? Óbvio que o tal fenômeno atraíra a atenção dos pais, fazendo-lhes tomar uma decisão muito importante:
                “Nosso filho é um gênio, Marinalva, e aqui no norte, ele não se cria, não.” Mudaram-se então daquela cidade, para uma maior. Uma cidade onde pudessem oportunizar e apresentar ao mundo, o brilhantismo do filho. Estabelecidos naquele novo lugar, levaram-no então a um programa de televisão. Àquela altura, contava catorze. Tornou-se a sensação dos programas vespertinos de domingo. Naquela época, é bom que se diga já se chutavam pra valer traseiros de anões, mas ele tinha o trompete, e dele fazia sair coisas engraçadas. É certo que sua popularidade fora crescendo, não só empolgando o público de casa, mas àqueles que lotavam o auditório, enchendo de orgulho os pais e ainda rendendo fabulosos lucros aos patrocinadores e empresários da televisão que exploravam até a última gota o talento extraordinário do anão. Só que havia um porém: Simplício Honorino dos Santos, e com toda razão, detestava quando o tratavam de anão trompetista:

“E com vocês, o Anão Trompetista!”. Anunciava o apresentador.

“Simplício Honorino dos Santos.” Corrigia ele, batendo o pezinho.

“Simplício, o anão trompetista!” Insistia o apresentador. A platéia espocava de rir. Não da teimosia do anão, que como já disse, era justa e franca, mas dele mesmo, ali sozinho, pernas tortas, metido em roupas de palhaço, largado no centro daquele picadeiro eletrônico, com todos aqueles holofotes ardendo sobre dele. Mas bastou para que soprasse o seu trompete - enchendo de claves coloridas todo aquele ambiente – para que o público, embasbacado, logo viesse abaixo, fazendo estrugir aplausos de todos os lados. A propósito disto, o patrão e os patrocinadores do programa queriam saber como ele fazia aqueles truques ilusionistas tão bem feitos. Mas não se tratava de truque algum, asseguro-lhes, mas de sentimentos vivos e verdadeiros que, inexplicavelmente, se corporificavam, a ponto de todos senti-los, ao leve toque das mãos.  Como explicar? Nem ele próprio sabia. O barato era tocar o seu trompete, alegrar o seu coração e de quem mais o ouvia. Enfim, fazer o que ele sabia fazer de melhor na vida que era tocar o seu instrumento e pronto. Não foi para isso que viera ao mundo?


Caminhamos pro três.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

a louca


I

as cores que surgem no fundo desta tela são estas mesmas.e elas permanecerão assim até o final deste conto. não por mera vaidade.mas porque a pureza só existe em preto e branco.

II

bom. eu estava atrás de um começo. agora que fecho meus olhos profundamente, me vejo imerso nas lembranças do passado que me chegam de um túnel escuro. uma data lá no fundo. aquela que a gente nunca esquece. sexta-feira da paixão.o dia da crucificação de Nosso Senhor. mas, o pior mesmo seria o dia seguinte. o da malhação de Judas. ainda contemplo um céu todo cinzento. euforia na rua. gritaria. os bonecos de pano pendurados nos postes. o dia em que apedrejaram a louca. que a expulsaram dali para sempre.

III

a louca ainda está dentro da minha cabeça. de minhas lembranças. de meu passado.

IV

eu tinha por volta dos meus doze anos de idade. é isso mesmo? eu tinha por volta dos meus doze anos de idade. é. nessa idade, ainda olhamos e sentimos o perfume das coisas com mais pureza. e havia os ensinamentos de minha mãe que me educavam a ser bom. a preservar minha índole de menino. passados todos estes anos, agora crescido, metade humano, metade besta, a louca me vem em fragmentos. como uma fotografia desbotada. descolorida. rasgada ao meio. tarde de abril de 1982. ainda é, posto que tenho meus olhos bem fechados como de um chinês orando baixinho.

V

jogávamos bola na rua, quando a louca apareceu. veio descendo o Beco dos Passos com seu rebolado sensual. uma flor no cabelo. um short amarelo, apertado e curto, agarrado às coxas grossas e alvas porque a louca era branca. corpulenta e terrivelmente branca. ela tinha umas sobrancelhas que eram negras e que se juntavam como as de Frida Kalo. e seus olhos eram de um esverdeado de cegar a gente. a louca era estranhamente bonita. mas, louca. não batia bem da cabeça mesmo não. falava bem no começo coisas que a gente até entendia. mas, depois desbaratava a falar palavras estranhas. e gargalhava. gargalhava alto e cantava uma canção de seu mundo que a gente nunca ouvira na vida. assim era a louca. nunca soube sua idade. nem o seu nome. de onde viera. para onde ia. da primeira vez que a vimos atravessando a rua, paramos com a bola. ela sorriu de lado com a flor no cabelo agradecendo e foi descendo devagar a Boulevar Sá Peixoto, rumo ao bar do Luizinho que ficava bem lá embaixo.

VI

eu nunca tive medo da louca. que mal ela poderia me causar. apesar de seu olhar sedutor e venenoso, a louca tinha alma de criança. o Curupira e o Joca é que tinham medo da louca por influência dos pais. Já eu não. o que eu achava eram aqueles olhos bonitos e faiscantes. e o seu corpo também mexia com alguma coisa lá dentro de mim. nessa época as espinhas e os pelinhos do meu púbis já cresciam afoitos. faziam um pouco de cócegas porque cresciam pontudos e ferozes e minha voz mudava para um tom mais grave. engraçado, né? digo, essas transformações que acontecem no corpo da gente. um dia baixei o meu calção de jogador e mostrei para minha mãe os pentelhinhos que brilhavam. ela apenas sorriu me dizendo: “já tá ficando machinho, meu filho.” as mães, sei lá. são engraçadas. e loucas também. nunca mais esqueço esta tarde. o ferro de gomar. o vento seco estalando nas folhas da goiabeira do quintal. o sorriso encantador de Eunice. o tempo de vida é um instalo. um sopro. um bater de pestanas. o coito de um louva-deus. mas é que havia a louca. ela atrapalhava a gente jogando bola na chuva. suas coxas bem suadas e grossas. suas sobrancelhas negras que se juntavam num semblante gravemente alegre. aquele seu cheiro forte. ela só queria chutar a bola pra longe e gargalhar. gargalhava bem alto olhando o céu com sua mão na cintura feito uma pombagira. eu francamente não via mal algum na louca. nenhum demônio escondido nela. parecia até uma criança como nós. mas era só eu que pensava assim. a mãe do Curupira e do Joca e também  (já ia esquecendo) do Betinho, não.proibiram eles de jogar bola na rua com a louca. é que a louca podia atacá-los.mas isso era invenção das beatas. talvez por inveja da louca?

II PARTE

“a louca mora na Groelandia!” foi o Aritana que nos trouxe a noticia enquanto jogávamos uma partida de botões. o Aritana era filho do seu Nonatinho da taberna do canto. bem encostadinho na do seu Defunto. nem sei se ainda está vivo, o pobre do Aritana."foi ela que disse quando a gente tomava sorvete.” fomos ver no mapa onde ficava a Groelândia. putz, era um lugar longe e frio. e lá  tinha muitos pingüins. será que era por isso que ela tinha aquela pele bem clarona,  e seus dois olhos eram esverdeados que doíam nos meus? me perguntava. não que eu estivesse apaixonado pela louca. sei lá. a louca não era feia, não. só era diferente. tinha classe. a maneira como ela sentava no bar do Luizinho com as pernas cruzadas segurando alto seu copo de cerveja. e às vezes que ela me olhava com elegância por sobre a borda do copo. mas ela olhava era pra todos os homens lá do bar. Inclusive pro Diabo Ruivo que a seduziu.

*
só era chato quando a louca excedia-se na bebida. era mesmo assustador. ela dançava, subia nas mesas; cantava e tirava a roupa. as beatas que passavam à tardinha pra ir pra missa esconjuravam a louca: “demônio!” loucos mesmo eram os que a levavam  para os fundos do bar do Luizinho ou do Defunto e dela se aproveitavam. ela saía de lá descabelada, arranhada, mas com o dinheiro do serviço preso na calcinha. e voltava a beber. quando descobriram que ela trepava nos banheiros, a expulsaram dos bares. a louca já estava passando dos limites...

***
é que a louca não tinha onde dormir, sabe? naquela quinta feira, quando ia pra missa  com minha mãe, eu vi a louca dormindo suja, no banco da pracinha, sob o jambeiro. dormia no sujo e no relento. mesmo assim, ainda continuava viva e bela aos meus olhos. e me sorria. me sorria sempre. dentro da igreja, eu olhava pra cruz de nosso senhor que sofria naqueles dias estranhos e cruéis e eu me perguntava: “os loucos tem um demônio no corpo, Deus?” “Psiuuu, que já já vem as bolachinhas.”Respondia  minha mãe. as bolachinhas eram as hóstias que dona Betinha – nossa vizinha - roubava do altar pra mim e que espantava pra longe meus pensamentos perigosos de menino. as bolachinhas tinham um gosto engraçado de papel. eu mascava aquilo como se fosse uma droga legal, anestesiante. mas na verdade, não tinha gosto de nada. eu olhava pra cruz de Deus e sorria. “se eu pudesse, juro que levava a louca pra comer e dormir lá em casa, Deus.” a lua fria lá em cima, ás vezes me faz pensar na louca. até hoje não entendo a frieza humana. sua bestialidade. seu egoísmo. o homem é um egoísta,  besta e miserável de alma. ainda povoa este planeta com sua bestialidade e com sua falta de amor ao próximo.

***
não mexam nas cores, já disse.deixem-nas como estão.

PARTE III

havia na minha rua  uns maus elementos de verdade: o Marreta, o Deka (conhecido como o diabo ruivo) e o Zé Bigorna. eles moravam no beco da Paz, lá embaixo, quase chegando na beira. eles eram mais velhos que nós, feios, sujos e malvados, como no filme do Etore Escola. eles tocavam o terror na época. comiam o Chiquinho, o Ângelus e o resto da gurizada nas tubulações de ferro da Codrasa que estava em construção. também era perigoso tomar banho na Ponta Branca quando o trio aparecia por lá. sempre tinha alguns de nós que eram seduzidos e arrastados para dentro das embarcações fantasmas. lembro que escapei do Diabo Ruivo muitas vezes. mas foi ele que seduziu a louca. arrastou ela para um balcão abandonado no Beco São Pedro. isso foi na sexta feira da paixão. quando enfiaram aqueles pregos nas mãos de nosso senhor e o penduraram na cruz. ainda me lembro. o céu todo escurecido como graxa. o véu do tempo se fechando sobre a humanidade afogada em pecados. “quem é capaz de enfiar pregos nas mãos de quem nos ama, mãe?” “Psssiuuu, que já já vem as bolachinhas...” Ah, quanta saudade. vontade que tenho de encostar minha cabeça em seu colo outra vez. mas isto não é mais possível. quem nos trouxe a notícia foi o Curió: “ei, vão currar a louca no galpão do Lindoso.” a molecada que jogava bola na rua correu toda pra lá. fizeram fila pra brechar. eram quase seis horas da tarde daquela sexta feira da paixão. eu podia sentir os pregos sendo enterrados na carne de Deus. a gurizada se revezava pra ver pelas brechas de madeira do galpão o corpo branco e nu da louca que brilhava na escuridão. ela sorria. um sorriso esganiçado. parecia querer. gostar. mas era por causa do Diabo Ruivo que a seduziu. o menos feio dos três. o que tinha os caninos perfeitos. Era. deitaram ela toda nua sobre uma mesa de madeira. (não tentem evocar outra cor, eu já disse. deixem o fundo como está.) mas eu acho que era pra mais de cinco marmanjões daqueles. todos nus formando uma fila como cachorros no cio. deleitavam-se da louca. não era uma cena boa de se ver, moço. era sinistro. cruel. desumano. não era uma cena boa de se ver. os meninos com seus pipis de fora, se masturbando do meu lado. a louca gemia lá dentro no galpão. a pele de suas coxas brilhando no escuro. eram umas coxas grossas e enormes. “ei, não vai bater uma com a gente não, Augusto?” olhei com raiva pro Aritana. os outros me olhavam. me desafiavam. “o pipi dele é pequeno, igual de mulherzinha, é por isso.” falou o Três Pernas. riram de mim. não era, não. me ajoelhei e, com lágrimas nos olhos, tirei meu pinto pra fora. “vou provar”. “olha como ele bate punheta!” riram ainda mais com a minha falta de jeito. a louca gritava lá dentro. gemia. gritava. urrava. tiveram que tapar a boca dela. foi só quando o Diabo Ruivo a penetrou, foi que ela aquietou-se. relaxou os músculos. os meninos alucinados, matavam-se na bronha. eu fingia fazer o mesmo. fingia que estava gostando. mas no fundo eu não estava não. eu tinha era vergonha daquilo. de mim. pena da louca. nunca fui igual aos outros meninos mesmo. acho até que não sou normal. alguém lá de dentro viu a gente brechando. e aí tivemos que correr de volta pra rua...

IV

a gente não consegue dormir direito com uma imagem destas na cabeça, não é mesmo? naquele momento de minha vida, não. é natural que compreendesse muito pouco da vida e das atitudes humanas. por isso, eu buscava alento nas preces. a imagem da louca sendo currada e apedrejada, até hoje não me sai da cabeça.  mas havia o sábado de aleluia pra me fazer esquecer.  o dia da malhação de Judas. o dia mais alegre da semana santa. não perdia aquele dia por nada. cedinho, já estava de pé, ganhando as ruas para ver os bonecos de pano  arrancados dos postes, levando pauladas, sendo pisoteados e estripados pela gurizada. fazíamos daquilo uma grande celebração. a celebração de nossas vidas. não havia maldade. tudo não passava de uma brincadeira pura de criança. bem cedo abríamos as janelas de casa e dávamos logo de cara com os bonecos pendurados nos postes. um montão deles. era assustador. mas como era legal. um barato. a gente se divertia á beça. o Judas podia ser qualquer um. da pessoa mais influente (como do meio político, por exemplo) até á pessoa mais comum, moradora do bairro. certa vez, a molecada da rua de cima fez um Judas em homenagem à dona Agaí, que acreditavam ser uma velha bruxa que se transformava em porca nas noites de sexta feira pra correr atrás da meninada que jogava bola na frente da sua casa, no Beco dos Passos. mas dona Agaí era só uma velha solitária e rabugenta que não tinha ninguém na vida e não fazia mal a ninguém. o fato é que hoje não se vê mais Judas nos sábados de aleluia, você ainda vê? os Judas foram esquecidos. tudo é tão sem graça hoje. sem sentido. malham-se pessoas de carne e osso em vez dos bonecos.

***


sei que aquele dia era de uma claridade cinzenta e enevoada. uma manhã triste, fria, estranha. olhei para o alto e os traidores de pano permaneciam  todos ali, pendurados nos postes e nas árvores.  fui arriando  devagar meu pau de bater em Judas, logo que vi a louca descendo a Boulevard Sá Peixoto, bêbada e suja de sangue. uma multidão de gente seguia atrás dela, xingando-a e atirando-lhes pedras. pessoas de todas as idades. até crianças. a louca descia suja, descabelada e coberta de sangue. por onde passava era xingada. escorraçada. não havia ninguém pela louca. para se defender, ela parava um instante, arriava seu short e mostrava seu sexo menstruado. depois, com as mãos na cintura, gargalhava alto para o céu, soltando aquela sua risada diabólica de louca. a multidão a empurrava para o final da rua. a enxotavam. queriam vê-la longe. algumas das  beatas comandavam o pilotão de fuzilamento. a louca cuspia nelas e as xingava com palavras incompreensíveis. os judas permaneciam pendurados. esquecidos. malhavam a louca, em vez dos bonecos. sentimentos estranhos brotavam em mim. ódio e compaixão. Impotência e justiça. eu não sei o quê mais que me faziam fechar os punhos e encher meu coração de angústia e revolta. o leitor talvez não acredite, mas é que fui levado por um estranho impulso ou algo parecido, que me obrigou a aproximar-se da louca, assim que a deixaram em paz, no canto da rua, bem no cruzamento da Boulevard  com a Manuel Urbano. ela ofegava e fedia á beça quando segurei na sua mão. mas não liguei para isso. era um dia mesmo frio e visagento. o céu desmaiado, coberto de graxa.  um dia sem cor.  mas a pele da louca era macia quando peguei em sua mão. suas unhas compridas e pintadas de vermelho. não sei o que deu em mim que não tive medo ou vergonha da louca. a chamei para ir lá em casa. ela até olhou para mim. aqueles seus olhos vivos, comoventes que me atravessavam. a louca não me faria algum mal. só estranhou que eu tivesse pegado em sua mão. que a conduzisse. sorria me olhando de cima à baixo.  descemos a rua de mãos dadas. a louca sorrindo. todos olhando. o seu Apaga Luz da janela balançando sua cabeça como se dissesse, “o Augusto ficou louco.” chegando em casa com a louca, pedi-lhe que me esperasse na varanda que eu ia buscar comida e roupas para ela. no que ela disse, “então ta!” a deixei sorrindo de gratidão, sentada no pátio de casa, olhando as catraias no rio. precisava falar pra Eunice sobre a louca. ela tomou um susto enorme quando foi olhar na janela: “ficou doido, Augusto? trazer esta mulher para casa?” mesmo assim, ela foi preparar o café: pão, manteiga, ovos e até geléia. as mães. também separou uma toalha e uma muda de roupas. empilhou-as direitinho. “não sei onde andas com a cabeça, meu filho.” no fundo minha mãe sorria de meu desatino. lembro do brilho de seus olhos, da sua face clara, de seu sorriso materno. de sua lealdade de mãe. ah, que vontade de novo de encostar minha cabeça em seu colo e descansar. pedir-lhe perdão por tudo. aninhar-me em seu ventre morno para sempre.  mas um dia tudo foi. restam agora folhas secas no chão. varridas pelo tempo que não volta nunca mais. “Pronto! leva isto pra ela e deixe-a ir embora. mamãe te ama.” atravessei todo contente o corredor de casa. um corredor largo e generoso. ao chegar no pátio, dei com ele vazio. a louca não estava mais lá. olhei para os lados. para o céu também. não havia sinal algum da louca. estranho. nem mesmo seu cheiro. nada. apenas um vento. o ar frio e puro daquela manhã em preto e branco.