terça-feira, 11 de novembro de 2014

O HÓSPEDE DO BANHEIRO

Eu andava ás voltas com um novo conto, quando senti a presença de uma sombra magra e apequenada posicionar-se atrás de mim. Virei-me subitamente e dei com a Mosca que segurava muito à vontade, uma xícara de café e um pedaço de pão:

“Pô, cara, que susto!”

“Ah, me desculpa, te assustei, não foi?”

“Faça isso não, cara.”  

“É que o banheiro tava muito frio e eu vim tomar um pouco de Nescau quente.” 

  Disse aquilo sentando-se em seguida à beira da cama. Parecia mesmo muito à vontade pela casa. E aquilo não soava bem. Como se não bastasse, perguntou:

“O que está escrevendo agora?” Voltei-me furioso em sua direção, e disse:

“Não interessa. Olha, deixa eu te explicar uma coisa. Não me leva a mal, mas é que eu não gosto que fique entrando e saindo da casa sem o meu consentimento.”

“Eu sei, eu sei, é que eu precisava tomar alguma coisa quente. Faz um frio desgraçado no chão daquele teu banheiro. O colchonete não resolve, e eu ainda fui perder a porra da minha rede.”

“Não, você não perdeu, você penhorou na boca a porra da rede, você me disse.”

“Tá, eu penhorei, tudo bem...”

“Então, e eu não tenho nenhuma para emprestar-lhe agora...”

“Não estou pedindo nada emprestado. Estou sabendo me virar muito bem naquele banheiro frio. Tudo é uma questão de adaptar o corpo a qualquer circunstância da vida. Não sei se já lhe contei esta, mas certa vez, quando peguei a estrada para Venezuela, dormi no acostamento da Basiléia, debaixo de uma carroceria de caminhão abandonada. Havia só um cara lá dormindo debaixo de um cobertor sujo e mal cheiroso que mal cabia-lhe o corpo. E fazia um frio desgraçado, putz!  Me sentei perto dele e perguntei se ele podia  dividir o agasalho comigo. Ele grunhiu de lá qualquer coisa, aí então eu mostrei-lhe uma garrafa de cachaça pela metade e algumas castanholas que eu havia colhido pelo caminho. Ele permitiu que eu me aproximasse dele e fizemos um leve banquete. Naquela noite,  revezamos o cobertor e eu tive um sonho mais ou menos tranqüilo, então eu lhe digo que não estou me queixando de nada, só preciso aquecer um pouco as células do meu corpo, não me leve a mal, sim?

“Tá tudo bem, só me faz esse favor, de não ficar entrando e saindo sem minha permissão...”

“Pode deixar. Mas eu tenho uma coisa pra te contar, mas espero você acabar aí, não quero atrapalhar. Lhe espero na sala.”

Ele então deixou o quarto em passos leves de ladrão e foi para a sala. Fiquei ainda ali pelejando com conto, mas logo desisti dele e desliguei o computador.
Na sala, o flagrei sereno enrolando seu baseadinho:

“Mas já?”

“É o costume. O sol brilha melhor pela manhã depois do primeiro baseado.”

“Só que eu estou com uma sobrinha agora passando uns dias aqui em casa, e acho que não fica legal.”

“E eu não sei. E ela é uma gracinha, radiante e inteligente, com todo respeito. Mas enrolo esse aqui e vou fumá-lo no banheiro, fica tranqüilo.”

“E o que você ia me falar mesmo?”

“Ah, sim, cara, larguei aquela joça lá...”

“O trabalho no Cinco Estrela?”

“Aquilo lá é um inferno, cara, e você é explorado até á medula.”

“Tá, mais como é que tu vai se virar agora?”

“Como sempre me virei. Voltarei com os artesanatos e pegarei a estrada outra vez. Vou passar uns meses na Venezuela. Tenho um corpo e ele não está preso à servidão nenhuma.” Disse ele celando definitivamente o papelote com a língua. Fazia aquilo com uma perícia impecável.

“E o que aconteceu dessa vez?”

“Deixa eu lhe contar. Um tal de Gerente voltou a trabalhar como garçon. O Cinco alugou um dos quartos pra ele e pra esposa, e ele agora trabalha de graça pra pagar o aluguel. Só que o sujeito, esse tal de Gerente, além de grosseirão, é bastante enrolado, e ainda por cima espanca a  própria esposa e ninguém consegue dormir com os gritos dela. Uma noite dessas, uma vizinha ao lado, após ouvir o quebra-quebra e gritaria, acudiu em defesa da mulher que apanhava, e o Gerente, como se não bastasse os impropérios, acertou-lhe um soco no peito da intrometida que a lançara ao chão. Ela então esperou o marido chegar, e aos prantos, contou-lhe todo o ocorrido. O cara, que me parece um cabo da polícia, armou-se do seu revólver e foi até o Bar do Cinco tomar as satisfações devidas. O azar é que o Gerente encontrava-se na cozinha conversando comigo quando o brutamontes do cabo entrou  e apontou-lhe a arma para a cabeça dele.  Fez-lhe ajoelhar aos seus pés. O cara urinou-se todo porque aquilo lá ia disparar de verdade. Eu fiquei sem voz, encolhido no canto imaginando os miolos do Gerente espalhados pela cozinha. Ouvi o gatilho sendo acionado, e o som que fez era seco, como dentes amolados que se trincam de pavor. Então tomei coragem e disse: “Vai com calma aí cara, foi o que eu disse. “Fica na tua, poeta! Esse sujeito tem que aprender a respeitar a mulher dos outros.” E bumba! Só que – para meu alívio - não foi um tiro, mas um tabefe certeiro que o valentão dera no Gerente, seguidos de pontapés e uma infinidade de murros. O pobre do Gerente apanhou muito e eu não pude fazer nada. Até achei bom ele apanhar daquele jeito pra aprender, por outro lado, a cozinha ficou um estrago. Mais tarde, após toda aquela confusão, O Cinco, eu e mais um morador de rua que sempre estava por ali no bar mendigando umas doses de conhaque, olhávamos atordoados para o corpo desacordado do Gerente:

“Tu e tu, pega esse filha da puta e arrasta lá pra trás.” Ordenou o Cinco. “E eu quero essa minha cozinha limpa, poeta!”

  Eu e o sujeito arrastamos o corpo pros fundos. O cara voltava devagar. Estava mesmo bastante machucado:

 “Ei poeta, tem como descolar uma dose daquelas de conhaque pra nós?” Perguntou o morador de rua. Olhei pra ele e disse:

  “Até uma garrafa, se você quiser.”

  Depois, voltei para a cozinha, limpei tudinho como ele havia mandado. Até furei meus pés em alguns cacos de vidro. Mas deixei a cozinha bem arrumadinha e cheirosa outra vez. Já se aproximava das duas da manhã. Eu vi no relógio da parede. Já havia uns poucos clientes. Os mais enjoados haviam deixado o Bar. Restando só aqueles que ainda acreditavam em algum latido de esperança.  
  Uma boa hora, portanto, pra eu negociar com o Cinco.  Eu ainda usava a touca e cheirava a fritura de tomates e cebolas. Então eu disse pro Cinco:

“Cara, preciso que você aumente minha diária.”

“Porra, você tá aqui há menos de um mês e já quer aumento? Rola não, poeta. Volta pro teu posto é que é, caralho.”

“Tudo bem então.” Disse-lhe, abrindo um sorriso camarada.

“Olha, escuta, prepara um tira gosto daqueles pra mim.”

“Sim senhor.”
 Voltei pra cozinha. Caprichei no tira gosto. O seu cheiro espalhou-se pelo bar inteiro. Tenho certeza que seu aroma alcançou o outro lado da rua. Sei bem como agradar um bom paladar. Até do mais frio e miserável dos homens. Olhei para o alimento no prato, puxei o catarro de dentro do peito e cuspi sobre a comida. Fui servi-lo. Aproveitei o momento  em que ele ficou distraído deliciando-se com o prato, e surrupie-lhe uma garrafa de alcatrão sobre a prateleira. Levei para a cozinha e a escondi na bolsa. Removi imediatamente meu avental e minha touca, lavei bem as mãos e preparei-me para dar o fora. Ao me ver passar apressado, ele levantou a vista do prato e gritou de boca cheia, desesperado:

“Ei poeta! Onde tu vai?”

“Sacando fora!”

“Não pode fazer isso não, porra!”

“Não posso é um caralho. Eu sou livre!”

“Não vou lhe pagar diária porra nenhuma.”

“Faz o que você quiser com a grana. Pode até enfiar naquele lugar. Fui!” Ele ficou de lá gritando com as mãos no quadril. Me xingando pra valer. Alguns bebuns riam da cena. Mas eu já ia longe. Atravessando a noite alta e fria. Encontrei  o  sujeito  que me ajudou com o corpo do Gerente. Ele dormia sobre um banco de concreto de uma parada de ônibus.  Cutuquei-lhe o corpo molabento e mostrei-lhe a garrafa de conhaque inteiraça. Ele abriu um largo sorriso:


“Porra, poeta, tu é de fé mesmo.” Trazia também comigo uns queijos e mortadelas que havia me apropriado da cozinha do Cinco. Atravessamos a rua, e nos alojamos debaixo de uma marquise. Detonamos os dois, aquela garrafa inteira de conhaque. Sabe, Mário, as pessoas acham mesmo que me conhecem, mas o que elas não sabem é que sou um lutador de esgrima, e que a cada manhã, me nasce um sol diferente e eu então sigo caminhando, indiferente as dores, e talvez isso me baste, me salve, me redima... O homem é o seu próprio destino, e portanto eu vou...”

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