Eu andava ás voltas com um novo conto,
quando senti a presença de uma sombra magra e apequenada posicionar-se atrás de
mim. Virei-me subitamente e dei com a Mosca que segurava muito à vontade, uma
xícara de café e um pedaço de pão:
“Pô, cara, que susto!”
“Ah, me desculpa, te assustei,
não foi?”
“Faça isso não, cara.”
“É que o banheiro tava muito frio
e eu vim tomar um pouco de Nescau quente.”
Disse aquilo sentando-se em seguida
à beira da cama. Parecia mesmo muito à vontade pela casa. E aquilo não soava
bem. Como se não bastasse, perguntou:
“O que está escrevendo agora?” Voltei-me
furioso em sua direção, e disse:
“Não interessa. Olha, deixa eu te
explicar uma coisa. Não me leva a mal, mas é que eu não gosto que fique
entrando e saindo da casa sem o meu consentimento.”
“Eu sei, eu sei, é que eu
precisava tomar alguma coisa quente. Faz um frio desgraçado no chão daquele teu
banheiro. O colchonete não resolve, e eu ainda fui perder a porra da minha
rede.”
“Não, você não perdeu, você penhorou
na boca a porra da rede, você me disse.”
“Tá, eu penhorei, tudo bem...”
“Então, e eu não tenho nenhuma
para emprestar-lhe agora...”
“Não estou pedindo nada
emprestado. Estou sabendo me virar muito bem naquele banheiro frio. Tudo é uma
questão de adaptar o corpo a qualquer circunstância da vida. Não sei se já lhe
contei esta, mas certa vez, quando peguei a estrada para Venezuela, dormi no
acostamento da Basiléia, debaixo de uma carroceria de caminhão abandonada.
Havia só um cara lá dormindo debaixo de um cobertor sujo e mal cheiroso que mal
cabia-lhe o corpo. E fazia um frio desgraçado, putz! Me sentei perto dele e perguntei se ele
podia dividir o agasalho comigo. Ele
grunhiu de lá qualquer coisa, aí então eu mostrei-lhe uma garrafa de cachaça
pela metade e algumas castanholas que eu havia colhido pelo caminho. Ele
permitiu que eu me aproximasse dele e fizemos um leve banquete. Naquela
noite, revezamos o cobertor e eu tive um
sonho mais ou menos tranqüilo, então eu lhe digo que não estou me queixando de
nada, só preciso aquecer um pouco as células do meu corpo, não me leve a mal,
sim?
“Tá tudo bem, só me faz esse
favor, de não ficar entrando e saindo sem minha permissão...”
“Pode deixar. Mas eu tenho uma
coisa pra te contar, mas espero você acabar aí, não quero atrapalhar. Lhe
espero na sala.”
Ele então deixou o quarto em
passos leves de ladrão e foi para a sala. Fiquei ainda ali pelejando com conto,
mas logo desisti dele e desliguei o computador.
Na sala, o flagrei sereno
enrolando seu baseadinho:
“Mas já?”
“É o costume. O sol brilha melhor
pela manhã depois do primeiro baseado.”
“Só que eu estou com uma sobrinha
agora passando uns dias aqui em casa, e acho que não fica legal.”
“E eu não sei. E ela é uma gracinha,
radiante e inteligente, com todo respeito. Mas enrolo esse aqui e vou fumá-lo
no banheiro, fica tranqüilo.”
“E o que você ia me falar mesmo?”
“Ah, sim, cara, larguei aquela
joça lá...”
“O trabalho no Cinco Estrela?”
“Aquilo lá é um inferno, cara, e você
é explorado até á medula.”
“Tá, mais como é que tu vai se
virar agora?”
“Como sempre me virei. Voltarei
com os artesanatos e pegarei a estrada outra vez. Vou passar uns meses na
Venezuela. Tenho um corpo e ele não está preso à servidão nenhuma.” Disse ele
celando definitivamente o papelote com a língua. Fazia aquilo com uma perícia impecável.
“E o que aconteceu dessa vez?”
“Deixa eu lhe contar. Um tal de
Gerente voltou a trabalhar como garçon. O Cinco alugou um dos quartos pra ele e
pra esposa, e ele agora trabalha de graça pra pagar o aluguel. Só que o
sujeito, esse tal de Gerente, além de grosseirão, é bastante enrolado, e ainda
por cima espanca a própria esposa e ninguém
consegue dormir com os gritos dela. Uma noite dessas, uma vizinha ao lado, após
ouvir o quebra-quebra e gritaria, acudiu em defesa da mulher que apanhava, e o
Gerente, como se não bastasse os impropérios, acertou-lhe um soco no peito da
intrometida que a lançara ao chão. Ela então esperou o marido chegar, e aos
prantos, contou-lhe todo o ocorrido. O cara, que me parece um cabo da polícia,
armou-se do seu revólver e foi até o Bar do Cinco tomar as satisfações devidas.
O azar é que o Gerente encontrava-se na cozinha conversando comigo quando o
brutamontes do cabo entrou e apontou-lhe
a arma para a cabeça dele. Fez-lhe
ajoelhar aos seus pés. O cara urinou-se todo porque aquilo lá ia disparar de
verdade. Eu fiquei sem voz, encolhido no canto imaginando os miolos do Gerente
espalhados pela cozinha. Ouvi o gatilho sendo acionado, e o som que fez era seco,
como dentes amolados que se trincam de pavor. Então tomei coragem e disse: “Vai
com calma aí cara, foi o que eu disse. “Fica na tua, poeta! Esse sujeito tem
que aprender a respeitar a mulher dos outros.” E bumba! Só que – para meu alívio
- não foi um tiro, mas um tabefe certeiro que o valentão dera no Gerente,
seguidos de pontapés e uma infinidade de murros. O pobre do Gerente apanhou
muito e eu não pude fazer nada. Até achei bom ele apanhar daquele jeito pra
aprender, por outro lado, a cozinha ficou um estrago. Mais tarde, após toda
aquela confusão, O Cinco, eu e mais um morador de rua que sempre estava por ali
no bar mendigando umas doses de conhaque, olhávamos atordoados para o corpo
desacordado do Gerente:
“Tu e tu, pega esse filha da puta
e arrasta lá pra trás.” Ordenou o Cinco. “E eu quero essa minha cozinha limpa,
poeta!”
Eu e o sujeito arrastamos o corpo
pros fundos. O cara voltava devagar. Estava mesmo bastante machucado:
“Ei poeta, tem como descolar uma
dose daquelas de conhaque pra nós?” Perguntou o morador de rua. Olhei pra ele e
disse:
“Até uma garrafa, se você
quiser.”
Depois, voltei para a cozinha,
limpei tudinho como ele havia mandado. Até furei meus pés em alguns cacos de
vidro. Mas deixei a cozinha bem arrumadinha e cheirosa outra vez. Já se
aproximava das duas da manhã. Eu vi no relógio da parede. Já havia uns poucos
clientes. Os mais enjoados haviam deixado o Bar. Restando só aqueles que ainda
acreditavam em algum latido de esperança.
Uma boa hora, portanto, pra eu negociar com o
Cinco. Eu ainda usava a touca e cheirava
a fritura de tomates e cebolas. Então eu disse pro Cinco:
“Cara, preciso que você aumente
minha diária.”
“Porra, você tá aqui há menos de
um mês e já quer aumento? Rola não, poeta. Volta pro teu posto é que é,
caralho.”
“Tudo bem então.” Disse-lhe,
abrindo um sorriso camarada.
“Olha, escuta, prepara um tira
gosto daqueles pra mim.”
“Sim senhor.”
Voltei pra cozinha. Caprichei no tira gosto. O
seu cheiro espalhou-se pelo bar inteiro. Tenho certeza que seu aroma alcançou o
outro lado da rua. Sei bem como agradar um bom paladar. Até do mais frio e miserável
dos homens. Olhei para o alimento no prato, puxei o catarro de dentro do peito
e cuspi sobre a comida. Fui servi-lo. Aproveitei o momento em que ele ficou distraído deliciando-se com
o prato, e surrupie-lhe uma garrafa de alcatrão sobre a prateleira. Levei para
a cozinha e a escondi na bolsa. Removi imediatamente meu avental e minha touca,
lavei bem as mãos e preparei-me para dar o fora. Ao me ver passar apressado, ele
levantou a vista do prato e gritou de boca cheia, desesperado:
“Ei poeta! Onde tu vai?”
“Sacando fora!”
“Não pode fazer isso não, porra!”
“Não posso é um caralho. Eu sou
livre!”
“Não vou lhe pagar diária porra nenhuma.”
“Faz o que você quiser com a
grana. Pode até enfiar naquele lugar. Fui!” Ele ficou de lá gritando com as
mãos no quadril. Me xingando pra valer. Alguns bebuns riam da cena. Mas eu já
ia longe. Atravessando a noite alta e fria. Encontrei o sujeito
que me ajudou com o corpo do Gerente.
Ele dormia sobre um banco de concreto de uma parada de ônibus. Cutuquei-lhe o corpo molabento e mostrei-lhe a
garrafa de conhaque inteiraça. Ele abriu um largo sorriso:
“Porra, poeta, tu é de fé mesmo.”
Trazia também comigo uns queijos e mortadelas que havia me apropriado da
cozinha do Cinco. Atravessamos a rua, e nos alojamos debaixo de uma marquise. Detonamos
os dois, aquela garrafa inteira de conhaque. Sabe, Mário, as pessoas acham mesmo
que me conhecem, mas o que elas não sabem é que sou um lutador de esgrima, e
que a cada manhã, me nasce um sol diferente e eu então sigo caminhando,
indiferente as dores, e talvez isso me baste, me salve, me redima... O homem é o
seu próprio destino, e portanto eu vou...”
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