***
Eu não sei o que
acontece com este olho esquerdo. Parece ser
uma sina. É sempre ele que recebe os
golpes duros da vida; da mesquinhez e do ódio humano.
P.J estava
possuído naquela noite. Havia bebido e cheirado aos montões. E agora me acusava
de estar tendo um caso amoroso com Berenice. Disse ainda que ele não era corno
coísíssima nenhuma - e que eu iria pagar muito caro por estar fazendo aquilo
com ele. Tudo de que me lembro é do rosto da Madonna transfigurando-se numa
coisa hedionda logo que recebi aquela garrafada certeira na cara. Levantei-me terrivelmente
nervoso da mesa procurando imediatamente o meu globo ocular pelo chão. NADA.
Deixei calmamente aquele bar e atravessei cambaleante em direção à praça. Os sinos da São Sebastião bateram horrorizados.
Uma da manhã. Senti medo. Solidão. Pavor de estar cego. Já um pouco distante
dali, e mais seguro, sentei-me em algum banco de que não me lembro bem e procurei
mais uma vez por meu globo ocular. Chequei amargamente nos bolsos da camisa. Pelo
chão. Eu não sentia mais o meu olho esquerdo de verdade bater. Cogitei tê-lo
perdido definitivamente. Segui andando, atordoado. A madrugada era fria como
num conto de Edgar Alan Poe. (mas isso não é hora pra brincadeiras, Mário) Bom. Fui
sentindo dor e solidão. Fiquei dando voltas e voltas pelo centro da cidade,
talvez em busca de alguma resposta para a selvageria humana. Parei numa
vendinha suja, já ali pelos arredores do porto hidroviário e pedi um conhacão daqueles
de arrebentar o peito e cozinhar os miolos. Uma moça veio me trazer a bebida.
Ela me olhou estranho enquanto limpava a mesa com um paninho fedido. O bar
fedia. As pessoas fediam. A garçonete fedia. A cidade fedia. Tudo federia muito
mais se eu perdesse o meu olho. 0 OLHO É O OLFATO DA ALMA. Arre que fui tomando goles carrascos
de meu conhacão que me descia amargamente e me acariciava o fígado como a mão enluvada
de Deus. A garçonete me olhava com tanta curiosidade e penúria que acabei
arriscando:
- Diga-me sinceramente,
meu bem, se eu perdi este meu olho, porque eu não o sinto mais bater neste
lugar.
- Está
terrivelmente inchado que não dá para ver bem, meu senhor. Ela disse. Depois
ela sugeriu que eu fosse olhar no espelho do banheiro, mas achei melhor que não,
e acreditei nela e pedi a ela uma outra dose de conhacão que me foi servido
prontamente. Duas doses daquela bebida de alma negra e reluzente seria o bastante para eu
continuar andando e pensando na lógica do ódio humano – e não obstante toda a
desgraça sofrida, parecia ser aquela, uma noite maravilhosamente agradável e
doce. Paguei as doses e segui pensando: tudo vão lhe roubando bem devagar; a
esperança, a alma, os sonhos, e agora o olho. O olho que tudo vê e que tudo
sente. As glórias do céu e do inferno. Mas nada nos destrói ou enfraquece. Só nos
deixam um pouco mais humanos e pensantes. Resolvi bater na casa dela àquela
hora da noite. Explicar a ela o que
aconteceu e pedir que tomasse as providências que cabiam a qualquer mulher de
sensatez humana. Bati na porta dela às duas da manhã. Foi ela mesma que atendeu.
Tomara até um susto em me ver ali naquele estado deplorável da alma:
- Que foi isso,
Mário?
- P.J me acertou este olho com uma garrafa.
- Meu Deus! Entra!
Ela disse. Entrei. Sentamos em um sofá. Tudo ali parecia fora de órbita. De
lugar.
Mas aí eu disse
pra ela:
- Não sinto mais ele
aqui batendo. Acho que finalmente o perdi.
- Está muito
inchado para ver se perdeu. Vou pegar uma compressa de gelo para baixar o
inchaço. Ela disse. O outro olho que estava vivo e que acompanhava tudo impassívelmente
do outro lado do espaço observou com certa malícia que ela usava uma camisolinha
linda e bem curtinha, cor de limão, e que seu rosto continuava redondo e lindo
com uma nádega infantil e doce. Ela iria cuidar de mim agora. Posicionou-me em seu colo e comprimiu com delicadeza o pano molhado e gelado em cima
do inchaço do olho. Fui me sentindo melhor.
- Não usarei um tapa olho e muito menos um maquinismo
de vidro no lugar. Saberei muito bem conviver com este buraco.
- Deixa de
besteira, o olho está no lugar. Foi só um baque. Me olhou e sorriu.
- A culpa é sua,
Berenice. Você tem um dedo podre para os homens.
- O quê que eu
posso fazer?
Ficamos em silêncio.
Depois eu disse:
- E se ele voltar?
- Tranquei as
portas e reforcei os cadeados. Vai ficar seco de gritar que não abro. Fica
calmo.
Fiquei ali no
seu colo como uma criança sentindo o perfume de suas coxas brancas. As suas
varizes rosadas. Ai ela levantou-se e, sensualmente descalça, foi até a cozinha,
retornando de lá com dois copos e uma garrafa de vinho. Bebemos. E quando meu
olho finalmente voltou á vida, eu pude olhar outra vez aquele seu sorriso de
rosas naquele seu rosto de leite. A iluminária toda azul no centro da sala...
Nenhum comentário:
Postar um comentário