PARTE I
Tolice. Nada se explica. Nem mesmo nossa presença no mundo. Ainda
sim, vou lhes contar.
Sentava-se sempre nos fundos daquele bar e ali ficava sem que ninguém o
percebesse. Um dia, ele sacou seu trompete e pôs-se a tocar: “Ora, um anão trompetista,” estranhei. Todavia,
do seu trompete saiam flores, rosas, corais, luas, estrelas, navalhas, corações
espicaçados... Tudo enfim saía dali de dentro sem nenhuma explicação aparente. Não
obstante – e já refeitos do susto - a clientela punha-se a dançar alegremente embalados
pelas imagens e pelo som doce-amargo daquele instrumento encantado. Não tardou
para que o dono do bar lhe oferecesse de pronto o emprego. E Simplício Honorino
dos Santos (pois este era seu nome de batismo) passou da amargura daquele momento
ao prazer absoluto da vida que era o simples deleite de tocar o seu trompete
mágico. Foi assim que o conheci, naquele ano e lugar, e ele então me contou um
pouco da sua vida.
PARTE II
É óbvio que para melhor entendermos
este comecinho de história, sugiro que voltemos bem lá atrás – naquele julho de
1960 - que foi o ano que Simplício nascera. Os médicos lutaram heroicamente. A
cabeça de tão chata e grande, dificultou-lhe deveras a passagem, levando quase
a óbito, a pobre mãe. Mas nascera. Contrariando toda a lógica de um parto digno
e natural que confere a uma criança normal. De outro modo, morreria ali dentro estrangulado
pelo cordão umbilical. Nas mãos do parturiente a criaturinha estourava de
gritar. Um grito estranho e estridente que mais parecia o som agudo de um instrumento
afinado. “Um anão, que azar!” Atestara o médico, segurando pelos pés, o
tenorzinho. Mas ele viera ao mundo, sim. A muito contra gosto é bem verdade. Os pais receberam a trágica notícia de que o
bebê era um anão. Fazer o quê? Averiguaram a fundo. Não havendo histórico de nanismo
na família, nem da parte dele quanto do dela, acabaram aceitando o fardo, julgando
tratar-se, talvez, de alguma provação divina. Quanto à avó, esta não chegaria a ver os
feitos do prodigiozinho, posto que sofrera
um aneurisma e morreu. O que apesar da fatalidade, pouca importância tem no
curso desta história. Seguimos, portanto. O curioso, e eu me pego pensando, é
que ter um anão na família é mesmo um troço estranho e engraçado. Entretanto, no
caso de Simplício Honorino dos Santos, não se tratava de um anão qualquer; desses
que costumeiramente vemos todos os dias na televisão levando chutes e bordoadas
no traseiro para levar alegria aos seus lares. Não, não era. Simplício era
excepcional. Único. O maior trompetista que conheci em vida. Um colosso. Transformava
em cifras vivas e pulsantes, toda a dor e alegria que transbordava dentro dele.
Mas você não acredita. Tudo bem. Sigo contando. O fato é que Simplício Honorino
dos Santos foi crescendo calado, arredio; carrancudo pelos cantos da casa. O
pai que era músico, e que tocava na banda da Marinha Brasileira foi quem dissera
à esposa:
“Vamos fazer deste menino, alguém muito importante, Marinalva.” Aos cinco,
portanto, deram-lhe uma chuteira e uma camisa do Flamengo. Mas o moleque, que
tinha as pernas tortas, chutava errado. Um ano depois, presentearam-lhe com um
disco do Simonal, que furioso, ele arremessaria à parede da sala, espatifando-o.
Aos onze, ganhara um violão, no que ele selvagemente roera-lhe as cordas. Nada
o apetecia. Na sua rua, recebera dos coleguinhas o triste alcunho de cachalote e
de cambota, em razão de sua enorme cabeça chata e de suas pernas terrivelmente tortas.
O pai, entrementes, não desistia dele – e em uma de suas viagens ao
Mediterrâneo, naquele ano de 72, trouxera de lá um trompete de verdade que
comprara num bazar de quinquilharias, em um Mercado Persa. O velho que lhe
vendeu, advertiu-lhe: “Isto não é um instrumento comum, meu senhor!”
E de fato não era mesmo, garanto-lhes. A esposa estranhou: “Um trompete,
Honorino?” O menino olhou interessado pra aquilo. Pareceu gostar. Soprou uma
vez. Outra. Depois outra. Foi soprando, até não largar mais do notável instrumento.
Foi aprendendo rápido a tocar. Tocava o dia todo. O curioso é que, à medida que
ele ia aprendendo a arrancar as primeiras notas daquele instrumento, saiam de
lá, borboletinhas coloridas. O seu quarto logo se enchera de borboletinhas
coloridas, de variados tamanhos. Esse era o seu mundo até ali: um mundo de
borboletinhas coloridas. Mas quando estava profundamente triste, machucado por
dentro, porque o chamavam de cambota ou de cachalote, ele fazia sair de seu
trompete, um montão de estrelinhas mortas. E todos estes acontecimentos
inverossímeis, eu de fato não saberia explicar aos senhores, pois que sentimentos
como estes não se explicam, não é mesmo? Óbvio que o tal fenômeno atraíra a
atenção dos pais, fazendo-lhes tomar uma decisão muito importante:
“Nosso
filho é um gênio, Marinalva, e aqui no norte, ele não se cria, não.” Mudaram-se
então daquela cidade, para uma maior. Uma cidade onde pudessem oportunizar e
apresentar ao mundo, o brilhantismo do filho. Estabelecidos naquele novo lugar,
levaram-no então a um programa de televisão. Àquela altura, contava catorze. Tornou-se
a sensação dos programas vespertinos de domingo. Naquela época, é bom que se
diga já se chutavam pra valer traseiros de anões, mas ele tinha o trompete, e
dele fazia sair coisas engraçadas. É certo que sua popularidade fora crescendo,
não só empolgando o público de casa, mas àqueles que lotavam o auditório, enchendo
de orgulho os pais e ainda rendendo fabulosos lucros aos patrocinadores e empresários
da televisão que exploravam até a última gota o talento extraordinário do anão.
Só que havia um porém: Simplício Honorino dos Santos, e com toda razão, detestava
quando o tratavam de anão trompetista:
“E com vocês, o Anão Trompetista!”.
Anunciava o apresentador.
“Simplício Honorino dos Santos.”
Corrigia ele, batendo o pezinho.
“Simplício, o
anão trompetista!” Insistia o apresentador. A platéia espocava de rir. Não da
teimosia do anão, que como já disse, era justa e franca, mas dele mesmo, ali sozinho,
pernas tortas, metido em roupas de palhaço, largado no centro daquele picadeiro
eletrônico, com todos aqueles holofotes ardendo sobre dele. Mas bastou para que
soprasse o seu trompete - enchendo de claves coloridas todo aquele ambiente – para
que o público, embasbacado, logo viesse abaixo, fazendo estrugir aplausos de
todos os lados. A propósito disto, o patrão e os patrocinadores do programa queriam
saber como ele fazia aqueles truques ilusionistas tão bem feitos. Mas não se
tratava de truque algum, asseguro-lhes, mas de sentimentos vivos e verdadeiros
que, inexplicavelmente, se corporificavam, a ponto de todos senti-los, ao leve
toque das mãos. Como explicar? Nem ele próprio
sabia. O barato era tocar o seu trompete, alegrar o seu coração e de quem mais
o ouvia. Enfim, fazer o que ele sabia fazer de melhor na vida que era tocar o
seu instrumento e pronto. Não foi para isso que viera ao mundo?
Caminhamos pro
três.
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