sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O VELÓRIO DO RAIMUNDO PERFUMADO - OU O PRIMEIRO BEIJO

I

Chovia no velório de Raimundo Perfumado. O velório mais triste e mais estranho de que me lembro. Foi aí então que ela me apareceu...

II

   A chuva espocava lamuriante no lajedo da capelinha da paróquia: o som oco, duro, perturbador e apaixonante da chuva. Eu segurava fortemente nas mãos de minha mãe que era pra não deixá-la chorar. Mas o seu semblante era duro e firme enquanto olhávamos para aquele esquife largado e sofrido no centro do salão. Lembro de seus óculos escuros; o lenço colorido e elegante formando um discreto xale em volta de seu pescoço materno e delicado. (Que Deus me conserve a lembrança desta imagem para sempre!) Aonde quer que ela fosse ou estivesse, havia sempre de espalhar o seu charme, sua coragem, seu aroma de amor e sua bondade humana. Aí, uma senhorinha se aproximou de nós. Chamava-se, Dona Betinha. Carregava seus quase oitenta e poucos anos nas costas encurvadas pelo tempo. Naquele momento de dor careada, eu lembro o que ela disse para minha mãe:

  “Você, Eunice, foi mãe e pai desse menino! Eu acompanhei a tua aflição, minha filha. Mas ele agora não sofre mais. Foi daqui pro colo de Deus! Já o irmão do Zé Arigó – este infeliz - já não posso dizer o mesmo, pois nem no inferno vai encontrar descanso...” Foi o que nos disse Dona Betinha com sua voz tremulada de reticências. E a palavra, Inferno, eu fiquei pensando bastante nela, olhando pra cruz de Jesus dependurada na parede. Não resisti e cochichei um pouco alto no ouvido de minha mãe, que amavelmente inclinou-se para ouvir minha pergunta:

  “Será que o inferno existe mesmo, mãe?”

  “Que besteira, Augusto!” Dona Betinha que ouviu minha pergunta alta demais tratou de explicar:

 “É claro que existe, meu filho. E lá só há sofrimento e dor. O inferno é o fim da linha para os danados.”
  Foi nesse instante de medo infantil que lancei a vista assombrada na direção da porta da capelinha e vi entrar a Dulcimar. Meus olhos e meu coração logo se encheram de júbilo e  encantamento. Dulce (como era conhecida na minha rua) era cinco anos mais velha que eu, e morava em uma estância pobrezinha atrás de nossa casa. Tinha cabelos crespos de sarará; os olhos bem negros, as coxas grossas e os seios volumosos que mais pareciam duas maçãs do amor. Neste dia de dor velórica, ela estava linda e simples em seu vestidinho de dançar quadrilha. Ela se aproximou do esquife conduzindo a vozinha dela pelas mãos. Meu coração começava a batucar um pouquinho mais alegre sempre quando eu via a Dulce, e ela me sorria. O seu sorriso tinha um encanto sonoro e chamativo de uma flauta doce. Nesse dia ela me sorriu do outro lado do caixão. Dulce me provocava a pecar. Aqueles seus peitões de maçã do amor; o seu corpo de curvas todo ajustadinho no vestidinho colado e florido. O cheiro discreto que emanava de sua pele. Dulce era o meu medo. Meu pecado. Minha libertação. Enfim, meus arroubos apaixonantes de menino...  

  III

 “Teu filho tá ficando rapaz, hein, Eunice? Lembro dele zangado e tristinho querendo comer as hóstias. Tu ainda te lembra, meu filho?”
Voltei a mim. Devia ter os meus oito ou nove anos de idade, só que tinha vergonha em lembrar. Eu era uma espécie de papa-hóstia mirim. Chegava sempre cedo na Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, na companhia de minha mãe, só pra comer das bolachinhas brancas que curiosamente tinham gosto de papel e nada. Aquilo havia se tornado um ritual sagrado de todos os domingos. E quem corajosamente pegava as hóstias para mim - quando elas ainda se achavam na sacristia - guardadas dentro de um recipiente dourado, antes do coroinha levá-las para o altar - era a Dona Betinha:

  “E aí de mim se não conseguisse as bolachinhas, ele cruzava os braços emburrado, ameaçando fazer um escarcéu na Igreja, não era Augusto?”

 “Era mesmo, meu filho?” Perguntou com denguice, minha mãe, afastando para trás as mechas de meus cabelos morenos, junto com as picadas da dor. Encolhia-me todo com vergonha. Cristo já me olhava desconfiado da cruz.
  Vi quando Dulce afastou-se um pouco de sua vó e caminhou com charme ondulante até a quadra que ficava anexa á Igreja. Não esqueço mais a imagem de seus dedos finos e longos deslizando chamativos pelas paredes azulejadas da capela, e também daquele seu olhar e sorriso penetrantes que me convidavam a segui-la. Enfeitiçado que estava, evidente que fui. Pus-me da porta da sacristia observando em silencio os movimentos graciosos dela que iam e vinham sobre um balanço abandonado, nos fundos da quadra. A chuva agora caía leve como sementinhas vindas do céu. Era tarde demais para esquivar-me. Seus olhos entraram nos meus, como ondas elétricas e copulativas. Chamou-me de lá com o dedo fazendo uma curva:

 “Vem cá, vem, Augusto!” Me aproximei dela sobre o balanço. Suas coxas juntinhas e grossas eram bem mais lindas de perto. Pediu para que eu a empurrasse. Posicionei-me por trás dela:

 “Não por aí, seu bobo, pela frente mesmo!” Atrapalhado, não sabia onde botar minhas mãos. Desci-as levemente sobre as suas coxas grossas e nuas.  Agarrei-as firme e a impulsionei para o alto, largando-a no ar.  

 “Com mais força, Augusto!” Pedia-me. Obedeci. O seu corpo foi mais longe. Mal sentia as pinicadas da chuva. “Mais força, Augusto! Cuida!” Implorava-me, sorrindo. Divertia-se. Minhas mãos tremidas sobre sua cintura.  A calcinha à amostra. Branca. Discreta. Aparecendo lá no fundo. O balanço a ir e a vir. Cada vez mais para o alto. A chuva molhando meu sorriso. O dela também. Não era mais uma tarde triste e velórica. Mais uma tarde alegre, doce e sedutora. Uma tarde de sensações Elétricas por todo meu corpo.

 “Chega, vai! Pára! Pára, Augusto!” Fui diminuindo a velocidade. Ela pousou á minha frente como um pássaro lindo. Seus olhos negros. O corpo provocador. Seu cheiro natural. Ficamos assim, nos olhando de perto. Aí ela disse:

 “Tá triste, não é Augusto?”

 “Um pouco! Mais pela minha mãe.”

 “Fica assim, não. Fecha os olhos!”

 “Han?”

 “Fecha os olhos!”

 “Mas pra quê?”

 ”Fecha logo!”

  Fechei. Fiquei um tempo sentindo a chuva doce deslizando em meu rosto. Depois, o toque suave dos lábios de Dulce nos meus. Sua língua morna penetrando devagar na minha boca, vasculhando todo o seu interior. Foi como uma eternidade. Não sei definir a sensação sentida. Meu coração batendo acelerado. O gosto daquele beijo. O primeiro de minha vida. Doce. Suave. Inesquecível. Como o piano do Richard Clayderman que eu ouvia. Poderia ficar aqui remoendo mais lembranças, reiventando coisas, mas os lábios de Dulce desgrudaram-se dos meus, e foram assim, se afastando para longe de mim como uma imagem pura e santa que se recolhe ruborizada para trás do espelho intransponível da alma.

  Não falamos nada um para o outro. Não havia o que dizer. Rimos apenas. Ela, mais que eu.  Depois – como uma mãe zelosa e preocupada - removeu o beijo que ficou pintado em minha boca. Pegou em minha mão e caminhamos com nossos dedos entrelaçados de volta à capelinha...     

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