terça-feira, 4 de novembro de 2014

O ANÃO TROMPETISTA

V

Mas ainda não é o fim. Calma! Deixe-lhes contar mais um pouco. De como o conheci.
                Eu o vi pela primeira vez tocando naquele Bar que tinha um cheiro estranho e doce, de patchuli. Mas o cheiro, na verdade, vinha daquele trompete. Um cheiro bom. Sinestesiante. Quando não saiam odores, saiam flores. E tudo que dali desprendia-se inexplicavelmente, dependia unicamente de seu estado e da amplitude de sua alma. É como escrever, sabe? Quando estamos tristes, escrevemos poemas amargos. Quando estamos felizes, escrevemos poemas doces. Somos como estações que se alternam dentro da gente. Assim era ele com o seu trompete. Eu já o manjava há tempos. Definitivamente, a alma daquele anão estava ali, naquele sopro. Eu ia todas as noites àquele bar só para vê-lo tocar. Tornara-se uma espécie de celebridade. Fiz amizade com ele. Paguei-lhe cervejas, cigarros. Mais feliz fiquei ainda ao saber, que o anão era meu conterrâneo. Apresentei-lhe à turma da República que freqüentava em peso, o lugar. Logo, enturmou-se e, numa rodada alegre de cervejas, ele nos perguntou se já tínhamos ouvido o hino da China. Todos riram temerosos.  Perguntou se ele podia tocar o hino da China, e que por causa do hino da China, os soldados bateram nele pra valer, deram-lhe choques e pontapés e o amarram de cabeça para baixo em um pau de arara, e ainda por cima quase confiscaram-lhe o seu único bem, que era o seu trompete, e tudo porque ele tocava o Hino da China. Havia algum mal em tocar o Hino da China? Quis saber. Comovia-me a pureza e a ternura que emanavam daqueles olhos grandes e infantis. E foi com meus lábios retorcendo-se de compaixão que expliquei-lhe que podia tocar sim, o Hino da China, mas não ali, naquele momento e lugar, ainda que aquele bar fosse uma espécie de Gueto de Resistência e que servia de certa maneira de encontro para alguns remanescentes do MR8. Sem entender nada, acatou cabisbaixo, recolhendo tristemente o seu trompete. Como não tinha onde dormir naquela noite fria daquele outubro de 76, acabamos levando-o conosco pra morar uns tempos na República. Lá, o politizamos um pouco, explicamos a situação do país e que ali, naquela casa todos eram camaradas que lutavam contra o regime ditatorial, de modo que ele podia tocar em paz o hino da China, da Conchichina, da Internacional Comunista, do raio que os parta, se assim o quisesse. O azar foi que em apenas um dia, espantosamente, ele aprendera a tocar o Hino da Internacional Comunista, e todas as manhãs, logo cedo, éramos arrancados de nossas camas com o Hino da Internacional Comunista que o anão tocava exaustivamente em seu trompete. Mas no fundo, gostávamos dele. Tornou-se o nosso emblema de luta: o nosso mascote da sorte. Ia conosco em todas as passeatas e mobilizações que fazíamos contra o regime. Houve uma que ocorreu no Largo da Candelária e que não esqueço nunca mais. Ele seguia na frente, todo vaidoso soprando o seu trompete. Dele saiam granadas coloridas, escopetas cuspindo flores, gerânios azuis, pipoquinhas verdes, algodões doces, estilingues, bolinhas de gudes, baionetas em formas de mariposas... Os cavalos e os coturnos não avançavam contra nós, não podiam avançar, nada mais podia nos deter, descemos pela Uruguaiana até a Praça Quinze, onde finalizamos com um grande comício seguido de um concerto do anão que colocou todos nós pra dançar um mambo alegre e eletrizante. Foi uma festa. Uma grande celebração pela liberdade. Nunca mais esqueço aquele dia. O regime tinha seus dias contados. E digo-lhes mais, senhore
s, (é porque a história vergonhosamente não nos conta a verdade), mas não foi o Movimento Estudantil, nem o MR8, tampouco a Guerrilha do Araguaia, o grande símbolo de resistência contra a ditadura militar no país, mas aquele anão e o seu trompete mágico, este sim, e eu estou cada vez mais convencido disso, e sei muito bem que, por mais que registre todo este acontecimento em um conto, como agora o faço, quem acreditaria em mim, não é mesmo? Mas o fato é que depois daquele dia histórico, de profundas mudanças, o anão sumiria misteriosamente. O procuramos no bar, mas ele não aparecera para tocar. Esperamos apreensivos o seu retorno. Nada.  Procuramos por toda a cidade: delegacias, hospitais, IML´S, necas, tentamos, sem êxito, encontrá-lo. Não o vimos mais. Transcorreram-se alguns meses desde aquele seu desaparecimento misterioso, quando certo dia, assistindo indignado a um pronunciamento do General Geisel na televisão, vi entrar esbaforido no quarto, um dos camaradas da República: “Tem um cara aí que viu o anão, Pablo.” Fomos até lá. Tratava-se de um velho mendigo que esmolava na esquina da Sé, e que nos assegurou ter visto o anão pela última vez tocando o seu trompete para uma atiradora de facas que ganhava a vida debaixo dos semáforos. Garantiu-nos também que o anão tinha uns olhos grandes e apaixonados e que do seu instrumento saiam fogos de artifícios e centenas de milhares de maçãs do amor, e que naquele final de tarde, o sol brilhava com todo seu fulgor e que o trânsito todo parou para ouvir o anão que tocava apaixonadamente o instrumento, enquanto a moça bonita atirava facas amoladas para o céu, cuspindo labaredas de fogo que logo se transformavam em sorrisos flamejantes, ocasionando um congestionamento monstruoso na avenida. “Depois daquilo, a moça agradeceu, pegou na mão do músico e desapareceram bem ali naquela esquina! E aí eu nunca mais o vi de novo, tocando por aqui, seu moço!” Agradecemos ao senhor pela informação, demos a ele algum dinheiro e retornamos tristes e cabisbaixos para a República, certos afinal de que nunca mais veríamos o anão outra vez.
E é fato que nunca mais o vimos. Transcorreram-se 38 anos desde esse dia. Olho agora da minha janela, uma garoa coloridinha cair. Tépida. Calma. Mansa. Como uma melodia doce e aguda que afetuosamente embala-me a alma neste instante. O país hoje é outro. Mas não sei se mudou muita coisa, não. Ainda existe fome, injustiças, roubos, matanças... Quando olho as crianças esmolando pelas esquinas, debaixo dos faróis, meu coração logo se parte em pedacinhos. Lembro de Simplício e do seu trompete incrível. De como ele transformava tudo dentro dele em cifras mágicas e que milagrosamente eu podia vê-las, tocá-las; senti-las vivas pulsando dentro de meu coração, naqueles anos tão difíceis. Não tenho trompete. Mas tenho ao meu alcance, uma caneta que agora me treme de emoção nas mãos ao acabar de escrever estas notas. Aprendi que de uma caneta também se extrai sentimentos vivos e puros que são como músicas. Como as melodias mágicas que maravilhado um dia eu vi sair do trompete de Simplício e que nada mais eram do que a expressão de sua alma larga e generosa. Por isso é que resolvi escrever este conto.  Antes que alguém o escreva por mim. Antes que esta chuva tépida e colorida pare de cair. Antes que eu feche esta janela e perca definitivamente a esperança nas pessoas e no mundo...
Talvez seja isso. Bom.


                                                                           

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