V
Mas ainda não é o fim. Calma! Deixe-lhes contar mais um pouco. De como o
conheci.
Eu
o vi pela primeira vez tocando naquele Bar que tinha um cheiro estranho e doce,
de patchuli. Mas o cheiro, na verdade, vinha daquele trompete. Um cheiro bom. Sinestesiante.
Quando não saiam odores, saiam flores. E tudo que dali desprendia-se
inexplicavelmente, dependia unicamente de seu estado e da amplitude de sua alma.
É como escrever, sabe? Quando estamos tristes, escrevemos poemas amargos.
Quando estamos felizes, escrevemos poemas doces. Somos como estações que se
alternam dentro da gente. Assim era ele com o seu trompete. Eu já o manjava há
tempos. Definitivamente, a alma daquele anão estava ali, naquele sopro. Eu ia
todas as noites àquele bar só para vê-lo tocar. Tornara-se uma espécie de celebridade.
Fiz amizade com ele. Paguei-lhe cervejas, cigarros. Mais feliz fiquei ainda ao
saber, que o anão era meu conterrâneo. Apresentei-lhe à turma da República que
freqüentava em peso, o lugar. Logo, enturmou-se e, numa rodada alegre de
cervejas, ele nos perguntou se já tínhamos ouvido o hino da China. Todos riram temerosos.
Perguntou se ele podia tocar o hino da
China, e que por causa do hino da China, os soldados bateram nele pra valer, deram-lhe
choques e pontapés e o amarram de cabeça para baixo em um pau de arara, e ainda
por cima quase confiscaram-lhe o seu único bem, que era o seu trompete, e tudo
porque ele tocava o Hino da China. Havia algum mal em tocar o Hino da China? Quis
saber. Comovia-me a pureza e a ternura que emanavam daqueles olhos grandes e
infantis. E foi com meus lábios retorcendo-se de compaixão que expliquei-lhe
que podia tocar sim, o Hino da China, mas não ali, naquele momento e lugar,
ainda que aquele bar fosse uma espécie de Gueto de Resistência e que servia de certa
maneira de encontro para alguns remanescentes do MR8. Sem entender nada, acatou
cabisbaixo, recolhendo tristemente o seu trompete. Como não tinha onde dormir naquela
noite fria daquele outubro de 76, acabamos levando-o conosco pra morar uns
tempos na República. Lá, o politizamos um pouco, explicamos a situação do país
e que ali, naquela casa todos eram camaradas que lutavam contra o regime
ditatorial, de modo que ele podia tocar em paz o hino da China, da Conchichina,
da Internacional Comunista, do raio que os parta, se assim o quisesse. O azar
foi que em apenas um dia, espantosamente, ele aprendera a tocar o Hino da Internacional
Comunista, e todas as manhãs, logo cedo, éramos arrancados de nossas camas com
o Hino da Internacional Comunista que o anão tocava exaustivamente em seu
trompete. Mas no fundo, gostávamos dele. Tornou-se o nosso emblema de luta: o
nosso mascote da sorte. Ia conosco em todas as passeatas e mobilizações que
fazíamos contra o regime. Houve uma que ocorreu no Largo da Candelária e que
não esqueço nunca mais. Ele seguia na frente, todo vaidoso soprando o seu
trompete. Dele saiam granadas coloridas, escopetas cuspindo flores, gerânios
azuis, pipoquinhas verdes, algodões doces, estilingues, bolinhas de gudes,
baionetas em formas de mariposas... Os cavalos e os coturnos não avançavam
contra nós, não podiam avançar, nada mais podia nos deter, descemos pela
Uruguaiana até a Praça Quinze, onde finalizamos com um grande comício seguido de
um concerto do anão que colocou todos nós pra dançar um mambo alegre e
eletrizante. Foi uma festa. Uma grande celebração pela liberdade. Nunca mais
esqueço aquele dia. O regime tinha seus dias contados. E digo-lhes mais,
senhore
s, (é porque a história vergonhosamente não nos conta a verdade), mas
não foi o Movimento Estudantil, nem o MR8, tampouco a Guerrilha do Araguaia, o grande
símbolo de resistência contra a ditadura militar no país, mas aquele anão e o
seu trompete mágico, este sim, e eu estou cada vez mais convencido disso, e sei
muito bem que, por mais que registre todo este acontecimento em um conto, como
agora o faço, quem acreditaria em mim, não é mesmo? Mas o fato é que depois
daquele dia histórico, de profundas mudanças, o anão sumiria misteriosamente. O
procuramos no bar, mas ele não aparecera para tocar. Esperamos apreensivos o seu
retorno. Nada. Procuramos por toda a
cidade: delegacias, hospitais, IML´S, necas, tentamos, sem êxito, encontrá-lo. Não
o vimos mais. Transcorreram-se alguns meses desde aquele seu desaparecimento
misterioso, quando certo dia, assistindo indignado a um pronunciamento do
General Geisel na televisão, vi entrar esbaforido no quarto, um dos camaradas
da República: “Tem um cara aí que viu o anão, Pablo.” Fomos até lá. Tratava-se
de um velho mendigo que esmolava na esquina da Sé, e que nos assegurou ter
visto o anão pela última vez tocando o seu trompete para uma atiradora de facas
que ganhava a vida debaixo dos semáforos. Garantiu-nos também que o anão tinha
uns olhos grandes e apaixonados e que do seu instrumento saiam fogos de
artifícios e centenas de milhares de maçãs do amor, e que naquele final de
tarde, o sol brilhava com todo seu fulgor e que o trânsito todo parou para
ouvir o anão que tocava apaixonadamente o instrumento, enquanto a moça bonita
atirava facas amoladas para o céu, cuspindo labaredas de fogo que logo se
transformavam em sorrisos flamejantes, ocasionando um congestionamento monstruoso
na avenida. “Depois daquilo, a moça agradeceu, pegou na mão do músico e
desapareceram bem ali naquela esquina! E aí eu nunca mais o vi de novo, tocando
por aqui, seu moço!” Agradecemos ao senhor pela informação, demos a ele algum dinheiro
e retornamos tristes e cabisbaixos para a República, certos afinal de que nunca
mais veríamos o anão outra vez.
E é fato que nunca mais o vimos. Transcorreram-se 38 anos desde esse dia.
Olho agora da minha janela, uma garoa coloridinha cair. Tépida. Calma. Mansa. Como
uma melodia doce e aguda que afetuosamente embala-me a alma neste instante. O
país hoje é outro. Mas não sei se mudou muita coisa, não. Ainda existe fome,
injustiças, roubos, matanças... Quando olho as crianças esmolando pelas esquinas,
debaixo dos faróis, meu coração logo se parte em pedacinhos. Lembro de Simplício
e do seu trompete incrível. De como ele transformava tudo dentro dele em cifras
mágicas e que milagrosamente eu podia vê-las, tocá-las; senti-las vivas
pulsando dentro de meu coração, naqueles anos tão difíceis. Não tenho trompete.
Mas tenho ao meu alcance, uma caneta que agora me treme de emoção nas mãos ao
acabar de escrever estas notas. Aprendi que de uma caneta também se extrai sentimentos
vivos e puros que são como músicas. Como as melodias mágicas que maravilhado um
dia eu vi sair do trompete de Simplício e que nada mais eram do que a expressão
de sua alma larga e generosa. Por isso é que resolvi escrever este conto. Antes que alguém o escreva por mim. Antes que
esta chuva tépida e colorida pare de cair. Antes que eu feche esta janela e perca
definitivamente a esperança nas pessoas e no mundo...
Talvez seja
isso. Bom.
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