ainda resisto. vejo agora tudo de cima deste muro
branco. um corpo que bóia. mas é só um
corpo. as águas podres arrastam-no para à margem. curioso. um a um os urubus vão
pousando. cercando a carniça. começam a bicá-la. bicos longos e negros. são muitos agora. fazem furos precisos. se eu
aqui pudesse sonorizar os ruídos destes pássaros. mas é que um outro chega. reparem.
é maior e mais negro. asas bem abertas.
ameaça os demais. quer sozinho banquetear-se do cadáver. o egoísmo não é uma
qualidade apenas do homem. está no âmago dos pássaros e das flores. gaivotas
passam ao largo. não foram convidadas. voraz, este pássaro enorme e negro retira vísceras que ficam grudadas em seu
bico. também sente fome. uma fome voraz. imagens e sentimentos que não me saem da
cabeça. os outros apenas olham. contentam-se com as carcaças de peixes. mas não
é a mesma coisa. não como este corpo inchado. suculento. que se afogou. você
daí entende este quadro vazio da vida? um menor se aproxima. na distração, arranca-lhe
o olho do cadáver. fica um buraco. afasta-se. vai comê-lo ao longe. seis desta
manhã. o sol nasce quadrado. um bêbado olha a cena. cabelos pintados de acaju.
sua solidão é como esta água barrenta, amarela e podre. toma logo um trago.
olha o céu. tudo é um nada sem respostas. nuvens densas que se fecham para a vida ali
dentro dele. melhor é não ter nascido. ele pensa um instante. os urubus não
desistem. uma centena deles agora. cercam o
boião outra vez. o outro se vê acuado. cedi-lhe o egoísmo que bate em retirada
pro céu. os urubus fazem a festa. destroçam a carniça até não restar nada.
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