segunda-feira, 10 de novembro de 2014

carniceiros

ainda  resisto. vejo agora tudo de cima deste muro branco. um corpo que bóia.  mas é só um corpo. as águas podres arrastam-no para à margem. curioso. um a um os urubus vão pousando. cercando a carniça. começam a bicá-la. bicos longos e negros.  são muitos agora. fazem furos precisos. se eu aqui pudesse sonorizar os ruídos destes pássaros. mas é que um outro chega. reparem. é maior e mais negro.  asas bem abertas. ameaça os demais. quer sozinho banquetear-se do cadáver. o egoísmo não é uma qualidade apenas do homem. está no âmago dos pássaros e das flores. gaivotas passam ao largo. não foram convidadas. voraz, este pássaro enorme e negro  retira vísceras que ficam grudadas em seu bico. também sente fome. uma fome voraz.  imagens e sentimentos que não me saem da cabeça. os outros apenas olham. contentam-se com as carcaças de peixes. mas não é a mesma coisa. não como este corpo inchado. suculento. que se afogou. você daí entende este quadro vazio da vida? um menor se aproxima. na distração, arranca-lhe o olho do cadáver. fica um buraco. afasta-se. vai comê-lo ao longe. seis desta manhã. o sol nasce quadrado. um bêbado olha a cena. cabelos pintados de acaju. sua solidão é como esta água barrenta, amarela e podre. toma logo um trago. olha o céu. tudo é um nada sem respostas.  nuvens densas que se fecham para a vida ali dentro dele. melhor é não ter nascido. ele pensa um instante. os urubus não desistem. uma centena deles agora.  cercam  o boião outra vez. o outro se vê acuado. cedi-lhe o egoísmo que bate em retirada pro céu. os urubus fazem a festa. destroçam a carniça até não restar nada.           

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