I
as cores que
surgem no fundo desta tela são estas mesmas.e elas permanecerão assim até o
final deste conto. não por mera vaidade.mas porque a pureza só existe em preto
e branco.
II
bom. eu estava
atrás de um começo. agora que fecho meus olhos profundamente, me vejo imerso nas
lembranças do passado que me chegam de um túnel escuro. uma data lá no fundo. aquela
que a gente nunca esquece. sexta-feira da paixão.o dia da crucificação de Nosso
Senhor. mas, o pior mesmo seria o dia seguinte. o da malhação de Judas. ainda contemplo
um céu todo cinzento. euforia na rua. gritaria. os bonecos de pano pendurados
nos postes. o dia em que apedrejaram a louca. que a expulsaram dali para
sempre.
III
a louca ainda
está dentro da minha cabeça. de minhas lembranças. de meu passado.
IV
eu tinha por
volta dos meus doze anos de idade. é isso mesmo? eu tinha por volta dos meus doze
anos de idade. é. nessa idade, ainda olhamos e sentimos o perfume das coisas
com mais pureza. e havia os ensinamentos de minha mãe que me educavam a ser
bom. a preservar minha índole de menino. passados todos estes anos, agora
crescido, metade humano, metade besta, a louca me vem em fragmentos. como uma
fotografia desbotada. descolorida. rasgada ao meio. tarde de abril de 1982. ainda
é, posto que tenho meus olhos bem fechados como de um chinês orando baixinho.
V
jogávamos bola
na rua, quando a louca apareceu. veio descendo o Beco dos Passos com seu
rebolado sensual. uma flor no cabelo. um short amarelo, apertado e curto, agarrado
às coxas grossas e alvas porque a louca era branca. corpulenta e terrivelmente branca.
ela tinha umas sobrancelhas que eram negras e que se juntavam como as de Frida
Kalo. e seus olhos eram de um esverdeado de cegar a gente. a louca era
estranhamente bonita. mas, louca. não batia bem da cabeça mesmo não. falava bem
no começo coisas que a gente até entendia. mas, depois desbaratava a falar palavras
estranhas. e gargalhava. gargalhava alto e cantava uma canção de seu mundo que
a gente nunca ouvira na vida. assim era a louca. nunca soube sua idade. nem o
seu nome. de onde viera. para onde ia. da primeira vez que a vimos atravessando
a rua, paramos com a bola. ela sorriu de lado com a flor no cabelo agradecendo e
foi descendo devagar a Boulevar Sá Peixoto, rumo ao bar do Luizinho que ficava
bem lá embaixo.
VI
eu nunca tive
medo da louca. que mal ela poderia me causar. apesar de seu olhar sedutor e
venenoso, a louca tinha alma de criança. o Curupira e o Joca é que tinham medo
da louca por influência dos pais. Já eu não. o que eu achava eram aqueles olhos
bonitos e faiscantes. e o seu corpo também mexia com alguma coisa lá dentro de
mim. nessa época as espinhas e os pelinhos do meu púbis já cresciam afoitos.
faziam um pouco de cócegas porque cresciam pontudos e ferozes e minha voz
mudava para um tom mais grave. engraçado, né? digo, essas transformações que
acontecem no corpo da gente. um dia baixei o meu calção de jogador e mostrei para
minha mãe os pentelhinhos que brilhavam. ela apenas sorriu me dizendo: “já tá
ficando machinho, meu filho.” as mães, sei lá. são engraçadas. e loucas também.
nunca mais esqueço esta tarde. o ferro de gomar. o vento seco estalando nas
folhas da goiabeira do quintal. o sorriso encantador de Eunice. o tempo de vida é um instalo. um sopro. um bater de pestanas.
o coito de um louva-deus. mas é que havia a louca. ela atrapalhava a gente
jogando bola na chuva. suas coxas bem suadas e grossas. suas sobrancelhas negras
que se juntavam num semblante gravemente alegre. aquele seu cheiro forte. ela
só queria chutar a bola pra longe e gargalhar. gargalhava bem alto olhando o
céu com sua mão na cintura feito uma pombagira. eu francamente não via mal
algum na louca. nenhum demônio escondido nela. parecia até uma criança como nós.
mas era só eu que pensava assim. a mãe do Curupira e do Joca e também (já ia esquecendo) do Betinho, não.proibiram eles
de jogar bola na rua com a louca. é que a louca podia atacá-los.mas isso era
invenção das beatas. talvez por inveja da louca?
II PARTE
“a louca mora na
Groelandia!” foi o Aritana que nos trouxe a noticia enquanto jogávamos uma
partida de botões. o Aritana era filho do seu Nonatinho da taberna do canto.
bem encostadinho na do seu Defunto. nem sei se ainda está vivo, o pobre do Aritana."foi
ela que disse quando a gente tomava sorvete.” fomos ver no mapa onde ficava a
Groelândia. putz, era um lugar longe e frio. e lá tinha muitos pingüins. será que era por isso
que ela tinha aquela pele bem clarona, e
seus dois olhos eram esverdeados que doíam nos meus? me perguntava. não que eu
estivesse apaixonado pela louca. sei lá. a louca não era feia, não. só era
diferente. tinha classe. a maneira como ela sentava no bar do Luizinho com as
pernas cruzadas segurando alto seu copo de cerveja. e às vezes que ela me
olhava com elegância por sobre a borda do copo. mas ela olhava era pra todos os
homens lá do bar. Inclusive pro Diabo Ruivo que a seduziu.
*
só era chato
quando a louca excedia-se na bebida. era mesmo assustador. ela dançava, subia nas
mesas; cantava e tirava a roupa. as beatas que passavam à tardinha pra ir pra
missa esconjuravam a louca: “demônio!” loucos mesmo eram os que a levavam para os fundos do bar do Luizinho ou do
Defunto e dela se aproveitavam. ela saía de lá descabelada, arranhada, mas com
o dinheiro do serviço preso na calcinha. e voltava a beber. quando descobriram
que ela trepava nos banheiros, a expulsaram dos bares. a louca já estava passando
dos limites...
***
é que a louca
não tinha onde dormir, sabe? naquela quinta feira, quando ia pra missa com minha mãe, eu vi a louca dormindo suja,
no banco da pracinha, sob o jambeiro. dormia no sujo e no relento. mesmo assim,
ainda continuava viva e bela aos meus olhos. e me sorria. me sorria sempre. dentro
da igreja, eu olhava pra cruz de nosso senhor que sofria naqueles dias estranhos
e cruéis e eu me perguntava: “os loucos tem um demônio no corpo, Deus?” “Psiuuu,
que já já vem as bolachinhas.”Respondia minha mãe. as bolachinhas eram as hóstias que
dona Betinha – nossa vizinha - roubava do altar pra mim e que espantava pra
longe meus pensamentos perigosos de menino. as bolachinhas tinham um gosto
engraçado de papel. eu mascava aquilo como se fosse uma droga legal, anestesiante.
mas na verdade, não tinha gosto de nada. eu olhava pra cruz de Deus e sorria. “se
eu pudesse, juro que levava a louca pra comer e dormir lá em casa, Deus.” a lua
fria lá em cima, ás vezes me faz pensar na louca. até hoje não entendo a frieza
humana. sua bestialidade. seu egoísmo. o homem é um egoísta, besta e miserável de alma. ainda povoa este
planeta com sua bestialidade e com sua falta de amor ao próximo.
***
não mexam nas
cores, já disse.deixem-nas como estão.
PARTE III
havia na minha
rua uns maus elementos de verdade: o
Marreta, o Deka (conhecido como o diabo ruivo) e o Zé Bigorna. eles moravam no
beco da Paz, lá embaixo, quase chegando na beira. eles eram mais velhos que
nós, feios, sujos e malvados, como no filme do Etore Escola. eles tocavam o
terror na época. comiam o Chiquinho, o Ângelus e o resto da gurizada nas
tubulações de ferro da Codrasa que estava em construção. também era perigoso
tomar banho na Ponta Branca quando o trio aparecia por lá. sempre tinha alguns
de nós que eram seduzidos e arrastados para dentro das embarcações fantasmas.
lembro que escapei do Diabo Ruivo muitas vezes. mas foi ele que seduziu a
louca. arrastou ela para um balcão abandonado no Beco São Pedro. isso foi na
sexta feira da paixão. quando enfiaram aqueles pregos nas mãos de nosso senhor
e o penduraram na cruz. ainda me lembro. o céu todo escurecido como graxa. o
véu do tempo se fechando sobre a humanidade afogada em pecados. “quem é capaz
de enfiar pregos nas mãos de quem nos ama, mãe?” “Psssiuuu, que já já vem as
bolachinhas...” Ah, quanta saudade. vontade que tenho de encostar minha cabeça
em seu colo outra vez. mas isto não é mais possível. quem nos trouxe a notícia
foi o Curió: “ei, vão currar a louca no galpão do Lindoso.” a molecada que
jogava bola na rua correu toda pra lá. fizeram fila pra brechar. eram quase
seis horas da tarde daquela sexta feira da paixão. eu podia sentir os pregos sendo
enterrados na carne de Deus. a gurizada se revezava pra ver pelas brechas de
madeira do galpão o corpo branco e nu da louca que brilhava na escuridão. ela
sorria. um sorriso esganiçado. parecia querer. gostar. mas era por causa do
Diabo Ruivo que a seduziu. o menos feio dos três. o que tinha os caninos
perfeitos. Era. deitaram ela toda nua sobre uma mesa de madeira. (não tentem
evocar outra cor, eu já disse. deixem o fundo como está.) mas eu acho que era
pra mais de cinco marmanjões daqueles. todos nus formando uma fila como cachorros
no cio. deleitavam-se da louca. não era uma cena boa de se ver, moço. era
sinistro. cruel. desumano. não era uma cena boa de se ver. os meninos com seus
pipis de fora, se masturbando do meu lado. a louca gemia lá dentro no galpão. a
pele de suas coxas brilhando no escuro. eram umas coxas grossas e enormes. “ei,
não vai bater uma com a gente não, Augusto?” olhei com raiva pro Aritana. os
outros me olhavam. me desafiavam. “o pipi dele é pequeno, igual de mulherzinha,
é por isso.” falou o Três Pernas. riram de mim. não era, não. me ajoelhei e,
com lágrimas nos olhos, tirei meu pinto pra fora. “vou provar”. “olha como ele
bate punheta!” riram ainda mais com a minha falta de jeito. a louca gritava lá
dentro. gemia. gritava. urrava. tiveram que tapar a boca dela. foi só quando o
Diabo Ruivo a penetrou, foi que ela aquietou-se. relaxou os músculos. os
meninos alucinados, matavam-se na bronha. eu fingia fazer o mesmo. fingia que
estava gostando. mas no fundo eu não estava não. eu tinha era vergonha daquilo.
de mim. pena da louca. nunca fui igual aos outros meninos mesmo. acho até que
não sou normal. alguém lá de dentro viu a gente brechando. e aí tivemos que
correr de volta pra rua...
IV
a gente não
consegue dormir direito com uma imagem destas na cabeça, não é mesmo? naquele
momento de minha vida, não. é natural que compreendesse muito pouco da vida e
das atitudes humanas. por isso, eu buscava alento nas preces. a imagem da louca
sendo currada e apedrejada, até hoje não me sai da cabeça. mas havia o sábado de aleluia pra me fazer
esquecer. o dia da malhação de Judas. o
dia mais alegre da semana santa. não perdia aquele dia por nada. cedinho, já estava
de pé, ganhando as ruas para ver os bonecos de pano arrancados dos postes, levando pauladas, sendo
pisoteados e estripados pela gurizada. fazíamos daquilo uma grande celebração. a
celebração de nossas vidas. não havia maldade. tudo não passava de uma
brincadeira pura de criança. bem cedo abríamos as janelas de casa e dávamos logo
de cara com os bonecos pendurados nos postes. um montão deles. era assustador. mas
como era legal. um barato. a gente se divertia á beça. o Judas podia ser
qualquer um. da pessoa mais influente (como do meio político, por exemplo) até
á pessoa mais comum, moradora do bairro. certa vez, a molecada da rua de cima fez
um Judas em homenagem à dona Agaí, que acreditavam ser uma velha bruxa que se
transformava em porca nas noites de sexta feira pra correr atrás da meninada
que jogava bola na frente da sua casa, no Beco dos Passos. mas dona Agaí era só
uma velha solitária e rabugenta que não tinha ninguém na vida e não fazia mal a
ninguém. o fato é que hoje não se vê mais Judas nos sábados de aleluia, você ainda
vê? os Judas foram esquecidos. tudo é tão sem graça hoje. sem sentido. malham-se
pessoas de carne e osso em vez dos bonecos.
***
sei que aquele
dia era de uma claridade cinzenta e enevoada. uma manhã triste, fria, estranha.
olhei para o alto e os traidores de pano permaneciam todos ali, pendurados nos postes e nas
árvores. fui arriando devagar meu pau de bater em Judas, logo que
vi a louca descendo a Boulevard Sá Peixoto, bêbada e suja de sangue. uma
multidão de gente seguia atrás dela, xingando-a e atirando-lhes pedras. pessoas
de todas as idades. até crianças. a louca descia suja, descabelada e coberta de
sangue. por onde passava era xingada. escorraçada. não havia ninguém pela
louca. para se defender, ela parava um instante, arriava seu short e mostrava
seu sexo menstruado. depois, com as mãos na cintura, gargalhava alto para o céu,
soltando aquela sua risada diabólica de louca. a multidão a empurrava para o
final da rua. a enxotavam. queriam vê-la longe. algumas das beatas comandavam o pilotão de fuzilamento. a
louca cuspia nelas e as xingava com palavras incompreensíveis. os judas
permaneciam pendurados. esquecidos. malhavam a louca, em vez dos bonecos. sentimentos
estranhos brotavam em mim. ódio e compaixão. Impotência e justiça. eu não sei o
quê mais que me faziam fechar os punhos e encher meu coração de angústia e
revolta. o leitor talvez não acredite, mas é que fui levado por um estranho
impulso ou algo parecido, que me obrigou a aproximar-se da louca, assim que a
deixaram em paz, no canto da rua, bem no cruzamento da Boulevard com a Manuel Urbano. ela ofegava e fedia á
beça quando segurei na sua mão. mas não liguei para isso. era um dia mesmo frio
e visagento. o céu desmaiado, coberto de graxa. um dia sem cor. mas a pele da louca era macia quando peguei em
sua mão. suas unhas compridas e pintadas de vermelho. não sei o que deu em mim
que não tive medo ou vergonha da louca. a chamei para ir lá em casa. ela até
olhou para mim. aqueles seus olhos vivos, comoventes que me atravessavam. a
louca não me faria algum mal. só estranhou que eu tivesse pegado em sua mão. que
a conduzisse. sorria me olhando de cima à baixo. descemos a rua de mãos dadas. a louca
sorrindo. todos olhando. o seu Apaga Luz da janela balançando sua cabeça como
se dissesse, “o Augusto ficou louco.” chegando em casa com a louca, pedi-lhe
que me esperasse na varanda que eu ia buscar comida e roupas para ela. no que ela
disse, “então ta!” a deixei sorrindo de gratidão, sentada no pátio de casa,
olhando as catraias no rio. precisava falar pra Eunice sobre a louca. ela tomou
um susto enorme quando foi olhar na janela: “ficou doido, Augusto? trazer esta
mulher para casa?” mesmo assim, ela foi preparar o café: pão, manteiga, ovos e
até geléia. as mães. também separou uma toalha e uma muda de roupas. empilhou-as
direitinho. “não sei onde andas com a cabeça, meu filho.” no fundo minha mãe sorria
de meu desatino. lembro do brilho de seus olhos, da sua face clara, de seu
sorriso materno. de sua lealdade de mãe. ah, que vontade de novo de encostar
minha cabeça em seu colo e descansar. pedir-lhe perdão por tudo. aninhar-me em
seu ventre morno para sempre. mas um dia
tudo foi. restam agora folhas secas no chão. varridas pelo tempo que não volta nunca
mais. “Pronto! leva isto pra ela e deixe-a ir embora. mamãe te ama.” atravessei
todo contente o corredor de casa. um corredor largo e generoso. ao chegar no
pátio, dei com ele vazio. a louca não estava mais lá. olhei para os lados. para
o céu também. não havia sinal algum da louca. estranho. nem mesmo seu cheiro. nada.
apenas um vento. o ar frio e puro daquela manhã em preto e branco.
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