I – MAS QUE PORRA É ESSA?
EU ME PREPARAVA PARA ASSISTIR O CABO DO MEDO. Uma
semana toda me preparando para assistir o Cabo
do Medo. Sozinho em meu quarto. O pau bem amolado. A cena em que De Niro
seduz pelo telefone a ninfetinha da Juliette Lews e a faz mais tarde chupar o
seu dedão, é antológica sim. Sempre tenho uma ereção fantástica quando vejo
esta cena. Meus amigos me consideram um doente. Pervertido. E tudo porque sou um
punheteiro nato. Sou um punheteiro sim e não nego. Além do mais, quem nunca se
melou ou bateu uma bela punheta assistindo a esta cena, que atire a primeira
pedra.
Um belo começo, eu suponho. Pois muito bem. Aguardava ansioso
o início do filme. Príapo arranhava as portas de vidro dos fundos da casa. O
uivo vinha da cozinha. O filme então começa. De Niro exercita-se na prisão premeditando
sua doce vingança. Não tem nem cinco minutos de filme, aí me aparece a cara do
Tom Hanks. “MAS QUE PORRA É ESSA? QUE-PORRA-É-ESSA?” Fiquei ali vendo o Tom
Hanks aparecer na tela da televisão vestido de astronauta. Aquilo era uma
sacanagem: haviam substituído Cabo do
Medo por Apollo 13. Filhas das
putas! Saltei da cama e fiquei andando desesperado pelo quarto com o pau amolecido.
Pensei em ligar para a central. Foi o que fiz:
“Boa noite, senhor!”
“Boa noite é um caralho! Vocês me prometeram o Cabo do Medo semana todinha, e agora sou
obrigado a assistir Apollo 13? Que
putaria é essa? Vocês acham que sou algum otário? Eu quero o que vocês me
prometeram, seus canalhas, filhas das putas!” Houve um silencio seguido de
risadas. Depois ruídos. Então ouvi uma voz lá no fundo dizer: “O cara é louco!”
Aí bateram o telefone. Liguei de novo. Nada. Outra vez: ocupado. Atirei furioso
o aparelho na parede do quarto e fui até a cozinha pegar uma cerveja. Príapo
arranhava as portas de vidro dos fundos.
II – A MALA, A
NUCA E O HOMEM.
Abri a porta e
o cão avançou em mim. Esfregou-se nas minhas pernas como um louco. Estava no
cio. Chamei sua atenção e ele ficou olhando para mim cinicamente, abanando sua
calda. Chamava-se Príapo, em razão do meu priapismo. Mais lá pra frente eu
explico. Príapo era um vira-lata branco, meio tamanho, com pintas marrons pelo
corpo todo. Não podia descuidar-me um só instante, que ele avançava nas minhas
pernas. Precisava arranjar uma cadela para ele. Para nós dois. Amanhã resolveremos esse problema, Príapo. Caminhei
até a sala com ele grudado nas minhas pernas. Abri as janelas e olhei a vizinha
do outro lado da rua chegando de viagem com uma mala bem grande: uma mala
dessas bem antiga e cafona. Grande mala. As malas são geralmente tristes, e as
pessoas que as carregam são mais tristes ainda. Não existe coisa mais patética do
que alguém partindo ou chegando de algum raios de lugar carregando uma mala.
Senti muita tristeza naquela hora. Uma tristeza profunda que não se arranca de
dentro da gente nunca. Ela vai crescendo lá dentro como uma planta. A tristeza
é uma planta plantada dentro da gente. Mas eu estava longe de sentir dor. Olhei
e vi que Príapo estava em pé na janela olhando para a mesma direção.
“Você está
vendo aquele ser humano ali, Príapo? Ela vem e vai com aquela mala. Não há
coisa mais triste no mundo do que uma mala. É como olhar a nuca de alguém. As
nucas também são tristes. Se você ficar muito tempo parado olhando a nuca de
alguém, você acaba ficando triste. A mala, a nuca e o homem, são depósitos de
tristezas e dissabores.” Evidentemente que o cão não ligou muito para o que eu
disse e voltou a esfregar-se freneticamente nas minhas pernas. Poderia ter
batido uma bronha ali mesmo olhando a solidão daquela mulher junto á porta com
sua mala, mas fechei as janelas e cerrei as cortinas. Pensei na Ana Paula
Padrão, (naquela época, âncora do jornal
das onze) sequei minha cerveja, bati uma punheta e fui dormir.
III – PROFESSOR
DE XADREZ
AH, CERTO. A COISA NÃO IA NADA BEM PARA MIM NAQUELE
ANO DE 2007. Financeiramente, não. Ouvia falar na televisão sobre melhorias na
economia brasileira, de mais empregos, oportunidades, sei lá o quê, mas eu
continuava fodido. Chutado de um trampo para outro. Havia acabado o contrato na
escola onde trabalhava e me deram um chute na bunda. Na verdade, foi até bom. Nunca
gostei de trabalhar. Mas tenho medo de ficar desempregado. É como ser
atropelado por um carro. Resolvi então dar aula de xadrez para crianças. Não
era nenhum exímio enxadrista, mas dava para o gasto. Cobrava R$ 70,00 por mês.
Nas primeiras semanas, nada. Nem na outra. Não sei onde eu estava com a cabeça.
No entanto, na terceira semana - como uma aparição - estacionou um carro na
porta de casa e de lá saltou uma senhora bem gorda trazendo pela mão um garoto
igualmente obeso e com cara de idiota. Devia ter uns seus onze ou doze anos
mais ou menos:
“Quero botar o meu filho para aprender xadrez,
vizinho. Dizem que xadrez desenvolve a lógica, e ele é meio lerdo em
matemática. O senhor acha que ele pode melhorar com aulas de xadrez?”
“Vamos tentar, né, senhora.”
“Ouviu, Luiz Carlos, você vai aprender a jogar xadrez
e vai fazer o exame para ingressar na escola militar, viu?” O garoto me sorria
com uma cara de idiota. Tentei então ensinar o garoto a jogar xadrez, mas ele
não aprendia. De jeito nenhum. Havia se passado uma semana e meia e nada dele
conseguir sequer arrumar as pedras no tabuleiro; o movimento de cada uma delas.
“Filho, o Cavalo movimenta-se em forma de L. Observe: Viu? Já a Torre, traça
essa trajetória aqui, está vendo? Veja como poderei capturar a sua Rainha, pan!
Xeque! Viu? Aprendeu?”
Na terceira semana já estava perdendo a
paciência:
“Olhe, está vendo este cachorro aqui? (Apontei para Príapo
que esfregava-se nas minhas pernas). Ele corre o risco de aprender a jogar
xadrez primeiro do que você se eu ensiná-lo. E sabe por quê? Por que ele é mais
inteligente que você. É isso mesmo. Os cães são mais inteligentes que os humanos.
E não adianta fazer essa cara de choro. Desista! Você nunca vai aprender a
jogar xadrez na sua vida. Volte para os vídeo games e esqueça também do exame
para ingressar na escola militar. Você não vai conseguir. Talvez seja até
melhor. Corre menos risco de se tornar um viado. Você quer se tornar um viado
com uma patente, filho? Han?” Balançava a cabeça negativamente.
“Boa, garoto! Não diga que sou um mau caráter. Só não
quero mais tomar o dinheiro da sua mãe e perder meu tempo. O meu e o seu. Minha
paciência tem limites.”
No outro dia a mãe dele bateu à minha porta. Eu estava
de ressaca: me sentindo dentro de um papel de embrulhar carne. Príapo não
desistia das minhas pernas. Aproveitava-se sempre da minha vulnerabilidade
alcóolica. Tinha que arranjar urgente uma cadela pra ele. Bom, abri a porta:
“O que o senhor disse para o meu filho, seu Mário, que
ele está sem se alimentar a dois dias.”
“Quer entrar, senhora?”
“Não, obrigada! Quero saber o que o senhor disse a
ele.”
“Disse para ele não vir mais, senhora.”
“E posso saber por quê? Eu estou pagando para o meu filho
aprender a jogar xadrez.”
“Este é o ponto, minha senhora.”
“Como assim?”
“Ele não aprende. Até tenta, mas não aprende. Nunca
vai aprender. Seu filho é lerdo demais.”
“O senhor não pode falar uma coisas dessas do meu
filho.”
“Posso sim.”
“Não tem esse direito. O senhor o está agredindo e me
agredindo.”
“Entenda como quiser.”
“Quero o meu dinheiro de volta.”
“An-an! Todo não. A metade dele. Perdi meu precioso tempo
pelejando com seu filho.”
“Então devolva-me a metade.” Dei-lhe a metade da grana.
Saiu rogando-me pragas. Voltei para a minha cama e para minha dor de cabeça.
Luiz Carlos tinha sido o primeiro e último. Não apareceu mais ninguém querendo aprender a
jogar xadrez. Mas precisava ganhar dinheiro. Botei aulas de leitura então. Inventei
algumas técnicas absurdas. Choveu de mães desesperadas com seus filhos. Todos
com dificuldades de ler. As mães botavam
culpa na tal da dislexia. Reuni umas cinco ou seis alminhas penadas dessas. Minha
técnica consistia em deixá-los bem á vontade pela casa. Tomavam de assalto a
minha estante de livros e espalhavam todos eles pelo chão da casa. Ficava uma bagunça.
Mas deixava-os á vontade descobrindo as palavras enquanto me concentrava frente
ao laptop tentando terminar um conto infeliz. Certa vez, flagrei um deles
folheando o “Manual Didático do Sêmen Onipotente”, de um PH.d canadense. Não sabia como o moleque tinha
conseguido alcançá-lo no topo da estante.
“Não, este não, Júnior. É técnico demais. Tome este
aqui!” Dei-lhe o “Manual do Pedólatra”, do Glauco Matoso. Não tardou para que uma
das mães batesse à minha porta. Estava de bom humor e passava manteiga no pão:
“Bom dia, seu Mário!”
“Oh, bom dia, dona Graça!”
“Seu Mário, é que, meu filho, Paulo Henrique, acordou
esta manhã falando umas coisas
indecentes aí.”
“Que coisas indecentes, dona Graça? Quer um café?”
“Não, obrigado, seu Mário. Bom, tipo... vagina, pênis,
ânus, ereção, mucoses, esses palavrões aí, entende? Ele disse que aprendeu com
os livros do senhor.”
“Seu filho é um garoto muito esperto, dona Graça.
Biologicamente normal. E esta aprendendo a ler.”
“Ele só tem sete anos, seu Mário. Não quero vê-lo
aprendendo essas coisas, ou falarei para o meu marido, o senhor me entende?” Fechei
fundo meus olhos e um instante imaginei um desses maridos grandalhões que
pilotam ônibus ou caminhão de entregas de eletrodomésticos com um cheiro
terrível de inhaca. Terminei de passar manteiga.
“Perfeitamente, dona Graça.”
Desistir então de dar aulas para aquelas crianças retardadas
e voltei à carga com os meus livretos na rua. Não que as crianças tenham culpa alguma de
serem retardadas, quero deixar bem claro aqui. São os pais que as tornam assim.
No fundo, eu precisava mesmo era de uma aventura nova na minha vida. Então eu
parti atrás dela...
bom texto Mário Augusto, bastante bukowiskiano, o que para mim é ótimo, estou curioso para ler a continuação.
ResponderExcluirp.s.: a nossa hq tá saindo, se nós professores entrarmos mesmo em greve, como tudo indica, aí eu termino de vez esta obra de arte. e aí, será que o cara do selo de rua ainda está interessado em publicar?
grande abraço amigo, e não deixe de ir sexta feira lá no arte na praça, vamos agregar, o momento pede união das classe, grupos,entidades etc.