NÃO SABEMOS A
MEDIDA DO NOSSO INFERNO NA TERRA.
A viagem foi sem graça e violenta com muitas
sacudidelas, vômitos e lamentos recolhidos dentro de mim na carroceria daquela
picape velha que nos dava carona. Não tínhamos muito o que falar um para o
outro. Seguíamos calados atravessando uma estrada seca e poeirenta com um sol
criminoso batendo cheio em nosso rosto. A sorte é que dividíamos os três, um
Deus da melhor qualidade. Não sabemos a medida do nosso inferno na terra.
Foda-se! Apenas seguimos, índios e brancos. E isto me parece razoavelmente bom.
Chegamos ao entardecer. Quase de noite. Depois dali, não sei que rumo aqueles
dois tomaram. É que nos perdemos, engolidos que fomos pela multidão. Vi-me
terrivelmente só e desnorteado andando bêbado pelo centro de Parintins.
Empurrado pra lá e pra cá. Esmagado no meio daquela gente toda. Mas empunhando
um Deus importado. Eu estava cansado e fodido! Vez ou outra dava enormes
goladas naquela garrafa e meu corpo se anestesiava e eu via tudo azul e
vermelho e seguia em frente. Descobri que andava em círculo em torno da grande
arena como um penitente pagando os meus pecados. Foi quando me lembrei da
Bodega do Negão que ficava ali próximo, bem atrás da Igreja de Nossa Senhora do
Carmo e tratei de cair fora do grande círculo.
Quando lá cheguei,
tocava um sambinha triste do Chico da Silva que falava de amor e boemia e então
eu me sentei sozinho em um canto pra ouvir. Eu precisava de um lugar como
aquele pra descansar um pouco. Sentia-me nocauteado. Ao menos não sentia fome e
nem vontade de trepar. Apenas uma ânsia enorme de seguir bebendo e nunca mais
parar. Nunca mais! Até que o falso Negão notou minha presença e caminhou para
mim:
“Tá perdido, rapaz? As tuas amigas estão atrás de
você. A ruivinha deixou este endereço. O que aconteceu?”
“Eu fui flechado.”
“Você tá é bêbado.” Ele riu. “Vou preparar uma sopa.”
E se foi. Nesse espaço de tempo eu só me lembro que fiquei sozinho naquela mesa
nos fundos do bar me alimentando de Deus enquanto ouvia as canções do Chico.
Havia uma que dizia: “Eu canto eu canto,
minha vida, meu destino, meus amores figurados e os pecados de um poeta
abandonado, estou cantando o meu pranto recheado de ilusões...” Pensava em
Chelsea. Meu pensamento em negrito não conseguia se desgrudar dela. No meu pensamento ela dançava sensualmente
vestindo uma lingerie vermelha com seus cabelos soltos. Eu tinha que
possuí-la uma última vez. Não me
conformava. O Negão veio com a sopa.
O vapor quente entrava pelas narinas. Embaçou tudo. Fiquei olhando pra sopa.
Empurrei o pratinho pro lado e continuei confabulando com Deus. Botando
desesperado ele pra dentro de mim. Deus era mais forte que eu. Me inebriava os
sentidos. Acelerava meus batimentos cardíacos. Depois, li com cuidado o
endereço escrito no bilhetinho. Pensei no que fazer. Eu tinha que salvar
Chelsea daquela seita de malucos ou sei lá o quê era aquilo. Pedi emprestado
uns trocados ao Negão, agradeci pela sopa e deixei a Bodega. Parei o primeiro
triciclo que passava e entreguei o papel ao seu condutor. “Toca pra este
endereço!” Ele cortou por um caminho diferente, evitando a multidão, o que nos
obrigou a margear a orla da ilha. Uma lua ébria pairava baixa no céu. Um cheiro
de rio e solidão. O caminho parecia interminável. O meu pensamento em Chelsea.
O gavião nunca abandona o companheiro. Uma vírgula! Ela havia abandonado o
companheiro para viver ao lado de um anão albino. Eu tinha sido enganado e não
sabia como tudo aquilo ia acabar. Finalmente chegamos. Gratifiquei o condutor,
e a passos cambaleantes atravessei o arco de caramanchões e bugunvílias
descendo as escadas espiraladas que me levavam novamente aquele porão sombrio.
Os anões me olharam perdido e transtornado quando surgi dentro da fumaça.
Tocava dessa vez uma versão eletrônica de La Boheme, de Charles Azavour. Virna
se aproximou. Havia outra anãzinha com ela. Era Valentina com aquele troço
horrível atravessado no nariz. Foi a única que sorriu emocionada a me ver.
Virna disse:
“Tudo bem, Mário Augusto?” Outros anões se juntaram a
elas. Me olhavam penalizados. Quando dei por mim, estava cercado de anões. Eu
olhava pras figurinhas. Eram como seres inocentes e perversos de uma floresta
encantada.
“Vim buscar Chelsea. Onde ela está?”
“Chelsea está ocupada, amamentando Frederico. Você se
acalme!”
“Isso tudo é uma loucura! Uma conspiração! Quero ver
Chelsea!” Furei o bloqueio dos anões. Nos fundos do salão, envolta em uma
fumaça de gelo, vislumbrei a sombra de Chelsea amamentando o anão albino. A
pele dela estava mais pálida e bonita.
Eu chorava miséria
Enquanto você pousava nua.
Dizia a canção do Azavour.
O anãozinho parou um pouco de mamar, e olhou
aterrorizado quando me aproximei deles:
“Então é verdade?”
“O que é verdade?”
“Tornastes ama de leite de anão.”
“Você não sabe o que diz, Mário Augusto. Está bêbado.”
“Você precisa vir comigo.” Estiquei minha mão tentando
tocá-la. Eu precisava tocá-la. Senti-la uma última vez. Frederico fez uma
careta terrível de choro. Os anões olhavam a cena, comovidos e preocupados:
“Você ficou maluco, Mário Augusto? Não podes me tocar.”
“Por que não posso?”
“Por que só as coisas sagradas merecem ser tocadas.”
Disse Virna atrás de mim. Virei para ela:
“Como quê?”
“Como a dor, Mário Augusto.”
“O que tem a dor?”
“Precisas sentir a dor para crescer.”
“Isso não faz sentido!”
“Você precisa encontrar a dor, Mário Augusto! Ela está
aí dentro de você.”
“Está aí dentro de você! Está aí dentro de
você!”
Repetiam
em coro os anões.
“Chega um tempo da vida em que a gente perde o
controle, Mário Augusto. Tente manter o controle. A dor acalenta a loucura.”
“A dor acalenta
a loucura! A dor acalenta a loucura!”
Os anões fechavam o cerco em minha volta.
“Você não quer ser um cavalo, Mário Augusto? Sentir a
dor de um cavalo?”
“A dor de um
cavalo! A dor de um cavalo!”
Ignorei aquilo, e ao tentar tocar mais uma vez em
Chelsea, Frederico deu um berro assustador. Fui me afastando de costas. Os
anões repetiam em coro:
“Você precisa
encontrar a dor! Você precisa encontrar a dor!”
Ouvia-os como sob o efeito de um mantra diabólico. Fui
andando de costas até á porta. Esbarrei em um dos corpos pendurados. Olhei e
era o de Claudionilson. Ainda permanecia pendurado pelos peitos que estavam
enormes e inchados. Jorrava leite dele e alguns anões aparavam o líquido com
suas tigelinhas. O índio me olhou com um sorriso patético, e disse:
“O que você precisa é curar a sua alma por meio da
dor, Mário Augusto! Só a dor é capaz.”
“Só a dor é
capaz! Só a dor é capaz!” Diziam os anões.
“À merda com a dor!” E subi desesperado aquelas
escadas espiraladas deixando aquele porão. Saí em busca da minha dor.
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