quarta-feira, 19 de junho de 2013

A RUIVA - PARTE XI



 NÃO SABEMOS A MEDIDA DO NOSSO INFERNO NA TERRA.

A viagem foi sem graça e violenta com muitas sacudidelas, vômitos e lamentos recolhidos dentro de mim na carroceria daquela picape velha que nos dava carona. Não tínhamos muito o que falar um para o outro. Seguíamos calados atravessando uma estrada seca e poeirenta com um sol criminoso batendo cheio em nosso rosto. A sorte é que dividíamos os três, um Deus da melhor qualidade. Não sabemos a medida do nosso inferno na terra. Foda-se! Apenas seguimos, índios e brancos. E isto me parece razoavelmente bom. Chegamos ao entardecer. Quase de noite. Depois dali, não sei que rumo aqueles dois tomaram. É que nos perdemos, engolidos que fomos pela multidão. Vi-me terrivelmente só e desnorteado andando bêbado pelo centro de Parintins. Empurrado pra lá e pra cá. Esmagado no meio daquela gente toda. Mas empunhando um Deus importado. Eu estava cansado e fodido! Vez ou outra dava enormes goladas naquela garrafa e meu corpo se anestesiava e eu via tudo azul e vermelho e seguia em frente. Descobri que andava em círculo em torno da grande arena como um penitente pagando os meus pecados. Foi quando me lembrei da Bodega do Negão que ficava ali próximo, bem atrás da Igreja de Nossa Senhora do Carmo e tratei de cair fora do grande círculo.
            Quando lá cheguei, tocava um sambinha triste do Chico da Silva que falava de amor e boemia e então eu me sentei sozinho em um canto pra ouvir. Eu precisava de um lugar como aquele pra descansar um pouco. Sentia-me nocauteado. Ao menos não sentia fome e nem vontade de trepar. Apenas uma ânsia enorme de seguir bebendo e nunca mais parar. Nunca mais! Até que o falso Negão notou minha presença e caminhou para mim:
“Tá perdido, rapaz? As tuas amigas estão atrás de você. A ruivinha deixou este endereço. O que aconteceu?”
“Eu fui flechado.”
“Você tá é bêbado.” Ele riu. “Vou preparar uma sopa.” E se foi. Nesse espaço de tempo eu só me lembro que fiquei sozinho naquela mesa nos fundos do bar me alimentando de Deus enquanto ouvia as canções do Chico. Havia uma que dizia: “Eu canto eu canto, minha vida, meu destino, meus amores figurados e os pecados de um poeta abandonado, estou cantando o meu pranto recheado de ilusões...” Pensava em Chelsea. Meu pensamento em negrito não conseguia se desgrudar dela. No meu pensamento ela dançava sensualmente vestindo uma lingerie vermelha com seus cabelos soltos. Eu tinha que possuí-la uma última vez. Não me conformava. O Negão veio com a sopa. O vapor quente entrava pelas narinas. Embaçou tudo. Fiquei olhando pra sopa. Empurrei o pratinho pro lado e continuei confabulando com Deus. Botando desesperado ele pra dentro de mim. Deus era mais forte que eu. Me inebriava os sentidos. Acelerava meus batimentos cardíacos. Depois, li com cuidado o endereço escrito no bilhetinho. Pensei no que fazer. Eu tinha que salvar Chelsea daquela seita de malucos ou sei lá o quê era aquilo. Pedi emprestado uns trocados ao Negão, agradeci pela sopa e deixei a Bodega. Parei o primeiro triciclo que passava e entreguei o papel ao seu condutor. “Toca pra este endereço!” Ele cortou por um caminho diferente, evitando a multidão, o que nos obrigou a margear a orla da ilha. Uma lua ébria pairava baixa no céu. Um cheiro de rio e solidão. O caminho parecia interminável. O meu pensamento em Chelsea. O gavião nunca abandona o companheiro. Uma vírgula! Ela havia abandonado o companheiro para viver ao lado de um anão albino. Eu tinha sido enganado e não sabia como tudo aquilo ia acabar. Finalmente chegamos. Gratifiquei o condutor, e a passos cambaleantes atravessei o arco de caramanchões e bugunvílias descendo as escadas espiraladas que me levavam novamente aquele porão sombrio. Os anões me olharam perdido e transtornado quando surgi dentro da fumaça. Tocava dessa vez uma versão eletrônica de La Boheme, de Charles Azavour. Virna se aproximou. Havia outra anãzinha com ela. Era Valentina com aquele troço horrível atravessado no nariz. Foi a única que sorriu emocionada a me ver. Virna disse:
“Tudo bem, Mário Augusto?” Outros anões se juntaram a elas. Me olhavam penalizados. Quando dei por mim, estava cercado de anões. Eu olhava pras figurinhas. Eram como seres inocentes e perversos de uma floresta encantada.
“Vim buscar Chelsea. Onde ela está?”
“Chelsea está ocupada, amamentando Frederico. Você se acalme!”
“Isso tudo é uma loucura! Uma conspiração! Quero ver Chelsea!” Furei o bloqueio dos anões. Nos fundos do salão, envolta em uma fumaça de gelo, vislumbrei a sombra de Chelsea amamentando o anão albino. A pele dela estava mais pálida e bonita.
            Eu chorava miséria
            Enquanto você pousava nua.
Dizia a canção do Azavour.
O anãozinho parou um pouco de mamar, e olhou aterrorizado quando me aproximei deles:
“Então é verdade?”
“O que é verdade?”
“Tornastes ama de leite de anão.”
“Você não sabe o que diz, Mário Augusto. Está bêbado.”
“Você precisa vir comigo.” Estiquei minha mão tentando tocá-la. Eu precisava tocá-la. Senti-la uma última vez. Frederico fez uma careta terrível de choro. Os anões olhavam a cena, comovidos e preocupados:
“Você ficou maluco, Mário Augusto? Não podes me tocar.”
“Por que não posso?”
“Por que só as coisas sagradas merecem ser tocadas.” Disse Virna atrás de mim. Virei para ela:
“Como quê?”
“Como a dor, Mário Augusto.”
“O que tem a dor?”
“Precisas sentir a dor para crescer.”
“Isso não faz sentido!”
“Você precisa encontrar a dor, Mário Augusto! Ela está aí dentro de você.”
                 Está aí dentro de você! Está aí dentro de você!
            Repetiam em coro os anões.
“Chega um tempo da vida em que a gente perde o controle, Mário Augusto. Tente manter o controle. A dor acalenta a loucura.”
A dor acalenta a loucura! A dor acalenta a loucura!
Os anões fechavam o cerco em minha volta.
“Você não quer ser um cavalo, Mário Augusto? Sentir a dor de um cavalo?”
A dor de um cavalo! A dor de um cavalo!
Ignorei aquilo, e ao tentar tocar mais uma vez em Chelsea, Frederico deu um berro assustador. Fui me afastando de costas. Os anões repetiam em coro:
Você precisa encontrar a dor! Você precisa encontrar a dor!
Ouvia-os como sob o efeito de um mantra diabólico. Fui andando de costas até á porta. Esbarrei em um dos corpos pendurados. Olhei e era o de Claudionilson. Ainda permanecia pendurado pelos peitos que estavam enormes e inchados. Jorrava leite dele e alguns anões aparavam o líquido com suas tigelinhas. O índio me olhou com um sorriso patético, e disse:
“O que você precisa é curar a sua alma por meio da dor, Mário Augusto! Só a dor é capaz.”
Só a dor é capaz! Só a dor é capaz!” Diziam os anões.
“À merda com a dor!” E subi desesperado aquelas escadas espiraladas deixando aquele porão. Saí em busca da minha dor.

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