OS PAPA XANAS
Depois que descemos das motos que nos levaram ás
proximidades daquele bairro situado nos confins daquela Ilha, tivemos ainda que
andar mais ou menos uns 30km de uma estrada bruta de barro amarelo, debaixo de
um caralho de sol escaldante. Os moto-taxistas não quiseram nos dizer o motivo,
apenas nos largaram no meio do nada, deram a volta em suas motocicletas e
desapareceram na poeira. O choque, no entanto, estava mesmo para acontecer
algumas horas dali, quando adentramos a reserva daqueles índios que sequer
sabíamos a etnia. O lugar era um enorme descampado com vários barracões
espalhados ao redor. Não eram malocas cobertas de palha como imaginávamos
encontrar, mas imensos barracões fantasmagóricos, a maioria, feito de madeira
coberta de lona que mais pareciam acampamentos dos Sem-Terra. Tudo em volta era
triste e sombrio. Me senti deprimido. Chelsea sacou a filmadora e foi fazendo algumas
tomadas do lugar. Marcos tirava fotos e tomava notas em seu caderninho. Alguns
índios, deitados em suas redes, nos olhavam desconfiados com o canto dos olhos.
A maioria, índios embriagados entornando garrafas de cachaça, outros tantos
jogados pelo chão, nos arredores das barracas. Aos poucos, foram aparecendo um
montão deles, capotados sobre um chão de barro amarelo e bruto. O lugar era
desolador e aquela gente toda parecia remanescente de uma guerra tribal sem
precedentes. Notei algum sinal de preocupação nos olhos de Virna, mas não
perguntei nada. Acendi um cigarro pra relaxar. Aí então, vimos um daqueles
índios caminhar em nossa direção vestindo uma camisa do Flamengo e empunhando
uma garrafa de Velho Barreiro. Gesticulava á beça e falava no seu dialeto
alguma coisa que não entendíamos:
“O que ele tá dizendo?” Quis saber Marcos.
“Tá pedindo pra vocês pararem de filmar.” Disse Virna.
“Guarda a máquina, Chelsea!” Ordenou Marcos. Mas
Chelsea continuou filmando a aproximação do índio. Ele chegou bem perto.
Parecia furioso. Outros índios se aproximaram cambaleando. Entre eles, mulheres
e crianças. Todos aparentemente bêbados. Nos cercaram. Virna falou alguma coisa
para o índio extressadinho e ele se acalmou um pouco. As mulheres começaram a
cheirar as roupas de Chelsea. Tocavam nela. Os homens alisavam a roupa florida
de Marcos que reluzia ao sol. Apontavam para o tênis que ele usava.
“Aproveita e pergunta qual é a etnia deles, e onde
está o Tuxaua.” Ordenou Marcos para Virna. Parecia tudo tão simples para ele.
Virna dirigiu sua pergunta ao índio extressadinho que
respondeu, provocando gargalhadas dos outros índios:
“Disse que se chamam os Papa-Xanas. Mas acho que estão
de gozação, por isso todos riram.” Notei que um dos índios olhava com saliência
para uma das partes íntimas e salientes de Chelsea sob sua saia jeans colada.
Suas unhas vermelhíssimas luzindo ao sol.
“Pergunta se podemos filmá-los?” Disse Marcos. Virna
traduziu a pergunta. Virna era mesmo uma anãzinha surpreendente. O índio voltou
a gesticular sem parar na direção da câmera nas mãos de Chelsea.
“O que ele tanto quer?” Perguntou Chelsea.
“Ele quer tua câmera.”
“Não senhor!” Disse Chelsea, recuando uns passos.
“Então para de filmar!” Aconselhou Virna falando entre
os dentes. Uma índia tocava agora nos seios redondos de Chelsea. Apertava-os.
Uma outra cheirava seus cabelos.Foram fechando o cerco em torno de nós. Um
índio puxava a camisa havaiana de Marcos. O outro queria seu tênis.
“O que eles querem afinal?”
“Gostaram da sua roupa. Eles querem para eles.” Disse
Virna. Um índio mais afoito arrancou a Canon das mãos de Marcos. Os outros, a
filmadora de Chelsea. Arrancaram também seus óculos escuros. Senti um deles vindo
por trás de mim. Puxou minha carteira do bolso. Não havia nada nela. Levei um pescoção
do cara. A carteira foi parar longe. Os outros riram daquilo. O índio
extressado falava agora nossa língua e ainda gesticulava bastante. Aos poucos,
foram fazendo a limpeza. Ninguém foi poupado.
“Puta que pariu, diz pra eles não fazerem isso. Viemos
em paz.” Disse inocentemente Marcos, livrando-se agora do tênis.”
“Não reajam! Vou ver se falo com o tuxaua.” Disse
Virna. Trocou algumas falas com o índio furioso. Ele apontou pra barraca nos
fundos. Lá ficava o grande tuxaua. Fomos até lá com os índios atrás de nós. O
índio nervosinho entrou primeiro. Depois ordenou que entrássemos. Virna sentou
defronte ao Tuxaua que era um índio velho, forte e pelhancudo, e que ao
contrário dos outros índios, parecia viver muito bem obrigado. Olhei ao redor e
vi uma televisão plasma, uma geladeira e alguns outros eletrodomésticos ainda
encaixotados com os dizeres, fragile.
Nos fundos, atrás do Tuxaua, havia um altar repleto de garrafas de cachaça e
whiskies importado. Era espantoso. Virna agora negociava diretamente com ele.
Ficamos ali esperando Virna nos dá o feedback. Depois de um tempo, ela nos
falou:
“Bom, o tuxaua disse que não pode fazer nada sobre o
material apreendido, uma vez que tudo que chega à aldeia passa a pertencer a
eles.”
“Mas não há um jeito de negociar, não?” Quis saber,
Marcos.
“Talvez haja um jeito, sim.” Virna virou-se para o
Tuxaua e lhe mostrou sua enorme serpente tatuada nas costas. O tuxaua ficou
olhando pra aquilo. Tocou na cobra. Falou alguma coisa. Virna respondeu.
Parecia haver um entendimento. Virna virou pra gente outra vez:
“O tuxaua gostou bastante da cobra. Ele quer que eu
faça uma tatuagem dessas em suas costas. Em troca, ele nos deixa ir embora.”
“Mas e o material?”
“O material fica.”
“Brincadeira! Isso não está certo, não.” Disse Marcos
já um pouco nervoso. Não via mais nele a figura de antropólogo. Chelsea tentava
acalmá-lo. Parecia mais tranquila que ele. Cheguei a pensar que ela ria de toda
aquela situação. Virna ainda tentou argumentar alguma coisa, mas o tuxaua balançava
a cabeça negativamente.
“É pegar ou largar, gente.”
“Mas nem terminamos de pagar esse material. Como
fica?” Disse Marcos.
“Não fica.“ Disse Virna.
“Gente, vamos resolver logo essa parada.” Eu disse.
Concordaram. Virna então pediu para que liberassem a sua mochila, pois dentro
dela havia as suas ferramentas de trabalho. Virna era mesmo precavida. O tuxaua
ordenou que trouxessem as suas coisas. Resolvido o problema, ela começou então
a esboçar o desenho nas costas do velho. Ficamos ali sentados olhando. Aquilo
levaria horas. Marcos e Chelsea começaram a discutir baixinho. Aproveitei para
contar as garrafinhas que havia no altar, mas eu sempre me perdia na contagem e
aí então eu recomeçava tudo de novo. Havia pra mais de cem garrafas daquelas.
Impressionante! Era como santinhos no altar. Aí então me cansei de contar todas
aquelas garrafinhas, me levantei e pedi licença para sair. Licença autorizada
pelo tuxaua, e eu então me pus a andar pensativo ao longo da aldeia. Olhava aquele
lugar. Era mesmo um cenário desolador e deprimente. Todos aqueles corpos embriagados
espalhados pelo chão. Um verdadeiro holocausto indígena. De repente, avistei
uma confusão: dois Papa-Xanas iniciaram uma luta corporal por causa de uma
garrafa de 51. Caíram atracados no chão e ficaram ali rolando no barro bruto e
amarelo. Ninguém ligava pra eles. Parecia natural. Fiquei olhando. O vencedor
ficou por cima e agora socava no chão duro a cara do seu oponente. Ficou ali
batendo como se bate uma roupa no tanque até o outro desfalecer. Ele então
pegou o seu prêmio e saiu cambaleado pra longe. Continuei andando tranquilo
pela aldeia fingindo naturalidade. Sentei em um tronco de árvore perto de um indiozinho.
Um menino. Ele detonava uma garrafa daquelas. O moleque não tinha mais que dez anos
de idade. Orgulhoso, mostrou sua garrafa como a um troféu. Tomei-a de suas
mãozinhas, dei-lhe uns cascudos brincando e entornei uma talagada daquele
veneno. O pai se aproximou para ver. Sentou perto de nós e ficou revezando com
a gente. O sol ardia sem piedade e o silencio ensurdecedor parecia a imagem de
uma velha sem dentes. O índio pai falava a nossa língua e parecia muito
descontente com o Tuxaua e a vida que levava na aldeia. Conversando um bom
tempo com ele, arrisquei a perguntar como é que eles conseguiam todas aquelas
bebidas. Ele então me revelou algo surpreendente. O cacique ou seja lá o quê
ele representasse, me disse que havia um grande estoque de bebidas na maloca do
tuxaua, e era ele, o tuxaua, quem sempre distribuía as bebidas para todos na
aldeia quando celebravam as festas em homenagem ao grande Deus da garrafa.
“Tupã?” Perguntei.
“Não, Tupã, não, ao grande Deus que mora dentro de
cada uma dessas garrafas.” Disse ele. Só me faltava essa. Tupã havia se
transformado num líquido alcoolizante. Eu havia feito uma descoberta que nenhum
historiador, cientista ou antropólogo havia feito: Deus havia sido convertido
em um líquido alcoolizante e agora toda a tribo cultuava um novo Deus. Ele
ainda me revelaria mais coisas surpreendentes quando perguntei quem fornecia
Deus à tribo. Tomou uma golada de Deus, passou pro menorzinho, depois pra mim e
prosseguiu. Explicou que Deus vinha na forma do grande pássaro de ferro que
pousava atrás da reserva. Os índios desembarcavam Deus que chegava sempre à noitinha
e ia direto pra barraca do Tuxaua. Disse ainda que, já algum tempo, havia grande
interesse do homem branco em construir naquelas terras, uma rede hoteleira. Mas
havia a reserva atrapalhando o caminho, foi então que encontraram a solução
para o problema: conquistar a confiança do Tuxaua com o fornecimento de Deus junto
com eletrodomésticos. Agora entendia porque o tuxaua levava uma vida de luxo no
seu cafofo, provando de um Deus legítimo, enquanto os índios se matavam
enchendo a cara com um Deus vagabundo. Eu tinha uma senhora bomba nas mãos.
Poderia tornar aquilo público. Ferrar com o Tuxaua. Fiquei pensando. Então eu
disse, levantando e batendo a poeira das calças:
“Mas esse Tuxaua é um grandississimo filho da puta,
hein?”
Depois caminhei trôpego
até a barraca. Marcos e Chelsea discutiam feio na entrada do barracão. Parecia
não mais se entenderem. Ninguém mais se entendia. De algum modo, as coisas
pareciam dar para trás:
“Vamos dar o fora gente, o Tuxaua é um impostor!” Não
ligaram para o que eu disse. Chelsea olhava contrariado para Marcos. Depois ela
foi sentar bem longe dele, emburrada. Entrei na barraca. Virna espetava agora
as agulhinhas nas costas do velho. Cochichei no ouvido dela:
“Vamos cair fora daqui! Esse Tuxaua não presta!”
“Xiiii...” Onomatopeou o Tuxaua. Depois fez um sinal
sério com as mãos para eu sair.
“Espera lá fora, Mário! Estou quase terminando.”
Saí. O calor derretia os miolos. Nenhuma fresca,
sombra, nada! Fui me sentar a uma certa distancia de Chelsea que estava sentada
distante de Marcos. Calados e pensativos parecíamos os “pensadores” de Rodin
derretendo sob um sol vingativo. As horas se passavam. Chelsea agora riscava
com um graveto, qualquer coisa no chão de barro batido. Estava triste. Mesmo
triste ela estava bonita. Suada e bonita. Suas unhas pintadas de vermelho
brilhavam. É só o que me lembro. Aí então vimos a lua aparecer e Virna
finalmente saiu de dentro da barraca seguida pelo Tuxaua que mostrava orgulhoso
sua tatuagem de serpente. Os índios vieram ver. Cercaram-no. Começaram a dançar
e cantar formando um pequeno círculo em nossa volta, cantando:
É carne de boi cheia
ôôô!
É carne de boi cheia
aaa!
Com os Papa-Xana,
não se meta!
Cantavam. Vendo-os cantar e dançar daquele jeito,
conclui que aqueles índios não batiam bem da cabeça, ou só podiam mesmo estar
de sacanagem conosco. E foram distribuídos mais bebidas. O Tuxaua abriu mão de
algum estoque de seu Deus legítimo. Os Papa-Xanas faziam filas na entrada da
barraca do grande chefe. Festa na tribo. Uma festa que provavelmente duraria
horas ou dias, quem sabe. Os Papa Xanas só queriam um pé. Era a nossa chance de
escapar, pensei, mas o Tuxaua ordenou que ficássemos e celebrássemos com eles.
Foi nos servido um whiski doze anos numa cuia. Ficamos ali bebendo com o grande
chefe e com os outros índios eleitos. A noite havia chegado. Tomávamos goles
monumentais daquele whiski. O Tuxaua ria e falava cuspindo na cara da gente. Aí
vimos surgir no meio do terreiro um pajé todo coberto por garrafinhas de corote
e ele começou a dançar uma dança estranha. Tremia-se todo. Tinhas espasmos
fantásticos. Um delirium-tremens em grande estilo. Eu tomava goles monumentais
daquela cuia e passava para os companheiros ao lado. Os índios se exibiam pra
gente. As crianças brincavam com Virna, puxando seus cabelos ruivos e espetando
com pedaços de pau o desenho da cobra nas suas costas. Ela respondia rindo e
atirando pedras nelas. A noite ia alta e ebriamente harmoniosa. Não tínhamos idéia
da hora. Vi Chelsea levantar-se e caminhar para longe. Depois ela sentou-se em
um tronco e ficou ali pensando e olhando pra lua. Parecia mesmo preocupada.
Tomei coragem e fui até ela:
“E aí?” Riu sem dizer nada.
“Infelizmente nem tudo sai como a gente quer, não é
mesmo...?”
“Pouco importa agora, Mário.”
“Ah, é? Mas e o filme, os registros, pensei que fosse
importante.”
“As coisas apontam para
um outro rumo, agora. E depois...” Ela parou, me olhou fundo com aqueles olhos
castanhos e lindos, e disse:
“Vou lhe ser sincera, Mário. No fundo eu não tinha
muito interesse nesse projeto do Marcos. Me lancei a mais esta aventura por
insistência dele.O que fiz até hoje não foi por decisão minha, mas por
imposição dele ou então para agradá-lo. Mas, sabe, tudo isso aqui me fez olhar
o mundo com outros olhos. A Amazônia me tornou livre das amarras de Marcos. Me
fez tomar uma decisão muito séria, é.”
“E que decisão é essa...? Me ajeitei todo contente pra
ouvir.
“Estou me separando dele.” Aquilo foi como um tapa
legal. Me cheguei mais perto dela. As estrelas pinicavam no céu. Me passou uma
idéia na cabeça. Uma possibilidade de ficarmos juntos. Eu arriscaria. Tomaria
jeito na minha vida. Sim, por aquela mulher eu tomaria vergonha na cara. Estava
decidindo meus sentimentos.
“Então estão se separando?”
“Isso mesmo que ouviu. Não retornarei mais para São
Paulo. Passarei a viver aqui, nessa Ilha. Farei meu próprio filme. Montarei
minha produtora independente.” Meu coração bateu forte vendo-a falar daquele
jeito, bastante incisiva. É isso ai,
garota, é assim que se fala. Minha alma poerenta e amarela dava saltos de
alegria por dentro. Tomei coragem e envolvi uma de suas mãos, dizendo:
“Preciso também lhe dizer uma coisa e é muito sério.”
Me olhou curiosa. “É que... bom, desde que lhe vi pela primeira vez, lá no
barco, lembra? Cara, eu me apaixonei por você. Senti o que não tinha sentido
por mulher alguma. E aquele desatino todo que tivemos no banheiro daquela
Bodega, olha, para mim não significou somente sexo, se é que você me entende.
Aquilo foi muito forte e eu sinceramente fiquei mais ligado a você, por tanto,
deixa eu cuidar de você, viveremos aqui nessa ilha, em Manaus ou em outro raios
de lugar, o que você decidir... Pronto, falei, ufa!”
Ficou um instante me olhando. Tocou no meu rosto. Sua
mão doce e suave. As estrelas estalando como fogueirinhas no céu. Uma canção
romântica dos Comodoros que só eu ouvia tocar dentro da minha cabeça
fantasiosa. Então a ouvi dizer:
“Olha, Mário, você é uma pessoa especial, acredite!
Mas não é quem eu busco para mim.” Tchummm. Foi como um banho de água fria.
“Ah, então existe outra pessoa, é isso...” Ela me
olhava com um sorriso naquele rosto redondo e perversamente lindo e comovente.
“Existe sim, Mário. E descobri que esta pessoa é a
pessoa da minha vida. Serei muito feliz e a farei feliz também.” Fiquei
imaginando quem poderia ser.
“E quem é esta pessoa, raios?”
“Frederico.”
“Porra, mas quem é Frederico no jogo do bicho?” Ela
riu.
“O anão albino!” Quase tive um treco. Ela só podia
estar de sacanagem.
“O, o, anão albino? Isso é palhaçada, não é?” Sorriu,
me confirmando. “Diz que isso é brincadeira!”
“Não, não é Mário. É a mais pura verdade.”
“Porra, mas o anão albino?”
“O nome dele é Frederico.
“Puta que pariu...”
“Por que puta que pariu?”
“E Marcos já sabe disso?”
“Não escondo nada de Marcos. Tivemos uma conversa
muito séria e definitiva esta tarde.”
“Deve estar sofrendo pacas...”
“Talvez, não sei. Mas pela primeira vez eu decido
minha vida.”
Passei a mão no rosto e fiquei olhando pro vazio do
céu. As fogueirinhas de estrelas se apagando aos pouquinhos. A lua inchada como
uma velha com varizes.
“Bom, sendo assim, né? Caraca... eu desejo-lhe sorte e
felicidades ao lado do anão albino.”
“Frederico, Mário. O nome dele é Frederico.”
Ficamos ainda ali em silencio. Sem dizer nada um para
o outro. Vimos umas índias assanhadas sediando Marcos que já estava bastante
bêbado. Uma delas pegou na sua mão e o convidou para dançar. Chegaram mais
duas. Cercaram-no e o arrastaram para dentro de um dos barracões. Elas não iam
conseguir nada dele. Marcos tinha um pau atrofiado. Um infeliz.
“Espero que Marcos seja muito feliz...” Disse Chelsea
olhando toda aquela cena.
“Vai ser duro pra ele ...”
“Talvez não. Veja como está se divertindo com aquelas
índias.”
Levantei e voltei para perto dos índios que dançavam e
bebiam. Tomei uma cuiada considerada. Depois outra. Eu iria me embriagar pra
valer naquela noite de festa na tribo. E foi o que aconteceu...
***
Não sei quanto tempo eu fiquei desacordado sobre o
chão daquela aldeia com o sol lambendo o meu cadáver. Pus-me sentado e
atordoado olhando em volta. Tudo estava deserto e morto. Busquei forças para
levantar, mas cai sentado outra vez. De repente, vi um indiozinho da aldeia
correr para mim com uma garrafa. Estava nu e seu bigulinho balançava solto.
Parou e me estendeu a garrafa. Lembro que vomitei à beça. Parecia que tudo ia
saindo de dentro de mim. Todas as desgraças e frustrações e guerras e derrotas
e as tripas do mundo todo iam saindo de dentro de mim em um único e grande
vômito heróico. Quando me senti bem, o indiozinho nu ainda estava lá parado,
com a garrafa apontada na minha direção e com uma carinha enfezada. Tomei a
garrafa das mãoszinhas dele e tomei uma senhora golada daquilo. Desceu bem. O
indiozinho sorriu e pegou a garrafa de volta e correu para junto dos outros
indiozinhos com seu bigulinho balançando. O sol voltava a arder. Minhas pernas
ainda tremiam um pouco quando finalmente fiquei de pé. Firmei a mochila vazia
nas costas e sai cambaleando por entre os muitos corpos caídos pelo chão. Era
como se eu atravessasse um campo de guerra repleto de mortos e feridos. Entrei
nos barracões a procura dos companheiros. Em um deles, encontrei Marcos
enroscado em duas índias. Parecia curtir um coma feliz. Sacudi seu corpo, mas
ele não acordou de jeito nenhum. As índias ainda se mexeram um pouco. Ronronaram.
Desisti e continuei procurando pelos outros. Nenhum sinal deles. Fui caminhando
com fúria na direção da barraca do grande tuxaua. Não hesitei em entrar nela.
Eu ainda estava de ressaca e nada tinha a perder. Ao atravessar a porta, dei
com o cacique (o mesmo que havia me contado sobre os podres do tuxaua) e o seu
filho saqueando algumas garrafas do altar. Agiram como se eu não estivesse ali,
e continuaram recolhendo as garrafas:
“Que cês tão fazendo?”
“Estamos deixando a aldeia e levando o que é nosso.”
“E onde está o tuxaua?” Ele apontou com desprezo o seu
beiço na direção de um corpo estendido no canto do barracão. Era do Tuxaua.
“E se ele acordar?”
“Acorda, não. Ainda vai ficar dormindo por muito
tempo.”
“E os outros?”
“Não há mais ninguém na aldeia. Os que sobreviveram
foram todos pra cidade celebrar o nascimento do grande sol de mandíbulas. Todo
ano é assim.” Olhei e o indiozinho agia rápido armazenando no saco de estopa as
garrafas que o pai atirava em sua direção.
“Mas vocês vão levar todas as garrafas do tuxaua?”
“Sim. Por que não pega umas dessas também?” Aquilo me
animou um pouco a alma. Eu nunca tinha experimentado um Jack Daniels importado.
Peguei umas três garrafas daquela. Olhei bem os seus rótulos. Deviam valer uma
nota.
“A propósito, você viu as garotas?”
“Não há mais ninguém na aldeia.”
“E vocês vão pra onde?”
“Vamos pra cidade. Vou vender todas estas garrafas
aqui.”
“Vou com vocês!”
Não disse nada. Fui ajudando o filho dele armazenar as
garrafas no saco. Parecia uma loucura aquilo. Mas eu só queria dar o fora dali.
Daquele vale de lágrimas...
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