segunda-feira, 17 de junho de 2013

A RUIVA - PARTE X



 OS PAPA XANAS

Depois que descemos das motos que nos levaram ás proximidades daquele bairro situado nos confins daquela Ilha, tivemos ainda que andar mais ou menos uns 30km de uma estrada bruta de barro amarelo, debaixo de um caralho de sol escaldante. Os moto-taxistas não quiseram nos dizer o motivo, apenas nos largaram no meio do nada, deram a volta em suas motocicletas e desapareceram na poeira. O choque, no entanto, estava mesmo para acontecer algumas horas dali, quando adentramos a reserva daqueles índios que sequer sabíamos a etnia. O lugar era um enorme descampado com vários barracões espalhados ao redor. Não eram malocas cobertas de palha como imaginávamos encontrar, mas imensos barracões fantasmagóricos, a maioria, feito de madeira coberta de lona que mais pareciam acampamentos dos Sem-Terra. Tudo em volta era triste e sombrio. Me senti deprimido. Chelsea sacou a filmadora e foi fazendo algumas tomadas do lugar. Marcos tirava fotos e tomava notas em seu caderninho. Alguns índios, deitados em suas redes, nos olhavam desconfiados com o canto dos olhos. A maioria, índios embriagados entornando garrafas de cachaça, outros tantos jogados pelo chão, nos arredores das barracas. Aos poucos, foram aparecendo um montão deles, capotados sobre um chão de barro amarelo e bruto. O lugar era desolador e aquela gente toda parecia remanescente de uma guerra tribal sem precedentes. Notei algum sinal de preocupação nos olhos de Virna, mas não perguntei nada. Acendi um cigarro pra relaxar. Aí então, vimos um daqueles índios caminhar em nossa direção vestindo uma camisa do Flamengo e empunhando uma garrafa de Velho Barreiro. Gesticulava á beça e falava no seu dialeto alguma coisa que não entendíamos:
“O que ele tá dizendo?” Quis saber Marcos.
“Tá pedindo pra vocês pararem de filmar.” Disse Virna.
“Guarda a máquina, Chelsea!” Ordenou Marcos. Mas Chelsea continuou filmando a aproximação do índio. Ele chegou bem perto. Parecia furioso. Outros índios se aproximaram cambaleando. Entre eles, mulheres e crianças. Todos aparentemente bêbados. Nos cercaram. Virna falou alguma coisa para o índio extressadinho e ele se acalmou um pouco. As mulheres começaram a cheirar as roupas de Chelsea. Tocavam nela. Os homens alisavam a roupa florida de Marcos que reluzia ao sol. Apontavam para o tênis que ele usava.
“Aproveita e pergunta qual é a etnia deles, e onde está o Tuxaua.” Ordenou Marcos para Virna. Parecia tudo tão simples para ele.
Virna dirigiu sua pergunta ao índio extressadinho que respondeu, provocando gargalhadas dos outros índios:
“Disse que se chamam os Papa-Xanas. Mas acho que estão de gozação, por isso todos riram.” Notei que um dos índios olhava com saliência para uma das partes íntimas e salientes de Chelsea sob sua saia jeans colada. Suas unhas vermelhíssimas luzindo ao sol.
“Pergunta se podemos filmá-los?” Disse Marcos. Virna traduziu a pergunta. Virna era mesmo uma anãzinha surpreendente. O índio voltou a gesticular sem parar na direção da câmera nas mãos de Chelsea.
“O que ele tanto quer?” Perguntou Chelsea.
“Ele quer tua câmera.”
“Não senhor!” Disse Chelsea, recuando uns passos.
“Então para de filmar!” Aconselhou Virna falando entre os dentes. Uma índia tocava agora nos seios redondos de Chelsea. Apertava-os. Uma outra cheirava seus cabelos.Foram fechando o cerco em torno de nós. Um índio puxava a camisa havaiana de Marcos. O outro queria seu tênis.
“O que eles querem afinal?”
“Gostaram da sua roupa. Eles querem para eles.” Disse Virna. Um índio mais afoito arrancou a Canon das mãos de Marcos. Os outros, a filmadora de Chelsea. Arrancaram também seus óculos escuros. Senti um deles vindo por trás de mim. Puxou minha carteira do bolso. Não havia nada nela. Levei um pescoção do cara. A carteira foi parar longe. Os outros riram daquilo. O índio extressado falava agora nossa língua e ainda gesticulava bastante. Aos poucos, foram fazendo a limpeza. Ninguém foi poupado.
“Puta que pariu, diz pra eles não fazerem isso. Viemos em paz.” Disse inocentemente Marcos, livrando-se agora do tênis.”
“Não reajam! Vou ver se falo com o tuxaua.” Disse Virna. Trocou algumas falas com o índio furioso. Ele apontou pra barraca nos fundos. Lá ficava o grande tuxaua. Fomos até lá com os índios atrás de nós. O índio nervosinho entrou primeiro. Depois ordenou que entrássemos. Virna sentou defronte ao Tuxaua que era um índio velho, forte e pelhancudo, e que ao contrário dos outros índios, parecia viver muito bem obrigado. Olhei ao redor e vi uma televisão plasma, uma geladeira e alguns outros eletrodomésticos ainda encaixotados com os dizeres, fragile. Nos fundos, atrás do Tuxaua, havia um altar repleto de garrafas de cachaça e whiskies importado. Era espantoso. Virna agora negociava diretamente com ele. Ficamos ali esperando Virna nos dá o feedback. Depois de um tempo, ela nos falou:
“Bom, o tuxaua disse que não pode fazer nada sobre o material apreendido, uma vez que tudo que chega à aldeia passa a pertencer a eles.”
“Mas não há um jeito de negociar, não?” Quis saber, Marcos.
“Talvez haja um jeito, sim.” Virna virou-se para o Tuxaua e lhe mostrou sua enorme serpente tatuada nas costas. O tuxaua ficou olhando pra aquilo. Tocou na cobra. Falou alguma coisa. Virna respondeu. Parecia haver um entendimento. Virna virou pra gente outra vez:
“O tuxaua gostou bastante da cobra. Ele quer que eu faça uma tatuagem dessas em suas costas. Em troca, ele nos deixa ir embora.”
“Mas e o material?”
“O material fica.”
“Brincadeira! Isso não está certo, não.” Disse Marcos já um pouco nervoso. Não via mais nele a figura de antropólogo. Chelsea tentava acalmá-lo. Parecia mais tranquila que ele. Cheguei a pensar que ela ria de toda aquela situação. Virna ainda tentou argumentar alguma coisa, mas o tuxaua balançava a cabeça negativamente.
“É pegar ou largar, gente.”
“Mas nem terminamos de pagar esse material. Como fica?” Disse Marcos.
“Não fica.“ Disse Virna.
“Gente, vamos resolver logo essa parada.” Eu disse. Concordaram. Virna então pediu para que liberassem a sua mochila, pois dentro dela havia as suas ferramentas de trabalho. Virna era mesmo precavida. O tuxaua ordenou que trouxessem as suas coisas. Resolvido o problema, ela começou então a esboçar o desenho nas costas do velho. Ficamos ali sentados olhando. Aquilo levaria horas. Marcos e Chelsea começaram a discutir baixinho. Aproveitei para contar as garrafinhas que havia no altar, mas eu sempre me perdia na contagem e aí então eu recomeçava tudo de novo. Havia pra mais de cem garrafas daquelas. Impressionante! Era como santinhos no altar. Aí então me cansei de contar todas aquelas garrafinhas, me levantei e pedi licença para sair. Licença autorizada pelo tuxaua, e eu então me pus a andar pensativo ao longo da aldeia. Olhava aquele lugar. Era mesmo um cenário desolador e deprimente. Todos aqueles corpos embriagados espalhados pelo chão. Um verdadeiro holocausto indígena. De repente, avistei uma confusão: dois Papa-Xanas iniciaram uma luta corporal por causa de uma garrafa de 51. Caíram atracados no chão e ficaram ali rolando no barro bruto e amarelo. Ninguém ligava pra eles. Parecia natural. Fiquei olhando. O vencedor ficou por cima e agora socava no chão duro a cara do seu oponente. Ficou ali batendo como se bate uma roupa no tanque até o outro desfalecer. Ele então pegou o seu prêmio e saiu cambaleado pra longe. Continuei andando tranquilo pela aldeia fingindo naturalidade. Sentei em um tronco de árvore perto de um indiozinho. Um menino. Ele detonava uma garrafa daquelas. O moleque não tinha mais que dez anos de idade. Orgulhoso, mostrou sua garrafa como a um troféu. Tomei-a de suas mãozinhas, dei-lhe uns cascudos brincando e entornei uma talagada daquele veneno. O pai se aproximou para ver. Sentou perto de nós e ficou revezando com a gente. O sol ardia sem piedade e o silencio ensurdecedor parecia a imagem de uma velha sem dentes. O índio pai falava a nossa língua e parecia muito descontente com o Tuxaua e a vida que levava na aldeia. Conversando um bom tempo com ele, arrisquei a perguntar como é que eles conseguiam todas aquelas bebidas. Ele então me revelou algo surpreendente. O cacique ou seja lá o quê ele representasse, me disse que havia um grande estoque de bebidas na maloca do tuxaua, e era ele, o tuxaua, quem sempre distribuía as bebidas para todos na aldeia quando celebravam as festas em homenagem ao grande Deus da garrafa.
“Tupã?” Perguntei.
“Não, Tupã, não, ao grande Deus que mora dentro de cada uma dessas garrafas.” Disse ele. Só me faltava essa. Tupã havia se transformado num líquido alcoolizante. Eu havia feito uma descoberta que nenhum historiador, cientista ou antropólogo havia feito: Deus havia sido convertido em um líquido alcoolizante e agora toda a tribo cultuava um novo Deus. Ele ainda me revelaria mais coisas surpreendentes quando perguntei quem fornecia Deus à tribo. Tomou uma golada de Deus, passou pro menorzinho, depois pra mim e prosseguiu. Explicou que Deus vinha na forma do grande pássaro de ferro que pousava atrás da reserva. Os índios desembarcavam Deus que chegava sempre à noitinha e ia direto pra barraca do Tuxaua. Disse ainda que, já algum tempo, havia grande interesse do homem branco em construir naquelas terras, uma rede hoteleira. Mas havia a reserva atrapalhando o caminho, foi então que encontraram a solução para o problema: conquistar a confiança do Tuxaua com o fornecimento de Deus junto com eletrodomésticos. Agora entendia porque o tuxaua levava uma vida de luxo no seu cafofo, provando de um Deus legítimo, enquanto os índios se matavam enchendo a cara com um Deus vagabundo. Eu tinha uma senhora bomba nas mãos. Poderia tornar aquilo público. Ferrar com o Tuxaua. Fiquei pensando. Então eu disse, levantando e batendo a poeira das calças:
“Mas esse Tuxaua é um grandississimo filho da puta, hein?”
            Depois caminhei trôpego até a barraca. Marcos e Chelsea discutiam feio na entrada do barracão. Parecia não mais se entenderem. Ninguém mais se entendia. De algum modo, as coisas pareciam dar para trás:
“Vamos dar o fora gente, o Tuxaua é um impostor!” Não ligaram para o que eu disse. Chelsea olhava contrariado para Marcos. Depois ela foi sentar bem longe dele, emburrada. Entrei na barraca. Virna espetava agora as agulhinhas nas costas do velho. Cochichei no ouvido dela:
“Vamos cair fora daqui! Esse Tuxaua não presta!”
“Xiiii...” Onomatopeou o Tuxaua. Depois fez um sinal sério com as mãos para eu sair.
“Espera lá fora, Mário! Estou quase terminando.”
Saí. O calor derretia os miolos. Nenhuma fresca, sombra, nada! Fui me sentar a uma certa distancia de Chelsea que estava sentada distante de Marcos. Calados e pensativos parecíamos os “pensadores” de Rodin derretendo sob um sol vingativo. As horas se passavam. Chelsea agora riscava com um graveto, qualquer coisa no chão de barro batido. Estava triste. Mesmo triste ela estava bonita. Suada e bonita. Suas unhas pintadas de vermelho brilhavam. É só o que me lembro. Aí então vimos a lua aparecer e Virna finalmente saiu de dentro da barraca seguida pelo Tuxaua que mostrava orgulhoso sua tatuagem de serpente. Os índios vieram ver. Cercaram-no. Começaram a dançar e cantar formando um pequeno círculo em nossa volta, cantando:
É carne de boi cheia ôôô!
É carne de boi cheia aaa!
Com os Papa-Xana, não se meta!
Cantavam. Vendo-os cantar e dançar daquele jeito, conclui que aqueles índios não batiam bem da cabeça, ou só podiam mesmo estar de sacanagem conosco. E foram distribuídos mais bebidas. O Tuxaua abriu mão de algum estoque de seu Deus legítimo. Os Papa-Xanas faziam filas na entrada da barraca do grande chefe. Festa na tribo. Uma festa que provavelmente duraria horas ou dias, quem sabe. Os Papa Xanas só queriam um pé. Era a nossa chance de escapar, pensei, mas o Tuxaua ordenou que ficássemos e celebrássemos com eles. Foi nos servido um whiski doze anos numa cuia. Ficamos ali bebendo com o grande chefe e com os outros índios eleitos. A noite havia chegado. Tomávamos goles monumentais daquele whiski. O Tuxaua ria e falava cuspindo na cara da gente. Aí vimos surgir no meio do terreiro um pajé todo coberto por garrafinhas de corote e ele começou a dançar uma dança estranha. Tremia-se todo. Tinhas espasmos fantásticos. Um delirium-tremens em grande estilo. Eu tomava goles monumentais daquela cuia e passava para os companheiros ao lado. Os índios se exibiam pra gente. As crianças brincavam com Virna, puxando seus cabelos ruivos e espetando com pedaços de pau o desenho da cobra nas suas costas. Ela respondia rindo e atirando pedras nelas. A noite ia alta e ebriamente harmoniosa. Não tínhamos idéia da hora. Vi Chelsea levantar-se e caminhar para longe. Depois ela sentou-se em um tronco e ficou ali pensando e olhando pra lua. Parecia mesmo preocupada. Tomei coragem e fui até ela:
“E aí?” Riu sem dizer nada.
“Infelizmente nem tudo sai como a gente quer, não é mesmo...?”
“Pouco importa agora, Mário.”
“Ah, é? Mas e o filme, os registros, pensei que fosse importante.”
            “As coisas apontam para um outro rumo, agora. E depois...” Ela parou, me olhou fundo com aqueles olhos castanhos e lindos, e disse:
“Vou lhe ser sincera, Mário. No fundo eu não tinha muito interesse nesse projeto do Marcos. Me lancei a mais esta aventura por insistência dele.O que fiz até hoje não foi por decisão minha, mas por imposição dele ou então para agradá-lo. Mas, sabe, tudo isso aqui me fez olhar o mundo com outros olhos. A Amazônia me tornou livre das amarras de Marcos. Me fez tomar uma decisão muito séria, é.”
“E que decisão é essa...? Me ajeitei todo contente pra ouvir.
“Estou me separando dele.” Aquilo foi como um tapa legal. Me cheguei mais perto dela. As estrelas pinicavam no céu. Me passou uma idéia na cabeça. Uma possibilidade de ficarmos juntos. Eu arriscaria. Tomaria jeito na minha vida. Sim, por aquela mulher eu tomaria vergonha na cara. Estava decidindo meus sentimentos.
“Então estão se separando?”
“Isso mesmo que ouviu. Não retornarei mais para São Paulo. Passarei a viver aqui, nessa Ilha. Farei meu próprio filme. Montarei minha produtora independente.” Meu coração bateu forte vendo-a falar daquele jeito, bastante incisiva. É isso ai, garota, é assim que se fala. Minha alma poerenta e amarela dava saltos de alegria por dentro. Tomei coragem e envolvi uma de suas mãos, dizendo:
“Preciso também lhe dizer uma coisa e é muito sério.” Me olhou curiosa. “É que... bom, desde que lhe vi pela primeira vez, lá no barco, lembra? Cara, eu me apaixonei por você. Senti o que não tinha sentido por mulher alguma. E aquele desatino todo que tivemos no banheiro daquela Bodega, olha, para mim não significou somente sexo, se é que você me entende. Aquilo foi muito forte e eu sinceramente fiquei mais ligado a você, por tanto, deixa eu cuidar de você, viveremos aqui nessa ilha, em Manaus ou em outro raios de lugar, o que você decidir... Pronto, falei, ufa!”
Ficou um instante me olhando. Tocou no meu rosto. Sua mão doce e suave. As estrelas estalando como fogueirinhas no céu. Uma canção romântica dos Comodoros que só eu ouvia tocar dentro da minha cabeça fantasiosa. Então a ouvi dizer:
“Olha, Mário, você é uma pessoa especial, acredite! Mas não é quem eu busco para mim.” Tchummm. Foi como um banho de água fria.
“Ah, então existe outra pessoa, é isso...” Ela me olhava com um sorriso naquele rosto redondo e perversamente lindo e comovente.
“Existe sim, Mário. E descobri que esta pessoa é a pessoa da minha vida. Serei muito feliz e a farei feliz também.” Fiquei imaginando quem poderia ser.
“E quem é esta pessoa, raios?”
“Frederico.”
“Porra, mas quem é Frederico no jogo do bicho?” Ela riu.
“O anão albino!” Quase tive um treco. Ela só podia estar de sacanagem.
“O, o, anão albino? Isso é palhaçada, não é?” Sorriu, me confirmando. “Diz que isso é brincadeira!”
“Não, não é Mário. É a mais pura verdade.”
“Porra, mas o anão albino?”
“O nome dele é Frederico.
“Puta que pariu...”
“Por que puta que pariu?”
“E Marcos já sabe disso?”
“Não escondo nada de Marcos. Tivemos uma conversa muito séria e definitiva esta tarde.”
“Deve estar sofrendo pacas...”
“Talvez, não sei. Mas pela primeira vez eu decido minha vida.”
Passei a mão no rosto e fiquei olhando pro vazio do céu. As fogueirinhas de estrelas se apagando aos pouquinhos. A lua inchada como uma velha com varizes.
“Bom, sendo assim, né? Caraca... eu desejo-lhe sorte e felicidades ao lado do anão albino.”
“Frederico, Mário. O nome dele é Frederico.”
Ficamos ainda ali em silencio. Sem dizer nada um para o outro. Vimos umas índias assanhadas sediando Marcos que já estava bastante bêbado. Uma delas pegou na sua mão e o convidou para dançar. Chegaram mais duas. Cercaram-no e o arrastaram para dentro de um dos barracões. Elas não iam conseguir nada dele. Marcos tinha um pau atrofiado. Um infeliz.
“Espero que Marcos seja muito feliz...” Disse Chelsea olhando toda aquela cena.
“Vai ser duro pra ele ...”
“Talvez não. Veja como está se divertindo com aquelas índias.”
Levantei e voltei para perto dos índios que dançavam e bebiam. Tomei uma cuiada considerada. Depois outra. Eu iria me embriagar pra valer naquela noite de festa na tribo. E foi o que aconteceu...
***
Não sei quanto tempo eu fiquei desacordado sobre o chão daquela aldeia com o sol lambendo o meu cadáver. Pus-me sentado e atordoado olhando em volta. Tudo estava deserto e morto. Busquei forças para levantar, mas cai sentado outra vez. De repente, vi um indiozinho da aldeia correr para mim com uma garrafa. Estava nu e seu bigulinho balançava solto. Parou e me estendeu a garrafa. Lembro que vomitei à beça. Parecia que tudo ia saindo de dentro de mim. Todas as desgraças e frustrações e guerras e derrotas e as tripas do mundo todo iam saindo de dentro de mim em um único e grande vômito heróico. Quando me senti bem, o indiozinho nu ainda estava lá parado, com a garrafa apontada na minha direção e com uma carinha enfezada. Tomei a garrafa das mãoszinhas dele e tomei uma senhora golada daquilo. Desceu bem. O indiozinho sorriu e pegou a garrafa de volta e correu para junto dos outros indiozinhos com seu bigulinho balançando. O sol voltava a arder. Minhas pernas ainda tremiam um pouco quando finalmente fiquei de pé. Firmei a mochila vazia nas costas e sai cambaleando por entre os muitos corpos caídos pelo chão. Era como se eu atravessasse um campo de guerra repleto de mortos e feridos. Entrei nos barracões a procura dos companheiros. Em um deles, encontrei Marcos enroscado em duas índias. Parecia curtir um coma feliz. Sacudi seu corpo, mas ele não acordou de jeito nenhum. As índias ainda se mexeram um pouco. Ronronaram. Desisti e continuei procurando pelos outros. Nenhum sinal deles. Fui caminhando com fúria na direção da barraca do grande tuxaua. Não hesitei em entrar nela. Eu ainda estava de ressaca e nada tinha a perder. Ao atravessar a porta, dei com o cacique (o mesmo que havia me contado sobre os podres do tuxaua) e o seu filho saqueando algumas garrafas do altar. Agiram como se eu não estivesse ali, e continuaram recolhendo as garrafas:
“Que cês tão fazendo?”
“Estamos deixando a aldeia e levando o que é nosso.”
“E onde está o tuxaua?” Ele apontou com desprezo o seu beiço na direção de um corpo estendido no canto do barracão. Era do Tuxaua.
“E se ele acordar?”
“Acorda, não. Ainda vai ficar dormindo por muito tempo.”
“E os outros?”
“Não há mais ninguém na aldeia. Os que sobreviveram foram todos pra cidade celebrar o nascimento do grande sol de mandíbulas. Todo ano é assim.” Olhei e o indiozinho agia rápido armazenando no saco de estopa as garrafas que o pai atirava em sua direção.
“Mas vocês vão levar todas as garrafas do tuxaua?”
“Sim. Por que não pega umas dessas também?” Aquilo me animou um pouco a alma. Eu nunca tinha experimentado um Jack Daniels importado. Peguei umas três garrafas daquela. Olhei bem os seus rótulos. Deviam valer uma nota.
“A propósito, você viu as garotas?”
“Não há mais ninguém na aldeia.”
“E vocês vão pra onde?”
“Vamos pra cidade. Vou vender todas estas garrafas aqui.”
“Vou com vocês!”
Não disse nada. Fui ajudando o filho dele armazenar as garrafas no saco. Parecia uma loucura aquilo. Mas eu só queria dar o fora dali. Daquele vale de lágrimas...

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