VALENTINA
Morava em uma taperazinha simples á beira do rio, num
lago chamado Remanso do Boto - há poucos minutos da Ilha, atravessando de
canoa. Lembro-me bem do silencio daquele lago. Do cheiro do rio. Do voo livre
dos pássaros e das estripulias dos botos logo ao amanhecer. Aceitei ficar um
tempo ali enquanto recuperava as forças para puder andar e pensar direito.
Enquanto isso bolava uma maneira de regressar para Manaus. Nesse meio termo,
que prolongou-se por longos meses, Valentina não se descuidou um só instante de
mim. Me alimentou, me deu amor, carinho e também me ensinou o jogo dos sinais
que devagar fui assimilando durante as tardes frescas à sombra de um jambeiro
que protegia a taperazinha do sol forte e tirânico daqueles dias quentes e
escaldantes de verão parintinense. Quando começamos a nos entender, ela me
disse com as mãos:
“Eu-vou-cui-dar-de-vo-cê.Vou-cu-rar-sua-dor.”
“Mas-não-sin-to-dor-al-gu-ma,Va-len-ti-na.
Sou-um-ca-ra-in-sen-sí-vel. Um-ho-mem-a-ni-qui-la-do-pe-la-au-sên-cia-da-dor.”
Ela sorriu, apontando com o dedo na direção do meu
peito onde fica o coração. Respondi, “An-an, meu-bem. A-dor-es-tá-a-qui.”
Direcionei o seu dedo na direção da cabeça. Acho que entendeu porque me olhou
contrariada. Não dissemos mais nada. Ficamos o resto da tarde ouvindo o ruído
rouco das terras caindo devagar das ribanceiras, tingindo de amarelo, o rio lá
embaixo. Era como se o tempo tivesse parado restando apenas nós dois respirando
naquela pequena porção de ilha paradisíaca. Pensei em aproveitar a paz daquele
lugar para escrever um pouco. Prostrava-me nos finais da tarde olhando o rio,
esperando talvez por alguma inspiração. Mas, necas. Apenas o silencio
afogando-se na paz do meu nada interior. E os dias foram se arrastando bem
devagar. Fui sacando Valentina. Ela me queria ali como seu homem para o resto
da vida. Ela me provocava, me atiçava. Valentina tinha uma perna curtinha e uma
rótula pequenininha que parecia solta. Ficava ali brincando entediadamente com
sua rótula, até ela bocejar e me dizer: “Vou-dei-tar, tá-pai?!” Dizia ela.
Tinha um sono de pedra e não roncava. Um
dia, não resistindo as suas investidas, acabamos trepando debaixo do imenso
jambeiro. Eu tinha que gratificá-la de alguma maneira. Foi a minha primeira
experiência sexual com uma anã. Sugeri um sessenta e nove. Assim, evitaria
encarar de frente o seu rosto com aquele alfinetão atravessado no nariz e
também aquela imensa argolona esgarçando-lhe a orelha. Meu pau não responderia
olhando aquilo. Topou. Enquanto ela chupava o meu pênis, eu introduzia minha
língua em sua fenda enorme. Quem disse que anã tem fenda pequena? Não sei
quanto às outras, mas Valentina tinha uma fenda enorme e acolchoadinha de
meter. Capaz de viciar qualquer pau. Um dia, botei aquela pequena massa de
mulher de quatro e acabei metendo naquela fenda. E depois em seu cu. Ficamos
ali o resto da tarde brincando. Brincávamos todas as tardes. Uma brincadeira
que me custaria caro.
Valentina me ensinou a pescar. Pegávamos a canoa e
íamos pescar em um furo, próximo dali. Havia peixe á beça. O excedente,
vendíamos no porto, no mercado Municipal. Valentina tinha uma pequena barraca
de peixes e frutas. Eu a ajudava a vender o pescado. Era como tirávamos o nosso
sustento. Fui economizando umas migalhas, porque uma hora daquelas, eu
precisaria dar no pé. Não vou dizer que não foram dias de muita paz e sossego
ao lado daquela minha pequena amante dedicada, mas eu precisava partir. Eu
teria que fazer isso de algum modo, sem magoá-la. Horas, dias, semanas, meses,
foram se passando... Já estava ficando bem negra minha pele do sol das manhãs e
tardes ociosas em que passava pescando ou sem fazer absolutamente nada. E
também estava ficando gordo. Acima do peso. Um dia fisgando um peixe, pensei na
palavra liberdade. Resolvi rascunhar algo: “Vivo
uma certa liberdade mas sei que ela não existe. Liberdade não rima com
eternidade. E a dor? Rima com quê? Com amor? Aprendi a pescar, mas me recuso a
amar. O meio faz do homem um elemento insensível. Incapaz de sentir dor.
Valentina me ensinaria os caminhos do amor? Olho o horizonte agora. Mergulhões
plainam neste céu de mistério e paz. Caem como suicidas mergulhando no rio para
abocanhar o seu alimento. Minha pele escura do sol. Minha alma oscilante divaga
com um leve banzeiro. Sinto o suspiro de uma natureza morta que me cerca. O que
eu estou fazendo neste fim de mundo, afinal? Não posso amolecer. ” Ia
melhorar aquilo. Achei meloso demais. Minha cabeça é mesmo um quarto bagunçado.
Guardei no bolso o que tinha escrito e continuei a pescar. Vi Valentina me
olhando de longe. Acenava para mim. Ela estava feliz. Radiante. Ela me resgatou
do inferno. Fechou minhas feridas. Me devolveu a dignidade e a macheza. E agora
eu queria ir embora. Mas o pior viria depois:
“Es-tou-es-pe-ran-do-um-fi-lho-seu, Má-rio-Au-gus-to!” Aquilo foi como um alicate torcendo
meus ovos. Passei minhas mãos nos cabelos tentando esconder meu desespero.
“Vo-cê-tá-de-sa-ca-na-gem, Va-len-ti-na!” Mas ela
esfregou levemente suas mãozinhas sobre a barriga e sorriu docemente. Eu estava
literalmente fodido. Fui para fora da taperazinha fumar. Uma lua sem graça
equilibrava-se no céu. O rio cintilante brilhava como escamas de um tucunaré
zombando de minha malha de tragédias. E agora mais essa! O que faço? Não tinha
como dizer não para Valentina. Seu ventrezinho crescia. Era nauseante. Eu tinha
que arquitetar um plano urgente. Imagine eu sendo pai. Como seria aquele
rebento? Se nascesse um anão? Não, eu tinha que dar o fora dali o mais
rapidamente. Trabalhei duro ajudando Valentina na sua barraca de peixes para
economizar uns trocados, fingindo estar tudo bem, e quando apurei a quantia
certa – o suficiente para poder comprar o bilhete de barco, me dirigi apressado
até o porto. Para o meu azar, os barcos ali atracados só partiriam no sábado, e
era uma terça-feira, de modo que eu teria que esperar mais alguns dias. Eu não
agüentaria. Foi então que um mariscador que bebia por ali, e que ouviu minha
conversa com o embarcadiço, me chamou no canto e disse:
“Mas olhe bem, patrão, o Santa Helena que vem de
Santarém vai passar amanhã, as cinco em ponto da madrugada. É um barco ajato.
Ele faz uma paradinha de dez minutos e depois parte. Não tem escala não, e ele
só para se tiver alguém no porto acenando. O senhor tem que ser esperto e estar
aqui as cinco em ponto da manhã.” A idéia do cara me reanimou. Era naquele
mesmo. Não tinha outro jeito. Paguei mais uma pinga àquele mariscador pela
informação que me dera e acabei descobrindo que ele possuía uma rabetinha, e,
portanto, contratei os serviços daquele chapa. Ele me apanharia as quatro em
ponto no beiradão do Remanso. Naquele resto de dia, Valentina fazia planos para
nós três. Valentina... Ouvia seus planos para o futuro sem dizer nada, só
concordando. Sorte minha, que Valentina tinha um sono de pedra (pelo menos era
o que eu achava) Esperei que ela dormisse, e as três em ponto, peguei minhas
tralhas (pouca coisa: umas poucas roupas, uma rede e só) e caminhei até á
margem do Remanso para esperar o mariscador vir me buscar. Fazia uma noite
fria, sem estrelas. Nada me azucrinava os sentimentos. Nem mesmo os grilos
cantando infernalmente. Eu tinha uma vida ordinária em Manaus. Mas eu precisava
voltar para ela. Para meu cachorro Príapo que havia deixado aos cuidados do
vizinho. Este meu estado poliédrico da alma. Vi a rabetinha se aproximar.
Quando atracou, cuidei apressadamente de botar minhas coisas dentro e partimos.
No caminho, com o vento frio soprando meu rosto, pensei: “Toda criatura foge. Eu fugia para aonde? De quem afinal eu fugia? De
que destino afinal fugimos todos nós? A verdade é que a gente sempre dá um
jeito de escapar. Ao desembarcar no porto, me coloquei de prontidão, a
espera do barco. A noite ainda era escura e fria. Mas já havia certo vozerio no
cais. Comprei uma cerveja e esperei com o olhar duro e atento para o horizonte
certo, de onde provavelmente assomaria o Santa Helena. Fiquei enrolando ali com aquela única
cerveja. A Ilha Tupinambarana atrás de mim, calada, em silencio. Nem parecia o
mesmo inferno de quando cheguei ali a uns meses atrás. E tudo aquilo que
passei, meu Deus, quem acreditaria?Aí então vi amanhecer devagar o dia e o
Santa Helena que era um barco veloz,
enorme e salvador, já vinha vindo soprando bem longe sua trombeta de
Jericó. Corri para o píer, e lá ao chegar, já havia umas poucas almas penadas
de vigília, prontas também para embarcar. Acenávamos desesperados para ele
parar. Ele foi mudando levemente sua proa e veio vindo valente em nossa
direção. Atracou. Entramos. Paguei minha passagem. Tudo certo. Armei minha rede
na parte de cima. Não levou nem dez minutos, e o barco já se preparava para
desatracar de Parintins, soprando novamente sua trombeta de Jericó. Fui olhar
da amurada o barco partir. Olhar a Ilha pela última vez. Tal qual foi minha
surpresa e espanto ao ver correndo para pegar aquele barco, a figura de
Valentina. Puta que pariu, não pode ser!
Ela não pode embarcar! Ela não vai embarcar! Ela já tinha me visto, porém.
Parou na extremidade do Pier. Pensei que ia se jogar no rio e nadar até o
barco. Mas, não. Ficou ali estatalada. Vi seus olhinhos profundamente tristes.
Suas mãoszinhas deslizando sobre o ventrizinho saliente que carregava um filho
meu. Eu parecia ler seus dedos labiais de longe dizendo: “Mário, meu amor, não me deixe aqui sozinha nessa situação, por favor!”
Ou era o espírito porco da minha consciência suja e imprestável que me dizia
aquilo? As trombetas de Jericó suaram mais uma vez. Já nos distanciávamos pra
valer. Eu via a Ilha ficando lá atrás para sempre com um pequeno ponto perdido
que era Valentina que não cansava de acenar. Continuei inflexível. Sem um gesto
de compaixão. Engoli uma saliva seca e foi só. Eu precisava partir, gente...
Nenhum comentário:
Postar um comentário