A VIDA É UM ISQUEIRO ACESSO
Não me sentia culpado. A culpa é um sentimento tão
pessoal e líquido que logo se desfaz. Uma forma primitiva de se
auto-condenar. Um troço quadrilátero.
Medieval. Um balão furado! Eu tinha podido comprar umas cervejas e prossegui
pensando. O sistema humano quer sempre investigar a procedência da culpa. Sua
raiz. Por que sentimos culpa? Acho que no fundo, a culpa é para quem possui
alguma espécie de caráter ou vaidade. Como não possuo as duas coisas, então não
posso ser penalizado, a não ser por mim mesmo. Sigo minha rota naval. Minha estranha engenharia humana. Dispenso
minha culpa e fico aqui com as minhas falhas e rachaduras do caráter. Eu
analisava bestialmente essas questões tolas e infundadas, na amurada daquele
barco, quando um sujeito me abordou:
“Poucos dão importância a um isqueiro porque não
reconhecem o valor de sua chama. Hein? ” Me disse aquele sujeito com sotaque castelhano.
O chapa usava um chapéu de côco na cabeça que lhe cobriam os cabelos
ligeiramente grisalhos. Tinha um olhar e jeito expressivo de quem possuía certo
conhecimento de alguma coisa. Apresentou-se. O nome era Pablo. Um
jovem-homem-velho. Apertamos nossas mãos frias do vento daquele começo de
noite.
“Desculpa, mas é que não entendi direito.” Ele riu e
disse:
“Sou colecionador de Isqueiros. Hein?” Aí então ele
sacou um isqueiro de formato estranho do seu bolso e o acendeu. “Este aqui
folheado a prata com a base côncava, é um Dumont Suiço, 1946. Olhe a sua chama.
Mesmo com o vento forte, jamais se apaga. Hein?” Fiquei olhando para o isqueiro
e para o chapa. Mais essa, agora. Pensei. Ele ria enquanto mantinha
a chama acessa daquele isqueiro.
“É... bem interessante, Pablo.”
“Interessante? Sua chama nem oscila.” Pensei em
dizer-lhe: “Mas o que eu tenho haver com isto?” Foi quando ele apagou o
isqueiro e perguntou:
“Está indo para onde?”
“Manaus. E você?”
“Eu apenas vou. Quer dar uma olhadinha na minha
coleção de isqueiros?”
“Cara...”
“Vamos ali, eu te mostro. Estão no meu camarote.”
O chapa viajava num camarote maneiro, maior conforto.
Ele abriu uma maletinha e me mostrou seus isqueiros. Um montão deles. Falava
como uma criança emocionada mostrando seus brinquedinhos.
“Veja este aqui, é um autêntico zippo, 1962. Che
Guevara fumou nele. Não é lindo? Hein? A chama também é dura. Resistente. Toque
nele... hein? Acho que é esta estrutura metálica que reveste a chama. Já este
Jim Beam aqui, é de New Orleans, 1932. No caso deste, a chama oscila, mas
demora a apagar. Os negros trompetistas adoravam estes isqueiros. Dizem que
Dizzy Gillespie usava um destes. Curte Jazz? Hein? Vou te mostrar este aqui.
Olhe que beleza, é um Sumitono, isqueiro japonês da segunda guerra mundial. O
preferido dos Kamikazes antes deles se arrebentarem com seus aviõeszinhos no
chão. Hein? Ele é todo em prata maçisa. Olhe que beleza. Pode tocar. Não há
mais chama nele. Dizem que era azul. Uma chama azul.”
“É bem legal mesmo, Pablo. Mas estou com fome agora.”
Disse a ele.
“Ah, sim, vamos jantar, vamos jantar.”
O Santa Helena seguia veloz e valente enquanto eu
fazia meu prato. Eles serviam uma suculenta comida. Me servi de grandes pedaços
de frango cozido, arroz, toucinhos, feijão. Pablo não ficou atrás. Tinha um
apetite bastante feroz. Sorria sentado ao meu lado. Aí ele me mostrou um outro
isqueiro. Falava como se conspirasse o tempo todo:
“Já viu um destes?”
“Não, nunca vi.”
“Cara, é um genuíno Ronson inglês, 1970. Uma peça
rara, hein? Hein? Ele é todo prateado com suas bordas laterais de ouro. Hein? E
ele acende, veja sua chama!” Acendeu. “Comprei em Buenos Aires em 84, junto com
um porta-isqueiro de opalina leitosa, tampa basculhante com pegador em pinha de
bronze. Me desfiz do porta-isqueiro porque precisava de grana, mas do isqueiro
não me desfaço nunca. Os isqueiros nos contam uma história.”
“E o que você faz da vida além de colecionar
isqueiros, Pablo?” Perguntei aquilo enquanto mordia aquele pedaço de frango
bom.
“Nada. Só coleciono isqueiros e viajo pelo mundo.
Hein?”
“Tá...” Ele se chegou mais próximo de mim e sussurrou:
“Olha, preste bem atenção neste aqui!”
“O que tem ele?”
“Bom, ele tem essas abas laterais estilo napoleônico,
de madeira, tampo prateado... o preferido de Cristian Andersen. Dizem que ele
fumou muito neste isqueiro enquanto escrevia o Soldadinho de Chumbo. Andersen
fumava sem parar. Fumava como ninguém... Uma chaminé humana. Hein?”
“O cara das fábulas?”
“Hein?”
“Cara...”
“E você, o que você coleciona na vida?”
Pensei enquanto mordia aquele último pedaço de frango.
“Eu... bom, Pablo, eu não coleciono nada, cara.”
“Hein?”
“Eu tentei colecionar vidros de perfume franceses, mas
não deu muito certo, não.”
“Nem rótulos de vinho? Conheci um cara em Córdoba que
colecionava rótulos de vinhos. Ele andava sem sentido na vida, querendo se
matar, então eu disse a ele que ele precisava se dedicar a colecionar alguma
coisa. Hoje ele coleciona rótulos de vinhos... Hein?”
“Acho que coleciono desgraças, Pablo.”
Ele sorriu assustado, meio incrédulo, voltando a
mastigar. Mastigava conservando a boca fechada. Os cantos dos seus lábios
subiam e desciam maquinalmente como uma engrenagem estranha. Ficou sério
enquanto mastigava. O sujeito era um tipo.
Saímos dali e fomos para seu camarote. Ele excitado me
mostrou mais isqueiros de sua coleção. O sentido da vida para aquele homem era
mesmo colecionar isqueiros. A patologia humana é bem interessante. Digna de
investigação. Mas eu estava sem saco. Pedi licença e sai um instante e fui para
a sacada do barco. De alguma maneira eu queria estar só. Olhando as luzes dos
vilarejos acesos de Macondo. Vagalumes! Milhares deles acessos. E o quanto mais
pudessem existir no mundo. Olhava para aqueles pontos luminosos. Tudo é um ponto
indecifrável piscando dentro da gente. Eu fazia o meu caminho de volta.
Solitário. Sem planos. O frio me estalando os ossos. Nem um cheiro de xota por
perto para me roubar a paz. Nada. Eu, eu mesmo, aquele rio escuro... e o cara
dos isqueiros me ensinando o valor de uma chama acessa. Começou a relampear. Vi
se aproximar uma tempestade:
“Hein? Acho que não lhe mostrei este ainda.” Disse o
chapa se aproximando outra vez. “É um antigo e popular isqueiro francês em
forma de uma moeda de cinco francos. Pertenceu á Napoleão.”
“O Bonaparte?”
“Este mesmo. Hein? Hein?
“Você está dizendo, Pablo...”
Ele ainda acende, e sua chama é forte e azul. Não é
incrível?”
“Bom...”
“Ele tem um formato redondo e seu
revestimento é todo de chumbo. Repare só a gravura estampada nele... é de um
brasão de guerra que salta os olhos. O seu pavio é de algodão embebido de
querosene ou tirebintina que possui uma essência inflamável feita toda de casca
de laranja... não é incrível? Hein?” Ai Pablo ficou estranhamente triste
enquanto me dizia: “O homenzinho fumou neste aqui na véspera de sua derrota em
Waterloo. Foi sua última batalha, e havia aquela tempestade que desabou de
repente... Ele poderia ter recuado sabiamente, mas preferiu esperar o momento
certo e avançar... Ora, o homenzinho não era de perder nenhuma batalha. Mas ele
estava nervoso. Fumava um cigarro atrás do outro. Acendeu-os neste isqueiro
aqui! Olhe bem pra ele, hein? Seus setenta e dois mil homens já haviam sofrido
baixa contra o exército inglês, e ele andava preocupado. Fumando um cigarro
atrás do outro. Mas o homenzinho era teimoso. Esperou que a tempestade passa-se
e que a terra enfim secasse, já que a chuva havia transformado o campo de
batalha num lamaçal, e aí então ele ordenou o avanço de sua tropa. Mas antes, ele
escreveu em seu diário a seguinte frase: “O
erro, é um destino que se cumpre com heroísmo.” Foi o que ele escreveu ali
sentado, sozinho. Ele parecia advinhar. Advinhamos quando o fim está próximo.
Sabe-se lá o que se passava na cabeça do homenzinho. Mas de uma coisa fique
certo, o sujeito não era um cara que se entregava à-toa. Mesmo acuado, era
capaz de ver o sol brilhar atrás da névoa. Ele sabia, portanto, que não havia
reinado no céu. Somente na terra é que imperamos; que escrevemos nossa
história. E ele então investiu contra o inimigo com sua famosa Guarda Imperial
- a elite de seus veteranos. Mesmo em inferioridade numérica, o homenzinho teria
de atacar. E o resto todos nós sabemos. Está lá nas páginas de Guerra e Paz...
Numa guerra, meu chapa, é preciso sempre manter a chama de um isqueiro acessa.
Fique com este! É seu. Hein?” Disse Pablo. “Vou pegar umas cervejas, pra gente.”
E o chapa então se foi e não voltou mais. Fui sentindo gradualmente sua
ausência. Não vou dizer que não cismei em procurá-lo. Pois fui. Fui até lá
embaixo. Subi outra vez. Bati no seu camarote. Não havia nada do outro lado.
Sequer um ruído. Eu nunca mais o veria. Vida louca. Eu devia ter dado mais
atenção aquele chapa. Agradecer pelo isqueiro, sei lá. Um vento soprou com mais
força e eu senti uns respingos gelados na nuca. Começou a cair um pau d´água,
acompanhado de fortes relâmpagos. As lonas foram baixadas. Fez-se um silencio
estranho no barco. Se ele afundasse de repente, ninguém ia sentir dor. Será? Caminhei
desesperado até o bar. Sem álcool e sem buceta ninguém vive.
“Tô fechando, amigo!” Falou uma bicha velha
que tomava conta do bar.
“Pelo amor de Deus, chefe, me vende só
uma garrafa daquelas ali no canto pra suportar o frio.” Apontei para uma
garrafa de vodika vagabunda.
“Oito!” Eu só tinha cinco. O barco
balançava. Um frio desgraçado. Tentei negociar com a bicha velha:
“Esse barco vai afundar, cara, e eu
preciso de um trago disso aí.” Ele me esconjurou. Deixou por cinco. Era tudo
que me restava, aqueles cinco reais. Quando chegasse à Manaus, eu daria um
jeito. Se chegasse. Sério. O barco balançava com o forte temporal. Um raio
iluminou o rosto duro e escroto da bicha velha. Seus olhos estavam pulados,
bastante assustados. Eu vi o medo dentro daqueles seus olhos saltados. Ele
tratou de fechar o bar. Peguei a garrafa, e há muito custo, me dirigi mais uma
vez para o camarote do sujeitinho. Bati outra vez, mas necas. Nenhum sinal do
gringo. “Onde ele se meteu, esse filho da puta!” Eu balançava pra lá e pra cá
com a garrafa no corredor. Desci ligeiramente as escadas e fui pra minha rede.
Deitado, tomei uma grande golada daquilo. Senti relaxar por dentro. Já se ouvia
o desespero das pessoas; suas almas agitadas apanhando seus salva-vidas. Choros
de crianças, mulheres, marmanjos. Fui capaz de rir. Ri bastante alto em meio à
claridade sinistra dos relâmpagos e o desespero dos tripulantes. Tolice. Quando
a morte chegasse, ninguém escaparia. Ninguém é digno de escapar. Acendi o
isqueiro que Pablo me dera. Fiquei olhando sua chama. A morte nos torna iguais.
Pequenos anões. Fechei meus olhos...
Manaus, 21 de junho de 2013