domingo, 23 de junho de 2013

A RUIVA - FINAL



A VIDA É UM ISQUEIRO ACESSO

Não me sentia culpado. A culpa é um sentimento tão pessoal e líquido que logo se desfaz. Uma forma primitiva de se auto-condenar.  Um troço quadrilátero. Medieval. Um balão furado! Eu tinha podido comprar umas cervejas e prossegui pensando. O sistema humano quer sempre investigar a procedência da culpa. Sua raiz. Por que sentimos culpa? Acho que no fundo, a culpa é para quem possui alguma espécie de caráter ou vaidade. Como não possuo as duas coisas, então não posso ser penalizado, a não ser por mim mesmo. Sigo minha rota naval.  Minha estranha engenharia humana. Dispenso minha culpa e fico aqui com as minhas falhas e rachaduras do caráter. Eu analisava bestialmente essas questões tolas e infundadas, na amurada daquele barco, quando um sujeito me abordou:
“Poucos dão importância a um isqueiro porque não reconhecem o valor de sua chama. Hein? ” Me disse aquele sujeito com sotaque castelhano. O chapa usava um chapéu de côco na cabeça que lhe cobriam os cabelos ligeiramente grisalhos. Tinha um olhar e jeito expressivo de quem possuía certo conhecimento de alguma coisa. Apresentou-se. O nome era Pablo. Um jovem-homem-velho. Apertamos nossas mãos frias do vento daquele começo de noite.
“Desculpa, mas é que não entendi direito.” Ele riu e disse:
“Sou colecionador de Isqueiros. Hein?” Aí então ele sacou um isqueiro de formato estranho do seu bolso e o acendeu. “Este aqui folheado a prata com a base côncava, é um Dumont Suiço, 1946. Olhe a sua chama. Mesmo com o vento forte, jamais se apaga. Hein?” Fiquei olhando para o isqueiro e para o chapa. Mais essa, agora. Pensei. Ele ria enquanto mantinha a chama acessa daquele isqueiro.
“É... bem interessante, Pablo.”
“Interessante? Sua chama nem oscila.” Pensei em dizer-lhe: “Mas o que eu tenho haver com isto?” Foi quando ele apagou o isqueiro e perguntou:
“Está indo para onde?”
“Manaus. E você?”
“Eu apenas vou. Quer dar uma olhadinha na minha coleção de isqueiros?”
“Cara...”
“Vamos ali, eu te mostro. Estão no meu camarote.”
O chapa viajava num camarote maneiro, maior conforto. Ele abriu uma maletinha e me mostrou seus isqueiros. Um montão deles. Falava como uma criança emocionada mostrando seus brinquedinhos.
“Veja este aqui, é um autêntico zippo, 1962. Che Guevara fumou nele. Não é lindo? Hein? A chama também é dura. Resistente. Toque nele... hein? Acho que é esta estrutura metálica que reveste a chama. Já este Jim Beam aqui, é de New Orleans, 1932. No caso deste, a chama oscila, mas demora a apagar. Os negros trompetistas adoravam estes isqueiros. Dizem que Dizzy Gillespie usava um destes. Curte Jazz? Hein? Vou te mostrar este aqui. Olhe que beleza, é um Sumitono, isqueiro japonês da segunda guerra mundial. O preferido dos Kamikazes antes deles se arrebentarem com seus aviõeszinhos no chão. Hein? Ele é todo em prata maçisa. Olhe que beleza. Pode tocar. Não há mais chama nele. Dizem que era azul. Uma chama azul.”
“É bem legal mesmo, Pablo. Mas estou com fome agora.” Disse a ele.
“Ah, sim, vamos jantar, vamos jantar.”
O Santa Helena seguia veloz e valente enquanto eu fazia meu prato. Eles serviam uma suculenta comida. Me servi de grandes pedaços de frango cozido, arroz, toucinhos, feijão. Pablo não ficou atrás. Tinha um apetite bastante feroz. Sorria sentado ao meu lado. Aí ele me mostrou um outro isqueiro. Falava como se conspirasse o tempo todo:
“Já viu um destes?”
“Não, nunca vi.”
“Cara, é um genuíno Ronson inglês, 1970. Uma peça rara, hein? Hein? Ele é todo prateado com suas bordas laterais de ouro. Hein? E ele acende, veja sua chama!” Acendeu. “Comprei em Buenos Aires em 84, junto com um porta-isqueiro de opalina leitosa, tampa basculhante com pegador em pinha de bronze. Me desfiz do porta-isqueiro porque precisava de grana, mas do isqueiro não me desfaço nunca. Os isqueiros nos contam uma história.”
“E o que você faz da vida além de colecionar isqueiros, Pablo?” Perguntei aquilo enquanto mordia aquele pedaço de frango bom.
“Nada. Só coleciono isqueiros e viajo pelo mundo. Hein?”
“Tá...” Ele se chegou mais próximo de mim e sussurrou:
“Olha, preste bem atenção neste aqui!”
“O que tem ele?”
“Bom, ele tem essas abas laterais estilo napoleônico, de madeira, tampo prateado... o preferido de Cristian Andersen. Dizem que ele fumou muito neste isqueiro enquanto escrevia o Soldadinho de Chumbo. Andersen fumava sem parar. Fumava como ninguém... Uma chaminé humana. Hein?”
“O cara das fábulas?”
“Hein?”
“Cara...”
“E você, o que você coleciona na vida?”
Pensei enquanto mordia aquele último pedaço de frango.
“Eu... bom, Pablo, eu não coleciono nada, cara.”
“Hein?”
“Eu tentei colecionar vidros de perfume franceses, mas não deu muito certo, não.”
“Nem rótulos de vinho? Conheci um cara em Córdoba que colecionava rótulos de vinhos. Ele andava sem sentido na vida, querendo se matar, então eu disse a ele que ele precisava se dedicar a colecionar alguma coisa. Hoje ele coleciona rótulos de vinhos... Hein?”
“Acho que coleciono desgraças, Pablo.”
Ele sorriu assustado, meio incrédulo, voltando a mastigar. Mastigava conservando a boca fechada. Os cantos dos seus lábios subiam e desciam maquinalmente como uma engrenagem estranha. Ficou sério enquanto mastigava. O sujeito era um tipo.
Saímos dali e fomos para seu camarote. Ele excitado me mostrou mais isqueiros de sua coleção. O sentido da vida para aquele homem era mesmo colecionar isqueiros. A patologia humana é bem interessante. Digna de investigação. Mas eu estava sem saco. Pedi licença e sai um instante e fui para a sacada do barco. De alguma maneira eu queria estar só. Olhando as luzes dos vilarejos acesos de Macondo. Vagalumes! Milhares deles acessos. E o quanto mais pudessem existir no mundo. Olhava para aqueles pontos luminosos. Tudo é um ponto indecifrável piscando dentro da gente. Eu fazia o meu caminho de volta. Solitário. Sem planos. O frio me estalando os ossos. Nem um cheiro de xota por perto para me roubar a paz. Nada. Eu, eu mesmo, aquele rio escuro... e o cara dos isqueiros me ensinando o valor de uma chama acessa. Começou a relampear. Vi se aproximar uma tempestade:
“Hein? Acho que não lhe mostrei este ainda.” Disse o chapa se aproximando outra vez. “É um antigo e popular isqueiro francês em forma de uma moeda de cinco francos. Pertenceu á Napoleão.”
“O Bonaparte?”
“Este mesmo. Hein? Hein?
“Você está dizendo, Pablo...”
Ele ainda acende, e sua chama é forte e azul. Não é incrível?”
“Bom...”
“Ele tem um formato redondo e seu revestimento é todo de chumbo. Repare só a gravura estampada nele... é de um brasão de guerra que salta os olhos. O seu pavio é de algodão embebido de querosene ou tirebintina que possui uma essência inflamável feita toda de casca de laranja... não é incrível? Hein?” Ai Pablo ficou estranhamente triste enquanto me dizia: “O homenzinho fumou neste aqui na véspera de sua derrota em Waterloo. Foi sua última batalha, e havia aquela tempestade que desabou de repente... Ele poderia ter recuado sabiamente, mas preferiu esperar o momento certo e avançar... Ora, o homenzinho não era de perder nenhuma batalha. Mas ele estava nervoso. Fumava um cigarro atrás do outro. Acendeu-os neste isqueiro aqui! Olhe bem pra ele, hein? Seus setenta e dois mil homens já haviam sofrido baixa contra o exército inglês, e ele andava preocupado. Fumando um cigarro atrás do outro. Mas o homenzinho era teimoso. Esperou que a tempestade passa-se e que a terra enfim secasse, já que a chuva havia transformado o campo de batalha num lamaçal, e aí então ele ordenou o avanço de sua tropa. Mas antes, ele escreveu em seu diário a seguinte frase: “O erro, é um destino que se cumpre com heroísmo.” Foi o que ele escreveu ali sentado, sozinho. Ele parecia advinhar. Advinhamos quando o fim está próximo. Sabe-se lá o que se passava na cabeça do homenzinho. Mas de uma coisa fique certo, o sujeito não era um cara que se entregava à-toa. Mesmo acuado, era capaz de ver o sol brilhar atrás da névoa. Ele sabia, portanto, que não havia reinado no céu. Somente na terra é que imperamos; que escrevemos nossa história. E ele então investiu contra o inimigo com sua famosa Guarda Imperial - a elite de seus veteranos. Mesmo em inferioridade numérica, o homenzinho teria de atacar. E o resto todos nós sabemos. Está lá nas páginas de Guerra e Paz... Numa guerra, meu chapa, é preciso sempre manter a chama de um isqueiro acessa. Fique com este! É seu. Hein?” Disse Pablo. “Vou pegar umas cervejas, pra gente.” E o chapa então se foi e não voltou mais. Fui sentindo gradualmente sua ausência. Não vou dizer que não cismei em procurá-lo. Pois fui. Fui até lá embaixo. Subi outra vez. Bati no seu camarote. Não havia nada do outro lado. Sequer um ruído. Eu nunca mais o veria. Vida louca. Eu devia ter dado mais atenção aquele chapa. Agradecer pelo isqueiro, sei lá. Um vento soprou com mais força e eu senti uns respingos gelados na nuca. Começou a cair um pau d´água, acompanhado de fortes relâmpagos. As lonas foram baixadas. Fez-se um silencio estranho no barco. Se ele afundasse de repente, ninguém ia sentir dor. Será? Caminhei desesperado até o bar. Sem álcool e sem buceta ninguém vive.
 “Tô fechando, amigo!” Falou uma bicha velha que tomava conta do bar.
“Pelo amor de Deus, chefe, me vende só uma garrafa daquelas ali no canto pra suportar o frio.” Apontei para uma garrafa de vodika vagabunda.
“Oito!” Eu só tinha cinco. O barco balançava. Um frio desgraçado. Tentei negociar com a bicha velha:
“Esse barco vai afundar, cara, e eu preciso de um trago disso aí.” Ele me esconjurou. Deixou por cinco. Era tudo que me restava, aqueles cinco reais. Quando chegasse à Manaus, eu daria um jeito. Se chegasse. Sério. O barco balançava com o forte temporal. Um raio iluminou o rosto duro e escroto da bicha velha. Seus olhos estavam pulados, bastante assustados. Eu vi o medo dentro daqueles seus olhos saltados. Ele tratou de fechar o bar. Peguei a garrafa, e há muito custo, me dirigi mais uma vez para o camarote do sujeitinho. Bati outra vez, mas necas. Nenhum sinal do gringo. “Onde ele se meteu, esse filho da puta!” Eu balançava pra lá e pra cá com a garrafa no corredor. Desci ligeiramente as escadas e fui pra minha rede. Deitado, tomei uma grande golada daquilo. Senti relaxar por dentro. Já se ouvia o desespero das pessoas; suas almas agitadas apanhando seus salva-vidas. Choros de crianças, mulheres, marmanjos. Fui capaz de rir. Ri bastante alto em meio à claridade sinistra dos relâmpagos e o desespero dos tripulantes. Tolice. Quando a morte chegasse, ninguém escaparia. Ninguém é digno de escapar. Acendi o isqueiro que Pablo me dera. Fiquei olhando sua chama. A morte nos torna iguais. Pequenos anões. Fechei meus olhos...
                                                   
                                                                           Manaus, 21 de junho de 2013

sexta-feira, 21 de junho de 2013

A RUIVA - PARTE XIII



 VALENTINA

Morava em uma taperazinha simples á beira do rio, num lago chamado Remanso do Boto - há poucos minutos da Ilha, atravessando de canoa. Lembro-me bem do silencio daquele lago. Do cheiro do rio. Do voo livre dos pássaros e das estripulias dos botos logo ao amanhecer. Aceitei ficar um tempo ali enquanto recuperava as forças para puder andar e pensar direito. Enquanto isso bolava uma maneira de regressar para Manaus. Nesse meio termo, que prolongou-se por longos meses, Valentina não se descuidou um só instante de mim. Me alimentou, me deu amor, carinho e também me ensinou o jogo dos sinais que devagar fui assimilando durante as tardes frescas à sombra de um jambeiro que protegia a taperazinha do sol forte e tirânico daqueles dias quentes e escaldantes de verão parintinense. Quando começamos a nos entender, ela me disse com as mãos:
Eu-vou-cui-dar-de-vo-cê.Vou-cu-rar-sua-dor.”
“Mas-não-sin-to-dor-al-gu-ma,Va-len-ti-na. Sou-um-ca-ra-in-sen-sí-vel. Um-ho-mem-a-ni-qui-la-do-pe-la-au-sên-cia-da-dor.”
Ela sorriu, apontando com o dedo na direção do meu peito onde fica o coração. Respondi, “An-an, meu-bem. A-dor-es-tá-a-qui.” Direcionei o seu dedo na direção da cabeça. Acho que entendeu porque me olhou contrariada. Não dissemos mais nada. Ficamos o resto da tarde ouvindo o ruído rouco das terras caindo devagar das ribanceiras, tingindo de amarelo, o rio lá embaixo. Era como se o tempo tivesse parado restando apenas nós dois respirando naquela pequena porção de ilha paradisíaca. Pensei em aproveitar a paz daquele lugar para escrever um pouco. Prostrava-me nos finais da tarde olhando o rio, esperando talvez por alguma inspiração. Mas, necas. Apenas o silencio afogando-se na paz do meu nada interior. E os dias foram se arrastando bem devagar. Fui sacando Valentina. Ela me queria ali como seu homem para o resto da vida. Ela me provocava, me atiçava. Valentina tinha uma perna curtinha e uma rótula pequenininha que parecia solta. Ficava ali brincando entediadamente com sua rótula, até ela bocejar e me dizer: “Vou-dei-tar, tá-pai?!” Dizia ela. Tinha um sono de pedra e não roncava.  Um dia, não resistindo as suas investidas, acabamos trepando debaixo do imenso jambeiro. Eu tinha que gratificá-la de alguma maneira. Foi a minha primeira experiência sexual com uma anã. Sugeri um sessenta e nove. Assim, evitaria encarar de frente o seu rosto com aquele alfinetão atravessado no nariz e também aquela imensa argolona esgarçando-lhe a orelha. Meu pau não responderia olhando aquilo. Topou. Enquanto ela chupava o meu pênis, eu introduzia minha língua em sua fenda enorme. Quem disse que anã tem fenda pequena? Não sei quanto às outras, mas Valentina tinha uma fenda enorme e acolchoadinha de meter. Capaz de viciar qualquer pau. Um dia, botei aquela pequena massa de mulher de quatro e acabei metendo naquela fenda. E depois em seu cu. Ficamos ali o resto da tarde brincando. Brincávamos todas as tardes. Uma brincadeira que me custaria caro.
Valentina me ensinou a pescar. Pegávamos a canoa e íamos pescar em um furo, próximo dali. Havia peixe á beça. O excedente, vendíamos no porto, no mercado Municipal. Valentina tinha uma pequena barraca de peixes e frutas. Eu a ajudava a vender o pescado. Era como tirávamos o nosso sustento. Fui economizando umas migalhas, porque uma hora daquelas, eu precisaria dar no pé. Não vou dizer que não foram dias de muita paz e sossego ao lado daquela minha pequena amante dedicada, mas eu precisava partir. Eu teria que fazer isso de algum modo, sem magoá-la. Horas, dias, semanas, meses, foram se passando... Já estava ficando bem negra minha pele do sol das manhãs e tardes ociosas em que passava pescando ou sem fazer absolutamente nada. E também estava ficando gordo. Acima do peso. Um dia fisgando um peixe, pensei na palavra liberdade. Resolvi rascunhar algo: “Vivo uma certa liberdade mas sei que ela não existe. Liberdade não rima com eternidade. E a dor? Rima com quê? Com amor? Aprendi a pescar, mas me recuso a amar. O meio faz do homem um elemento insensível. Incapaz de sentir dor. Valentina me ensinaria os caminhos do amor? Olho o horizonte agora. Mergulhões plainam neste céu de mistério e paz. Caem como suicidas mergulhando no rio para abocanhar o seu alimento. Minha pele escura do sol. Minha alma oscilante divaga com um leve banzeiro. Sinto o suspiro de uma natureza morta que me cerca. O que eu estou fazendo neste fim de mundo, afinal? Não posso amolecer. ” Ia melhorar aquilo. Achei meloso demais. Minha cabeça é mesmo um quarto bagunçado. Guardei no bolso o que tinha escrito e continuei a pescar. Vi Valentina me olhando de longe. Acenava para mim. Ela estava feliz. Radiante. Ela me resgatou do inferno. Fechou minhas feridas. Me devolveu a dignidade e a macheza. E agora eu queria ir embora. Mas o pior viria depois:
“Es-tou-es-pe-ran-do-um-fi-lho-seu, Má-rio-Au-gus-to!” Aquilo foi como um alicate torcendo meus ovos. Passei minhas mãos nos cabelos tentando esconder meu desespero.
“Vo-cê-tá-de-sa-ca-na-gem, Va-len-ti-na!” Mas ela esfregou levemente suas mãozinhas sobre a barriga e sorriu docemente. Eu estava literalmente fodido. Fui para fora da taperazinha fumar. Uma lua sem graça equilibrava-se no céu. O rio cintilante brilhava como escamas de um tucunaré zombando de minha malha de tragédias. E agora mais essa! O que faço? Não tinha como dizer não para Valentina. Seu ventrezinho crescia. Era nauseante. Eu tinha que arquitetar um plano urgente. Imagine eu sendo pai. Como seria aquele rebento? Se nascesse um anão? Não, eu tinha que dar o fora dali o mais rapidamente. Trabalhei duro ajudando Valentina na sua barraca de peixes para economizar uns trocados, fingindo estar tudo bem, e quando apurei a quantia certa – o suficiente para poder comprar o bilhete de barco, me dirigi apressado até o porto. Para o meu azar, os barcos ali atracados só partiriam no sábado, e era uma terça-feira, de modo que eu teria que esperar mais alguns dias. Eu não agüentaria. Foi então que um mariscador que bebia por ali, e que ouviu minha conversa com o embarcadiço, me chamou no canto e disse:
“Mas olhe bem, patrão, o Santa Helena que vem de Santarém vai passar amanhã, as cinco em ponto da madrugada. É um barco ajato. Ele faz uma paradinha de dez minutos e depois parte. Não tem escala não, e ele só para se tiver alguém no porto acenando. O senhor tem que ser esperto e estar aqui as cinco em ponto da manhã.” A idéia do cara me reanimou. Era naquele mesmo. Não tinha outro jeito. Paguei mais uma pinga àquele mariscador pela informação que me dera e acabei descobrindo que ele possuía uma rabetinha, e, portanto, contratei os serviços daquele chapa. Ele me apanharia as quatro em ponto no beiradão do Remanso. Naquele resto de dia, Valentina fazia planos para nós três. Valentina... Ouvia seus planos para o futuro sem dizer nada, só concordando. Sorte minha, que Valentina tinha um sono de pedra (pelo menos era o que eu achava) Esperei que ela dormisse, e as três em ponto, peguei minhas tralhas (pouca coisa: umas poucas roupas, uma rede e só) e caminhei até á margem do Remanso para esperar o mariscador vir me buscar. Fazia uma noite fria, sem estrelas. Nada me azucrinava os sentimentos. Nem mesmo os grilos cantando infernalmente. Eu tinha uma vida ordinária em Manaus. Mas eu precisava voltar para ela. Para meu cachorro Príapo que havia deixado aos cuidados do vizinho. Este meu estado poliédrico da alma. Vi a rabetinha se aproximar. Quando atracou, cuidei apressadamente de botar minhas coisas dentro e partimos. No caminho, com o vento frio soprando meu rosto, pensei: “Toda criatura foge. Eu fugia para aonde? De quem afinal eu fugia? De que destino afinal fugimos todos nós? A verdade é que a gente sempre dá um jeito de escapar. Ao desembarcar no porto, me coloquei de prontidão, a espera do barco. A noite ainda era escura e fria. Mas já havia certo vozerio no cais. Comprei uma cerveja e esperei com o olhar duro e atento para o horizonte certo, de onde provavelmente assomaria o Santa Helena.  Fiquei enrolando ali com aquela única cerveja. A Ilha Tupinambarana atrás de mim, calada, em silencio. Nem parecia o mesmo inferno de quando cheguei ali a uns meses atrás. E tudo aquilo que passei, meu Deus, quem acreditaria?Aí então vi amanhecer devagar o dia e o Santa Helena que era um barco veloz,  enorme e salvador, já vinha vindo soprando bem longe sua trombeta de Jericó. Corri para o píer, e lá ao chegar, já havia umas poucas almas penadas de vigília, prontas também para embarcar. Acenávamos desesperados para ele parar. Ele foi mudando levemente sua proa e veio vindo valente em nossa direção. Atracou. Entramos. Paguei minha passagem. Tudo certo. Armei minha rede na parte de cima. Não levou nem dez minutos, e o barco já se preparava para desatracar de Parintins, soprando novamente sua trombeta de Jericó. Fui olhar da amurada o barco partir. Olhar a Ilha pela última vez. Tal qual foi minha surpresa e espanto ao ver correndo para pegar aquele barco, a figura de Valentina. Puta que pariu, não pode ser! Ela não pode embarcar! Ela não vai embarcar! Ela já tinha me visto, porém. Parou na extremidade do Pier. Pensei que ia se jogar no rio e nadar até o barco. Mas, não. Ficou ali estatalada. Vi seus olhinhos profundamente tristes. Suas mãoszinhas deslizando sobre o ventrizinho saliente que carregava um filho meu. Eu parecia ler seus dedos labiais de longe dizendo: “Mário, meu amor, não me deixe aqui sozinha nessa situação, por favor!” Ou era o espírito porco da minha consciência suja e imprestável que me dizia aquilo? As trombetas de Jericó suaram mais uma vez. Já nos distanciávamos pra valer. Eu via a Ilha ficando lá atrás para sempre com um pequeno ponto perdido que era Valentina que não cansava de acenar. Continuei inflexível. Sem um gesto de compaixão. Engoli uma saliva seca e foi só. Eu precisava partir, gente...

quinta-feira, 20 de junho de 2013

A RUIVA - PARTE XII



 O ESTUPRO

Andei toda a Parintins atrás da minha dor. Ela tinha que existir em algum lugar. Talvez provocando o interior dos homens daquela ilha, eu arrancaria de dentro deles a minha dor verdadeira. Não tinha mesmo o que perder. Eu estava sozinho e fodido e não conseguia lembrar onde eu havia conseguido aquela garrafada que me abrira uma pequena cratera na cabeça, e agora o sangue encharcava-me a roupa. Mas eu não sentia dor alguma. Eu apenas seguia cambaleando ensangüentado, alheio em meio a toda aquela horda que dançava o dois pra lá e dois pra cá e ouvindo uma abelha que zumbinizava dentro da minha cabeça. Foi aí então que entrei naquele boteco de homens rudes, já bem distante do centro. Uns caras mal encarados jogavam sinuca, outros bebiam cachaça. Sentei numa das mesas com o meu Deus que me dava sustentação e coragem. A abelha continuava zumbinizando. Ninguém ali se importava com a minha dor porque eu não sentia dor alguma. Mais lá pra frente, a minha presença ensanguentada e os palavrões que eu lançava a esmo no ar, em alto e bom tom, já começava a incomodar o dono do boteco e a clientela toda. Os homens já me olhavam sérios e duros. “A dor é uma mentira!” Disse a eles. O cara da sinuca errou uma tacada. NÃO ERA MAIS UMA ABELHA QUE ZUNIA DENTRO DA MINHA CABEÇA, MAS, VÁRIAS. MINHA CABEÇA ERA UMA COLMÉIA INFERNAL. EU PRECISAVA ME LIVRAR DAQUELAS ABELHINHAS INFERNAIS. Aí comecei a provocar os caras da sinuca. Tirar suas concentrações. Xingá-los:
“Você é um erro porque sente dor!!” Disse a um deles. A bola treze que liquidaria aquela partida, não entrou. O taco de madeira tremia nas mãos de um dos caras. Senti quando um deles atingiu-me certeiro com o taco no meio da testa. Vi tudo girar, emborcado ao chão: o botecozinho fuleiro, o seu forro de zinco; todos aqueles homens rudes. “Mais respeito, filho da puta!” Dois deles me pagaram pelos braços e me arrastaram pros fundos. O velho, dono do boteco, fechou a porta de ferro de levantar. O cara do taco arriou o zíper da calça. Tinha um rosto feio por causa de sua cicatriz de peixeiro. Os outros já não recordo bem. Mas eram fortes e maus. “Vira ele de bruço!” Vamos ver se ele não sente dor. Falou o da cicatriz. Abriram minhas pernas. Pedi a Deus que fossem rápidos. Aí então eu fechei definitivamente os meus olhos com medo de sentir dor. Senti algo me rasgando. Me dilacerando. Depois, só um liquido vermelho e pegajoso descendo quente e calmo por entre as minhas pernas...

***
Acordei em uma cama ordinária de um hospital, com uns tubos enfiados no nariz e nos braços. Acho que me alimentava por ali. Não tinha sido um sonho. Eu podia sentir alma e corpo moralmente aniquilados. Sem honra. Sem nada. E aquelas fortes ferroadas no ânus. Era como uma carne se fechando devagar. Quando recuperei as forças, perguntei àquela enfermeira que checava o tubo de soro:
“Quanto tempo, estou aqui?”
“Há duas semanas, senhor.”
“O que aconteceu?”
“O senhor sofreu um coma alcóolico e fez uma operação de sutura. Mas já está se recuperando.”
“E como vim parar aqui?”
“Uma anãzinha encontrou o senhor jogado em uma calçada e trouxe o senhor para cá.”
“E onde está ela?”
“Está aí fora! Quer que mande entrar?” Não soube o que dizer. Então a vi entrar. O enorme alfinetão atravessado no nariz. Era Valentina. Mordia uma maçã. Sentou numa cadeira e me cumprimentou com os sinais:
“Não dá! Não consigo entender o que diz, Valentina. Mas obrigado por tudo.” Não parava de fazer os sinais com as mãos. Depois, ficou me olhando penalizada. Dava-me sopa na boca. Cuidou de mim enquanto estive naquele hospital me recuperando. Fiquei ainda alguns dias. Quando precisei desocupar o leito, eu não tinha praticamente aonde ir. Nem dinheiro pra voltar á Manaus, nem Deus na mochila, nada! Levaram-me tudo. Foi quando Valentina me chamou pra ficar um tempo com ela.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

A RUIVA - PARTE XI



 NÃO SABEMOS A MEDIDA DO NOSSO INFERNO NA TERRA.

A viagem foi sem graça e violenta com muitas sacudidelas, vômitos e lamentos recolhidos dentro de mim na carroceria daquela picape velha que nos dava carona. Não tínhamos muito o que falar um para o outro. Seguíamos calados atravessando uma estrada seca e poeirenta com um sol criminoso batendo cheio em nosso rosto. A sorte é que dividíamos os três, um Deus da melhor qualidade. Não sabemos a medida do nosso inferno na terra. Foda-se! Apenas seguimos, índios e brancos. E isto me parece razoavelmente bom. Chegamos ao entardecer. Quase de noite. Depois dali, não sei que rumo aqueles dois tomaram. É que nos perdemos, engolidos que fomos pela multidão. Vi-me terrivelmente só e desnorteado andando bêbado pelo centro de Parintins. Empurrado pra lá e pra cá. Esmagado no meio daquela gente toda. Mas empunhando um Deus importado. Eu estava cansado e fodido! Vez ou outra dava enormes goladas naquela garrafa e meu corpo se anestesiava e eu via tudo azul e vermelho e seguia em frente. Descobri que andava em círculo em torno da grande arena como um penitente pagando os meus pecados. Foi quando me lembrei da Bodega do Negão que ficava ali próximo, bem atrás da Igreja de Nossa Senhora do Carmo e tratei de cair fora do grande círculo.
            Quando lá cheguei, tocava um sambinha triste do Chico da Silva que falava de amor e boemia e então eu me sentei sozinho em um canto pra ouvir. Eu precisava de um lugar como aquele pra descansar um pouco. Sentia-me nocauteado. Ao menos não sentia fome e nem vontade de trepar. Apenas uma ânsia enorme de seguir bebendo e nunca mais parar. Nunca mais! Até que o falso Negão notou minha presença e caminhou para mim:
“Tá perdido, rapaz? As tuas amigas estão atrás de você. A ruivinha deixou este endereço. O que aconteceu?”
“Eu fui flechado.”
“Você tá é bêbado.” Ele riu. “Vou preparar uma sopa.” E se foi. Nesse espaço de tempo eu só me lembro que fiquei sozinho naquela mesa nos fundos do bar me alimentando de Deus enquanto ouvia as canções do Chico. Havia uma que dizia: “Eu canto eu canto, minha vida, meu destino, meus amores figurados e os pecados de um poeta abandonado, estou cantando o meu pranto recheado de ilusões...” Pensava em Chelsea. Meu pensamento em negrito não conseguia se desgrudar dela. No meu pensamento ela dançava sensualmente vestindo uma lingerie vermelha com seus cabelos soltos. Eu tinha que possuí-la uma última vez. Não me conformava. O Negão veio com a sopa. O vapor quente entrava pelas narinas. Embaçou tudo. Fiquei olhando pra sopa. Empurrei o pratinho pro lado e continuei confabulando com Deus. Botando desesperado ele pra dentro de mim. Deus era mais forte que eu. Me inebriava os sentidos. Acelerava meus batimentos cardíacos. Depois, li com cuidado o endereço escrito no bilhetinho. Pensei no que fazer. Eu tinha que salvar Chelsea daquela seita de malucos ou sei lá o quê era aquilo. Pedi emprestado uns trocados ao Negão, agradeci pela sopa e deixei a Bodega. Parei o primeiro triciclo que passava e entreguei o papel ao seu condutor. “Toca pra este endereço!” Ele cortou por um caminho diferente, evitando a multidão, o que nos obrigou a margear a orla da ilha. Uma lua ébria pairava baixa no céu. Um cheiro de rio e solidão. O caminho parecia interminável. O meu pensamento em Chelsea. O gavião nunca abandona o companheiro. Uma vírgula! Ela havia abandonado o companheiro para viver ao lado de um anão albino. Eu tinha sido enganado e não sabia como tudo aquilo ia acabar. Finalmente chegamos. Gratifiquei o condutor, e a passos cambaleantes atravessei o arco de caramanchões e bugunvílias descendo as escadas espiraladas que me levavam novamente aquele porão sombrio. Os anões me olharam perdido e transtornado quando surgi dentro da fumaça. Tocava dessa vez uma versão eletrônica de La Boheme, de Charles Azavour. Virna se aproximou. Havia outra anãzinha com ela. Era Valentina com aquele troço horrível atravessado no nariz. Foi a única que sorriu emocionada a me ver. Virna disse:
“Tudo bem, Mário Augusto?” Outros anões se juntaram a elas. Me olhavam penalizados. Quando dei por mim, estava cercado de anões. Eu olhava pras figurinhas. Eram como seres inocentes e perversos de uma floresta encantada.
“Vim buscar Chelsea. Onde ela está?”
“Chelsea está ocupada, amamentando Frederico. Você se acalme!”
“Isso tudo é uma loucura! Uma conspiração! Quero ver Chelsea!” Furei o bloqueio dos anões. Nos fundos do salão, envolta em uma fumaça de gelo, vislumbrei a sombra de Chelsea amamentando o anão albino. A pele dela estava mais pálida e bonita.
            Eu chorava miséria
            Enquanto você pousava nua.
Dizia a canção do Azavour.
O anãozinho parou um pouco de mamar, e olhou aterrorizado quando me aproximei deles:
“Então é verdade?”
“O que é verdade?”
“Tornastes ama de leite de anão.”
“Você não sabe o que diz, Mário Augusto. Está bêbado.”
“Você precisa vir comigo.” Estiquei minha mão tentando tocá-la. Eu precisava tocá-la. Senti-la uma última vez. Frederico fez uma careta terrível de choro. Os anões olhavam a cena, comovidos e preocupados:
“Você ficou maluco, Mário Augusto? Não podes me tocar.”
“Por que não posso?”
“Por que só as coisas sagradas merecem ser tocadas.” Disse Virna atrás de mim. Virei para ela:
“Como quê?”
“Como a dor, Mário Augusto.”
“O que tem a dor?”
“Precisas sentir a dor para crescer.”
“Isso não faz sentido!”
“Você precisa encontrar a dor, Mário Augusto! Ela está aí dentro de você.”
                 Está aí dentro de você! Está aí dentro de você!
            Repetiam em coro os anões.
“Chega um tempo da vida em que a gente perde o controle, Mário Augusto. Tente manter o controle. A dor acalenta a loucura.”
A dor acalenta a loucura! A dor acalenta a loucura!
Os anões fechavam o cerco em minha volta.
“Você não quer ser um cavalo, Mário Augusto? Sentir a dor de um cavalo?”
A dor de um cavalo! A dor de um cavalo!
Ignorei aquilo, e ao tentar tocar mais uma vez em Chelsea, Frederico deu um berro assustador. Fui me afastando de costas. Os anões repetiam em coro:
Você precisa encontrar a dor! Você precisa encontrar a dor!
Ouvia-os como sob o efeito de um mantra diabólico. Fui andando de costas até á porta. Esbarrei em um dos corpos pendurados. Olhei e era o de Claudionilson. Ainda permanecia pendurado pelos peitos que estavam enormes e inchados. Jorrava leite dele e alguns anões aparavam o líquido com suas tigelinhas. O índio me olhou com um sorriso patético, e disse:
“O que você precisa é curar a sua alma por meio da dor, Mário Augusto! Só a dor é capaz.”
Só a dor é capaz! Só a dor é capaz!” Diziam os anões.
“À merda com a dor!” E subi desesperado aquelas escadas espiraladas deixando aquele porão. Saí em busca da minha dor.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

A RUIVA - PARTE X



 OS PAPA XANAS

Depois que descemos das motos que nos levaram ás proximidades daquele bairro situado nos confins daquela Ilha, tivemos ainda que andar mais ou menos uns 30km de uma estrada bruta de barro amarelo, debaixo de um caralho de sol escaldante. Os moto-taxistas não quiseram nos dizer o motivo, apenas nos largaram no meio do nada, deram a volta em suas motocicletas e desapareceram na poeira. O choque, no entanto, estava mesmo para acontecer algumas horas dali, quando adentramos a reserva daqueles índios que sequer sabíamos a etnia. O lugar era um enorme descampado com vários barracões espalhados ao redor. Não eram malocas cobertas de palha como imaginávamos encontrar, mas imensos barracões fantasmagóricos, a maioria, feito de madeira coberta de lona que mais pareciam acampamentos dos Sem-Terra. Tudo em volta era triste e sombrio. Me senti deprimido. Chelsea sacou a filmadora e foi fazendo algumas tomadas do lugar. Marcos tirava fotos e tomava notas em seu caderninho. Alguns índios, deitados em suas redes, nos olhavam desconfiados com o canto dos olhos. A maioria, índios embriagados entornando garrafas de cachaça, outros tantos jogados pelo chão, nos arredores das barracas. Aos poucos, foram aparecendo um montão deles, capotados sobre um chão de barro amarelo e bruto. O lugar era desolador e aquela gente toda parecia remanescente de uma guerra tribal sem precedentes. Notei algum sinal de preocupação nos olhos de Virna, mas não perguntei nada. Acendi um cigarro pra relaxar. Aí então, vimos um daqueles índios caminhar em nossa direção vestindo uma camisa do Flamengo e empunhando uma garrafa de Velho Barreiro. Gesticulava á beça e falava no seu dialeto alguma coisa que não entendíamos:
“O que ele tá dizendo?” Quis saber Marcos.
“Tá pedindo pra vocês pararem de filmar.” Disse Virna.
“Guarda a máquina, Chelsea!” Ordenou Marcos. Mas Chelsea continuou filmando a aproximação do índio. Ele chegou bem perto. Parecia furioso. Outros índios se aproximaram cambaleando. Entre eles, mulheres e crianças. Todos aparentemente bêbados. Nos cercaram. Virna falou alguma coisa para o índio extressadinho e ele se acalmou um pouco. As mulheres começaram a cheirar as roupas de Chelsea. Tocavam nela. Os homens alisavam a roupa florida de Marcos que reluzia ao sol. Apontavam para o tênis que ele usava.
“Aproveita e pergunta qual é a etnia deles, e onde está o Tuxaua.” Ordenou Marcos para Virna. Parecia tudo tão simples para ele.
Virna dirigiu sua pergunta ao índio extressadinho que respondeu, provocando gargalhadas dos outros índios:
“Disse que se chamam os Papa-Xanas. Mas acho que estão de gozação, por isso todos riram.” Notei que um dos índios olhava com saliência para uma das partes íntimas e salientes de Chelsea sob sua saia jeans colada. Suas unhas vermelhíssimas luzindo ao sol.
“Pergunta se podemos filmá-los?” Disse Marcos. Virna traduziu a pergunta. Virna era mesmo uma anãzinha surpreendente. O índio voltou a gesticular sem parar na direção da câmera nas mãos de Chelsea.
“O que ele tanto quer?” Perguntou Chelsea.
“Ele quer tua câmera.”
“Não senhor!” Disse Chelsea, recuando uns passos.
“Então para de filmar!” Aconselhou Virna falando entre os dentes. Uma índia tocava agora nos seios redondos de Chelsea. Apertava-os. Uma outra cheirava seus cabelos.Foram fechando o cerco em torno de nós. Um índio puxava a camisa havaiana de Marcos. O outro queria seu tênis.
“O que eles querem afinal?”
“Gostaram da sua roupa. Eles querem para eles.” Disse Virna. Um índio mais afoito arrancou a Canon das mãos de Marcos. Os outros, a filmadora de Chelsea. Arrancaram também seus óculos escuros. Senti um deles vindo por trás de mim. Puxou minha carteira do bolso. Não havia nada nela. Levei um pescoção do cara. A carteira foi parar longe. Os outros riram daquilo. O índio extressado falava agora nossa língua e ainda gesticulava bastante. Aos poucos, foram fazendo a limpeza. Ninguém foi poupado.
“Puta que pariu, diz pra eles não fazerem isso. Viemos em paz.” Disse inocentemente Marcos, livrando-se agora do tênis.”
“Não reajam! Vou ver se falo com o tuxaua.” Disse Virna. Trocou algumas falas com o índio furioso. Ele apontou pra barraca nos fundos. Lá ficava o grande tuxaua. Fomos até lá com os índios atrás de nós. O índio nervosinho entrou primeiro. Depois ordenou que entrássemos. Virna sentou defronte ao Tuxaua que era um índio velho, forte e pelhancudo, e que ao contrário dos outros índios, parecia viver muito bem obrigado. Olhei ao redor e vi uma televisão plasma, uma geladeira e alguns outros eletrodomésticos ainda encaixotados com os dizeres, fragile. Nos fundos, atrás do Tuxaua, havia um altar repleto de garrafas de cachaça e whiskies importado. Era espantoso. Virna agora negociava diretamente com ele. Ficamos ali esperando Virna nos dá o feedback. Depois de um tempo, ela nos falou:
“Bom, o tuxaua disse que não pode fazer nada sobre o material apreendido, uma vez que tudo que chega à aldeia passa a pertencer a eles.”
“Mas não há um jeito de negociar, não?” Quis saber, Marcos.
“Talvez haja um jeito, sim.” Virna virou-se para o Tuxaua e lhe mostrou sua enorme serpente tatuada nas costas. O tuxaua ficou olhando pra aquilo. Tocou na cobra. Falou alguma coisa. Virna respondeu. Parecia haver um entendimento. Virna virou pra gente outra vez:
“O tuxaua gostou bastante da cobra. Ele quer que eu faça uma tatuagem dessas em suas costas. Em troca, ele nos deixa ir embora.”
“Mas e o material?”
“O material fica.”
“Brincadeira! Isso não está certo, não.” Disse Marcos já um pouco nervoso. Não via mais nele a figura de antropólogo. Chelsea tentava acalmá-lo. Parecia mais tranquila que ele. Cheguei a pensar que ela ria de toda aquela situação. Virna ainda tentou argumentar alguma coisa, mas o tuxaua balançava a cabeça negativamente.
“É pegar ou largar, gente.”
“Mas nem terminamos de pagar esse material. Como fica?” Disse Marcos.
“Não fica.“ Disse Virna.
“Gente, vamos resolver logo essa parada.” Eu disse. Concordaram. Virna então pediu para que liberassem a sua mochila, pois dentro dela havia as suas ferramentas de trabalho. Virna era mesmo precavida. O tuxaua ordenou que trouxessem as suas coisas. Resolvido o problema, ela começou então a esboçar o desenho nas costas do velho. Ficamos ali sentados olhando. Aquilo levaria horas. Marcos e Chelsea começaram a discutir baixinho. Aproveitei para contar as garrafinhas que havia no altar, mas eu sempre me perdia na contagem e aí então eu recomeçava tudo de novo. Havia pra mais de cem garrafas daquelas. Impressionante! Era como santinhos no altar. Aí então me cansei de contar todas aquelas garrafinhas, me levantei e pedi licença para sair. Licença autorizada pelo tuxaua, e eu então me pus a andar pensativo ao longo da aldeia. Olhava aquele lugar. Era mesmo um cenário desolador e deprimente. Todos aqueles corpos embriagados espalhados pelo chão. Um verdadeiro holocausto indígena. De repente, avistei uma confusão: dois Papa-Xanas iniciaram uma luta corporal por causa de uma garrafa de 51. Caíram atracados no chão e ficaram ali rolando no barro bruto e amarelo. Ninguém ligava pra eles. Parecia natural. Fiquei olhando. O vencedor ficou por cima e agora socava no chão duro a cara do seu oponente. Ficou ali batendo como se bate uma roupa no tanque até o outro desfalecer. Ele então pegou o seu prêmio e saiu cambaleado pra longe. Continuei andando tranquilo pela aldeia fingindo naturalidade. Sentei em um tronco de árvore perto de um indiozinho. Um menino. Ele detonava uma garrafa daquelas. O moleque não tinha mais que dez anos de idade. Orgulhoso, mostrou sua garrafa como a um troféu. Tomei-a de suas mãozinhas, dei-lhe uns cascudos brincando e entornei uma talagada daquele veneno. O pai se aproximou para ver. Sentou perto de nós e ficou revezando com a gente. O sol ardia sem piedade e o silencio ensurdecedor parecia a imagem de uma velha sem dentes. O índio pai falava a nossa língua e parecia muito descontente com o Tuxaua e a vida que levava na aldeia. Conversando um bom tempo com ele, arrisquei a perguntar como é que eles conseguiam todas aquelas bebidas. Ele então me revelou algo surpreendente. O cacique ou seja lá o quê ele representasse, me disse que havia um grande estoque de bebidas na maloca do tuxaua, e era ele, o tuxaua, quem sempre distribuía as bebidas para todos na aldeia quando celebravam as festas em homenagem ao grande Deus da garrafa.
“Tupã?” Perguntei.
“Não, Tupã, não, ao grande Deus que mora dentro de cada uma dessas garrafas.” Disse ele. Só me faltava essa. Tupã havia se transformado num líquido alcoolizante. Eu havia feito uma descoberta que nenhum historiador, cientista ou antropólogo havia feito: Deus havia sido convertido em um líquido alcoolizante e agora toda a tribo cultuava um novo Deus. Ele ainda me revelaria mais coisas surpreendentes quando perguntei quem fornecia Deus à tribo. Tomou uma golada de Deus, passou pro menorzinho, depois pra mim e prosseguiu. Explicou que Deus vinha na forma do grande pássaro de ferro que pousava atrás da reserva. Os índios desembarcavam Deus que chegava sempre à noitinha e ia direto pra barraca do Tuxaua. Disse ainda que, já algum tempo, havia grande interesse do homem branco em construir naquelas terras, uma rede hoteleira. Mas havia a reserva atrapalhando o caminho, foi então que encontraram a solução para o problema: conquistar a confiança do Tuxaua com o fornecimento de Deus junto com eletrodomésticos. Agora entendia porque o tuxaua levava uma vida de luxo no seu cafofo, provando de um Deus legítimo, enquanto os índios se matavam enchendo a cara com um Deus vagabundo. Eu tinha uma senhora bomba nas mãos. Poderia tornar aquilo público. Ferrar com o Tuxaua. Fiquei pensando. Então eu disse, levantando e batendo a poeira das calças:
“Mas esse Tuxaua é um grandississimo filho da puta, hein?”
            Depois caminhei trôpego até a barraca. Marcos e Chelsea discutiam feio na entrada do barracão. Parecia não mais se entenderem. Ninguém mais se entendia. De algum modo, as coisas pareciam dar para trás:
“Vamos dar o fora gente, o Tuxaua é um impostor!” Não ligaram para o que eu disse. Chelsea olhava contrariado para Marcos. Depois ela foi sentar bem longe dele, emburrada. Entrei na barraca. Virna espetava agora as agulhinhas nas costas do velho. Cochichei no ouvido dela:
“Vamos cair fora daqui! Esse Tuxaua não presta!”
“Xiiii...” Onomatopeou o Tuxaua. Depois fez um sinal sério com as mãos para eu sair.
“Espera lá fora, Mário! Estou quase terminando.”
Saí. O calor derretia os miolos. Nenhuma fresca, sombra, nada! Fui me sentar a uma certa distancia de Chelsea que estava sentada distante de Marcos. Calados e pensativos parecíamos os “pensadores” de Rodin derretendo sob um sol vingativo. As horas se passavam. Chelsea agora riscava com um graveto, qualquer coisa no chão de barro batido. Estava triste. Mesmo triste ela estava bonita. Suada e bonita. Suas unhas pintadas de vermelho brilhavam. É só o que me lembro. Aí então vimos a lua aparecer e Virna finalmente saiu de dentro da barraca seguida pelo Tuxaua que mostrava orgulhoso sua tatuagem de serpente. Os índios vieram ver. Cercaram-no. Começaram a dançar e cantar formando um pequeno círculo em nossa volta, cantando:
É carne de boi cheia ôôô!
É carne de boi cheia aaa!
Com os Papa-Xana, não se meta!
Cantavam. Vendo-os cantar e dançar daquele jeito, conclui que aqueles índios não batiam bem da cabeça, ou só podiam mesmo estar de sacanagem conosco. E foram distribuídos mais bebidas. O Tuxaua abriu mão de algum estoque de seu Deus legítimo. Os Papa-Xanas faziam filas na entrada da barraca do grande chefe. Festa na tribo. Uma festa que provavelmente duraria horas ou dias, quem sabe. Os Papa Xanas só queriam um pé. Era a nossa chance de escapar, pensei, mas o Tuxaua ordenou que ficássemos e celebrássemos com eles. Foi nos servido um whiski doze anos numa cuia. Ficamos ali bebendo com o grande chefe e com os outros índios eleitos. A noite havia chegado. Tomávamos goles monumentais daquele whiski. O Tuxaua ria e falava cuspindo na cara da gente. Aí vimos surgir no meio do terreiro um pajé todo coberto por garrafinhas de corote e ele começou a dançar uma dança estranha. Tremia-se todo. Tinhas espasmos fantásticos. Um delirium-tremens em grande estilo. Eu tomava goles monumentais daquela cuia e passava para os companheiros ao lado. Os índios se exibiam pra gente. As crianças brincavam com Virna, puxando seus cabelos ruivos e espetando com pedaços de pau o desenho da cobra nas suas costas. Ela respondia rindo e atirando pedras nelas. A noite ia alta e ebriamente harmoniosa. Não tínhamos idéia da hora. Vi Chelsea levantar-se e caminhar para longe. Depois ela sentou-se em um tronco e ficou ali pensando e olhando pra lua. Parecia mesmo preocupada. Tomei coragem e fui até ela:
“E aí?” Riu sem dizer nada.
“Infelizmente nem tudo sai como a gente quer, não é mesmo...?”
“Pouco importa agora, Mário.”
“Ah, é? Mas e o filme, os registros, pensei que fosse importante.”
            “As coisas apontam para um outro rumo, agora. E depois...” Ela parou, me olhou fundo com aqueles olhos castanhos e lindos, e disse:
“Vou lhe ser sincera, Mário. No fundo eu não tinha muito interesse nesse projeto do Marcos. Me lancei a mais esta aventura por insistência dele.O que fiz até hoje não foi por decisão minha, mas por imposição dele ou então para agradá-lo. Mas, sabe, tudo isso aqui me fez olhar o mundo com outros olhos. A Amazônia me tornou livre das amarras de Marcos. Me fez tomar uma decisão muito séria, é.”
“E que decisão é essa...? Me ajeitei todo contente pra ouvir.
“Estou me separando dele.” Aquilo foi como um tapa legal. Me cheguei mais perto dela. As estrelas pinicavam no céu. Me passou uma idéia na cabeça. Uma possibilidade de ficarmos juntos. Eu arriscaria. Tomaria jeito na minha vida. Sim, por aquela mulher eu tomaria vergonha na cara. Estava decidindo meus sentimentos.
“Então estão se separando?”
“Isso mesmo que ouviu. Não retornarei mais para São Paulo. Passarei a viver aqui, nessa Ilha. Farei meu próprio filme. Montarei minha produtora independente.” Meu coração bateu forte vendo-a falar daquele jeito, bastante incisiva. É isso ai, garota, é assim que se fala. Minha alma poerenta e amarela dava saltos de alegria por dentro. Tomei coragem e envolvi uma de suas mãos, dizendo:
“Preciso também lhe dizer uma coisa e é muito sério.” Me olhou curiosa. “É que... bom, desde que lhe vi pela primeira vez, lá no barco, lembra? Cara, eu me apaixonei por você. Senti o que não tinha sentido por mulher alguma. E aquele desatino todo que tivemos no banheiro daquela Bodega, olha, para mim não significou somente sexo, se é que você me entende. Aquilo foi muito forte e eu sinceramente fiquei mais ligado a você, por tanto, deixa eu cuidar de você, viveremos aqui nessa ilha, em Manaus ou em outro raios de lugar, o que você decidir... Pronto, falei, ufa!”
Ficou um instante me olhando. Tocou no meu rosto. Sua mão doce e suave. As estrelas estalando como fogueirinhas no céu. Uma canção romântica dos Comodoros que só eu ouvia tocar dentro da minha cabeça fantasiosa. Então a ouvi dizer:
“Olha, Mário, você é uma pessoa especial, acredite! Mas não é quem eu busco para mim.” Tchummm. Foi como um banho de água fria.
“Ah, então existe outra pessoa, é isso...” Ela me olhava com um sorriso naquele rosto redondo e perversamente lindo e comovente.
“Existe sim, Mário. E descobri que esta pessoa é a pessoa da minha vida. Serei muito feliz e a farei feliz também.” Fiquei imaginando quem poderia ser.
“E quem é esta pessoa, raios?”
“Frederico.”
“Porra, mas quem é Frederico no jogo do bicho?” Ela riu.
“O anão albino!” Quase tive um treco. Ela só podia estar de sacanagem.
“O, o, anão albino? Isso é palhaçada, não é?” Sorriu, me confirmando. “Diz que isso é brincadeira!”
“Não, não é Mário. É a mais pura verdade.”
“Porra, mas o anão albino?”
“O nome dele é Frederico.
“Puta que pariu...”
“Por que puta que pariu?”
“E Marcos já sabe disso?”
“Não escondo nada de Marcos. Tivemos uma conversa muito séria e definitiva esta tarde.”
“Deve estar sofrendo pacas...”
“Talvez, não sei. Mas pela primeira vez eu decido minha vida.”
Passei a mão no rosto e fiquei olhando pro vazio do céu. As fogueirinhas de estrelas se apagando aos pouquinhos. A lua inchada como uma velha com varizes.
“Bom, sendo assim, né? Caraca... eu desejo-lhe sorte e felicidades ao lado do anão albino.”
“Frederico, Mário. O nome dele é Frederico.”
Ficamos ainda ali em silencio. Sem dizer nada um para o outro. Vimos umas índias assanhadas sediando Marcos que já estava bastante bêbado. Uma delas pegou na sua mão e o convidou para dançar. Chegaram mais duas. Cercaram-no e o arrastaram para dentro de um dos barracões. Elas não iam conseguir nada dele. Marcos tinha um pau atrofiado. Um infeliz.
“Espero que Marcos seja muito feliz...” Disse Chelsea olhando toda aquela cena.
“Vai ser duro pra ele ...”
“Talvez não. Veja como está se divertindo com aquelas índias.”
Levantei e voltei para perto dos índios que dançavam e bebiam. Tomei uma cuiada considerada. Depois outra. Eu iria me embriagar pra valer naquela noite de festa na tribo. E foi o que aconteceu...
***
Não sei quanto tempo eu fiquei desacordado sobre o chão daquela aldeia com o sol lambendo o meu cadáver. Pus-me sentado e atordoado olhando em volta. Tudo estava deserto e morto. Busquei forças para levantar, mas cai sentado outra vez. De repente, vi um indiozinho da aldeia correr para mim com uma garrafa. Estava nu e seu bigulinho balançava solto. Parou e me estendeu a garrafa. Lembro que vomitei à beça. Parecia que tudo ia saindo de dentro de mim. Todas as desgraças e frustrações e guerras e derrotas e as tripas do mundo todo iam saindo de dentro de mim em um único e grande vômito heróico. Quando me senti bem, o indiozinho nu ainda estava lá parado, com a garrafa apontada na minha direção e com uma carinha enfezada. Tomei a garrafa das mãoszinhas dele e tomei uma senhora golada daquilo. Desceu bem. O indiozinho sorriu e pegou a garrafa de volta e correu para junto dos outros indiozinhos com seu bigulinho balançando. O sol voltava a arder. Minhas pernas ainda tremiam um pouco quando finalmente fiquei de pé. Firmei a mochila vazia nas costas e sai cambaleando por entre os muitos corpos caídos pelo chão. Era como se eu atravessasse um campo de guerra repleto de mortos e feridos. Entrei nos barracões a procura dos companheiros. Em um deles, encontrei Marcos enroscado em duas índias. Parecia curtir um coma feliz. Sacudi seu corpo, mas ele não acordou de jeito nenhum. As índias ainda se mexeram um pouco. Ronronaram. Desisti e continuei procurando pelos outros. Nenhum sinal deles. Fui caminhando com fúria na direção da barraca do grande tuxaua. Não hesitei em entrar nela. Eu ainda estava de ressaca e nada tinha a perder. Ao atravessar a porta, dei com o cacique (o mesmo que havia me contado sobre os podres do tuxaua) e o seu filho saqueando algumas garrafas do altar. Agiram como se eu não estivesse ali, e continuaram recolhendo as garrafas:
“Que cês tão fazendo?”
“Estamos deixando a aldeia e levando o que é nosso.”
“E onde está o tuxaua?” Ele apontou com desprezo o seu beiço na direção de um corpo estendido no canto do barracão. Era do Tuxaua.
“E se ele acordar?”
“Acorda, não. Ainda vai ficar dormindo por muito tempo.”
“E os outros?”
“Não há mais ninguém na aldeia. Os que sobreviveram foram todos pra cidade celebrar o nascimento do grande sol de mandíbulas. Todo ano é assim.” Olhei e o indiozinho agia rápido armazenando no saco de estopa as garrafas que o pai atirava em sua direção.
“Mas vocês vão levar todas as garrafas do tuxaua?”
“Sim. Por que não pega umas dessas também?” Aquilo me animou um pouco a alma. Eu nunca tinha experimentado um Jack Daniels importado. Peguei umas três garrafas daquela. Olhei bem os seus rótulos. Deviam valer uma nota.
“A propósito, você viu as garotas?”
“Não há mais ninguém na aldeia.”
“E vocês vão pra onde?”
“Vamos pra cidade. Vou vender todas estas garrafas aqui.”
“Vou com vocês!”
Não disse nada. Fui ajudando o filho dele armazenar as garrafas no saco. Parecia uma loucura aquilo. Mas eu só queria dar o fora dali. Daquele vale de lágrimas...