Perto dali. Quatro da
tarde. O vento mudara seu curso. Soprava com mais força. Com mais vontade. Eu
ouvia Summertime enquanto pressionava com avidez o meu copo de cerveja para que
ele não se afastasse de mim. As folhas desprendiam-se das árvores e rodopiavam alegres
no ar. Havia vento e muita poeira. Transeuntes caminhavam com dificuldades pela Getúlio Vargas. O vento os empurrava para trás. Impedia-os de avançar com suas
vidinhas simples. Olhei uma garota. Tinha um belo corpo: quadris, pernocas e
peitinhos perfeitos. Tive a impressão de conhecê-la. Ela caminhava contra o
vento. E como em um filme antigo e em preto e branco, o seu guarda-chuva fora
arrancado de suas mãos, deu quatro ou cinco piruetas no ar e voou para longe
dela. Ela correu atrás, sorrindo. Acompanhava a cena ouvindo Summertime. O
vento maroto parecia brincar com ela. Uma brincadeira maliciosa. Ele levantara a
saia dela. Vi sua calcinha cavada aparecer. Não lembro da cor, mas isto não tem
importância. A pecinha realçava-lhe perfeitamente as nádegas morenas e bem cheias.
A forma. O recheio. É tudo de que me lembro com fuligens nos olhos. A garota levou
a mão á boca. Dava risadas no vento. Senti uma ereção boa, ali, sentado,
tomando minha cerveja e ouvindo Janis Joplin. Um cara comprido, logo atrás,
deixou as sacolas de compras e foi ao seu socorro. Resgatou o guarda-chuva dela.
Abraçaram-se dando risadas. Fui lembrando deles aos poucos. Era o casal da festa
Rave. De uns meses atrás. O mesmo casal da urina e das fezes. Eles seguiram
andando. Dobraram a esqüina da Getúlio e sumiram. O céu escureceu de verdade. Mesas e
cadeiras voaram pra longe. Começaram a
cair pingos grossos de um céu furioso. Resolvi entrar. Me juntei aos outros
caras que bebiam no balcão do Cinco. Pedi outra bebida. Vento e poeira e
Summertime ainda tocando. O nome da garota era Érica. Havia lembrado. E por
alguma razão achei que ainda tivesse o cartão dela na carteira. Dei uma boa
olhada. Necas. O Cinco me serviu uma cerveja e veio com a de sempre:
“Grande Mário Augusto! Agora
diz aí pro Delegado Marcolino, Mário Augusto, o que você acha do cara que dá o rabo.”
“Maravilhoso.” Respondi.
O Cinco caiu na risada. Uns outros bebuns também. Estavam acostumados com a
panacéia. O Delegado Marcolino não disse nada. Mantinha-se ereto e sério
demais. Não que tivesse ficado chateado com o que ouvira. Mas porque aquele era
o seu jeito de ser e de estar sempre ali, postado, naquele balcão. Usava um
chapéu panamenho e sentava-se bem ao centro, como um ditame ou um rei. Ao contrário dos outros, o Delegado Marcolino
bebia um uísque do bom. Um júnior, do outro lado do balcão, mirou na minha
direção:
“Então me responda,
Mário Augusto, qual é o maior escritor vivo da atualidade?” Olhei pra ele antes
de tomar uma golada da minha cerveja. Nunca tinha visto aquele júnior antes:
“Dostoievsky!”
Respondi-lhe.
“Não, esse não vale.
Quero um atual.”
“Este é atual.” Disse.
“Quero um vivo!”
“Não há.”
“Deixem de bobagens. Shakespeare
é o melhor. O mais atual de todos.” Disse o Delegado Marcolino com sua voz de trovão. Não havia como
sair dali. A chuva desabara de vez.
“Aí conhece, não é
doutor?” Disse o Cinco puxando-lhe bem o saco. Era sua especialidade puxar
sacos de juízes e de delegados.
“Ninguém foi mais
profundo na alma humana do que Shakespeare, meus filhos!” Confirmou o Delegado
Marcolino. Tinha um timbre perfeito. A voz profética e altiva de um Nelson
Gonçalves.
“Uhuuu...” Vibrou o júnior
do outro lado. “O que me diz agora hein, Mário Augusto?”
“Não tenho muito saco
pra Shakespeare.” É, eu na verdade não tinha mesmo não. Na faculdade tentaram
me empurrar Shakespeare, mas eu fugia para o Bar do Cabeludo. Lá eu afogava
minhas tragédias em copos de cerveja. Você passa a vida toda com as pessoas
tentando lhe dizer como você deve agir, ler ou ouvir as músicas certas. Eu já estava ficando de saco cheio daquilo.
“Vocês precisam ler
Shakespeare.” Disse o Delegado Marcolino segurando o seu chapéu para que ele
não voasse com o vento. E depois, continuou: “Shakespeare é o melhor. Todos são
capazes de dominar a dor, exceto quem a sente. Está lá em Hamlet. Em Romeu e
Julieta. A escolha da vida e a certeza dos sofrimentos. Leiam Shakespeare, meus
filhos. Brandiu o Delegado com o gogó inflado.
“Ouça o que o delegado
diz, Mário Augusto.” Disse o júnior.
Aí começou um barulho
de vozes. Ninguém mais se entendia. Elas se entrecortavam, misturando-se com o
ruído da chuva brava. Um pé d´água. Como se não bastasse, o júnior veio
sentar-se ao meu lado. Os júniors são uma espécie de meus demônios mirins. E eles
se espalham. São como lepras ou como
alguma enfermidade desse século.
“Você Mário Augusto, se
esgueira como um animal pantaneiro. Quando é que vai mostrar a sua cara?”
“Eu só quero terminar
minha cerveja.”
Com o júnior me enchendo o saco, e o Delegado
Marcolino com sua língua mais solta - tentando convencer á todos que
Shakespeare era o melhor caminho - me vi na obrigação de abandonar o lugar. Dei
as costas para a horda e escapei de mansinho entrando no meu carro que estava
estacionado logo á frente. Dirigi de volta sob a chuva grossa. Os parabrisas
dançavam. Iam e vinham fazendo um ruído patético. A estrada de volta é sempre
mais escura e sinuosa. Eu sobrevivia a ela. Olhei pela janela do carro as ruas
vazias. Os semáforos apagados. Nenhuma puta pelas esquinas. Uma vez em casa,
coloquei um blues melancólico pra tocar, abri as janelas e sentei pra escrever.
Não me veio nada á cabeça. Olhei a solidão do lago, mergulhado no escuro.
Blues, frio, chuva e solidão. Corria um leve e agradável vento. Me senti só. E
não é bom que um homem esteja só. Está lá nas escrituras sagradas. Procurei
pelos meus entulhos, o cartão de Érica. Eu havia guardado em algum lugar. Fiquei
ali procurando. Fui encontrá-lo dentro de um ensaio de Spinosa. Sentei á beira
da cama e olhei o cartão com telefone e endereço. Imaginei Érica. O vento
levantando sua saia. O seu sorriso. Sua genitália beiruda. Vermelha e beiruda.
Minha língua deslizando ali. Mordiscando-lhe a pelezinha suave e macia, como
tinha que ser. Ah, como eu precisava meter minha trolha ali. Quem sabe eu não
teria uma chance com Érica. Iria dar um tempo com as putas. Necessitava de uma
aventura nova. De um maldito afeto para seguir enganando a mim mesmo. Guardei o
cartão na carteira. Fui ao banheiro lavar meu rosto. Lá estava eu outra vez de
frente ao espelho. Olhava minha velhice corrosiva. Minha vida ao avesso. Olhos
cerrados a remoer a solidão como ela deve ser necessariamente remoída. Olhar-se
no espelho é sempre uma boa maneira de resumir-se. Segui me olhando. Este
outro sem rumo e do avesso ancorado dentro de mim. Depois voltei para a sala,
tomei o trago que restava do vinho na garrafa, e tentei voltar a escrever...