O BOI
- não existe algo mais
deprimente e desesperador que os cinco olhando ao mesmo tempo para aquele boi -
E havia também as marcas de sangue no canto da cela e um sentimento de dor e
abandono de arrebentar o coração que eu só viria experimentar outra vez naquele
setembro de 2009 no dia em que antecedeu o velório de minha mãe abduzida quando
me aproximei trêmulo e casto para olhar o seu corpo sobre a pedra fria do
necrotério e ela era um saco de pele e ossos e aqueles homens horríveis não
tiveram o mínimo cuidado de arriar o seu corpo sobre aquela pedra fria e naquele
momento então eu senti muita raiva e uma solidão franca e particular e um frio
enregelando meus ossos e por isso fui para fora e uivei para a chuva que caía
assombrada e formidável e eu ainda não havia estabelecido plano algum de futuro
e chorei desesperado frente a uma sapataria ouvindo Morris Albert – E puta que
pariu a gente ali muito triste e com fome porque ao lá chegar, a delegada de
plantão não deu a mínima importância ao que alegamos em nossa defesa e por isso
preferiu acreditar na versão do diretor e do pedagogo que juntos tramaram
direitinho para piorar ainda mais a nossa situação - Eles usaram a marca de
chupão no pescoço da professorinha como álibi (e vocês lembram bem lá atrás que
o Boca apenas beijou o rosto da professorinha - e nem lembrávamos desse
episódio mais) na verdade, não houve chupão algum, o Boca apenas havia beijado
de leve o rosto da professorinha em agradecimento pelos cinco reais que ela
havia depositado no saco, e foi isso apenas, eu juro, “E qual desses senhores
foi o responsável, professora?” Pergunta a delegada de plantão e agora
professora apontando vacilona na direção do Boca e nos dizendo, “Foi o cabeludo
ali, doutora!” (Ah, mas é claro, o cabeludo) - E quando ela afirma isto desvia
seus olhos claro-trêmulos de vergonha porque estava na cara que aquela
professorinha foi obrigada a mentir; a marca foi forjada porque vimos quando o
Boca beijou de leve o rosto dela e com carinho, só que havia aquela marca
inventada que era para complicar a nossa vida e Ecumênicus e todos nós nos
desdobramos para fazer valer a nossa inocência e que só queríamos divulgar uma
revista, mas de nada adiantou o uso de nosso logos argumentativo, pois que nos
fora lavrado o flagrante de PERTURBAÇÃO DA ORDEM PÚBLICA - e assim fomos
confinados em uma cela nos fundos daquela delegacia após assinarmos os
documentos de praxe e o carcereiro nos conduzindo agora a esta cela e ordenando
que tirássemos a roupa e que o violão, o microfone e a caixa com a nossa causa
dentro, ficariam para a averiguação – E eu conhecia bem aquele carcereiro
porque eu já o tinha visto brincar com sua dentadura enquanto drenava sua
cerveja no Bar do Cinco Trevo e nunca fui com
a cara daquele animal mesmo – Ele ficava só ali manipulando sua prótese
nojenta e bebendo sozinho no balcão do Cinco sem dizer nada a ninguém - Um
sujeito frio com cara de poucos amigos, era) uma cara mesmo de carcereiro e eu
tenho intuição pra coisa e no dia em que eu me aproximei dele e pedi-lhe um
cigarro seu ele me atirou o maço na cara sem me olhar nos olhos e isso não se
faz, chapa - Sujeito
grosseirão – pensei em Agency FB – Só que não podia
imaginar que pudesse reencontrar aquele sujeito na delegacia fechando a cela em
nossas caras e nos provocando com sua prótese fantástica que deslocava-se
dentro de seu buraco negro-chupado que era sua horrível boca - E ACHO QUE RETOMEI A PARADA, APOSTEM NISSO – e a porta da cela sendo fechada duramente e agora ali os cinco, só de
cuecas, menos Ecumênicus porque não usava cuecas, “Tu não usa cuecas, porra?” E
haviam manchas de sangue grosso e vivo salpicados ao redor da cela porque na
verdade haviam arrancado as unhas de um moleque e depois o espancaram até a
morte para ele nunca mais roubar bicicletas no Vieira Alves – e quem nos contou
isso com frieza foi o Betânia que leu em um jornal semana passada e eu estou vendo mesmo marcas de sangue
nesta cela E as marcas ainda estão grossas e vivas e há algumas manchas
salpicadas ao redor do boi - este infeliz deve ter passado uns maus bocados
aqui dentro antes de morrer, eu reflito
– e “porra, quem peidou, caralho? Tudo isso é medo? Eu vou é cagar nesse
boi!” Nos diz o Boca à revelia e “por favor vamos ao menos respeitar o cara que morreu aqui dentro espancado e
suas unhas foram arrancadas” - Tento lhes dizer de alguma maneira enquanto olho
o boi que me causa um tédio espetacular e ficamos ali, mais ou menos –
deixem-me ver RETICÊNCIAS umas duas
horas olhando um para o outro e o boi
como se fosse uma piada de muito mal gosto tanto que o carcereiro reapareceu outra vez acompanhado de uma outra
delegada de estatura baixa, cabelos curtos e fisionomia carrancuda e ela
caminha até nós taludinha trazendo um
dos exemplares da revista na mão e pelamor o que nos espera agora quando ela nos diz, “Então são vocês os responsáveis por essa revista?”
1. Enfiar vibradores no cu de
lésbicas?
2. Queimar igrejas?
3. Enrabar juízes?
Mas que porra é essa? Quem
escreveu esse troço? Quem é o Maizena de vocês?
O que na terra
vocês estão tentando fazer?
GAROTO: <Mas é apenas um texto, senhora!>
DELEGADA: <Calado, seu
negro! Mas três horas pra esses vândalos aí na cela! E Coloca aí, mas três
acusações: Incitação ao álcool, literatura obscena e desacato a autoridade!>
E pois bem, lá se vai ela
com o carcereiro logo atrás manipulando a porra de sua dentadura e voltamos
todos a sentar e você aí do outro lado desse monitor respire fundo e não
desista nunca, é que a delegadazinha tinha encontrado todos aqueles dizeres no
Cachaça Estragada que um dos nossos amigos, o próprio Maizena havia escrito pra
revista e eu dei um jeito de publicar fazendo com que no inferno das palavras
elas criassem por si só uma sonoridade balística sem machucar ou serem
machucadas, tipo, que atropelassem sem ferir o próximo, saca? (eu e o meu
pântano de delicadezas e o respeito ao próximo) só que ela foi abrir logo
naquela página logo naquela página logo naquela página ABSURDA que ninguém
compreende a poética do Maisena e seu
dilúvio de palavras jorrando como em rebelião como só agora experimento
– E por onde anda o Maizena mesmo eu me pergunto agora, e sabe, sentado aqui
agora ouvindovou acidentalmente Morris Albert, e estou curtindo pacas minha
temporada doce neste inferno que criei para mim ao lado de minha esposa e do
meu cachorro – uma espécie de trégua que faço com os meus pequenos demônios
estrategistas e a alma de um escritor é pura e cheia de revelações interiores
num plano mui específico e sonoro – portanto vou comprar saltitante mais cervejas
e fazer amizade com o taberneiro da esquina para ver se ele me fia mais algumas
dessas garrafas gigantes, mas bêbado é bêbado, portanto, vou logo adiantando o
que o taberneiro me disse:
TABERNEIRO: “O senhor me
deve ainda dois cascos, seu Mário?”
MÁRIO: “DOIS CASCOS? COMO
ASSIM DEVO DOIS CASCOS?
- somos mesmo possuídos de
algum modo pelas palavras e pronto! - CEBOLAS IÔNICAS – Daqui eu controlo o cão
e ele me controla, algo do tipo telepático mesmo a relação do homem com o seu
cão – aprendo observando a alma do Horácio e os cães, assim como os gatos, são
correspondentes de Deus aqui na terra – e é tão bom quando escrevo imerso em
oceanos de lágrimas que outro dia ah, deixa pra lá, você vai achar que estou
ficando louco ou que estou enrolando você, mas naquela noite quando abri as
janelas do quarto e me deparei com aquele enorme e belo pavão no quintal de
casa eu me ajoelhei e chorei, e tudo se inicia com a visita esperada do Mosca
que me trouxe algumas mudas de maconha para plantar em meu quintal e depois de
fumarmos unzinho na varanda de casa ele me alertou: “vai devagar que isso
provoca visões, e nunca, nunca, velho, nunca idolatres o que tu vês,” - cara
louco o Mosca, e foi nessa madrugada que ainda chapado, acordei com os latidos
estranhos do Horácio e fui abrir a janela do quarto e então eu vi um lindo e
enorme pavão de asas bem abertas e
coloridas e eu me ajoelhei e me debulhei em lágrimas e depois fui acordar
Selminha para lhe falar sobre o pavão, mas ela só rolou para um lado da cama e
me falou com indiferença que lá no interior onde morava, ela criava uns
pavõezinhos que não vingaram e voltou a dormir e o pavão esse tempo todo
escutando do quintal, parado, imponente e todas essas incontáveis manifestações
de nossa mente-pulsante e os meus camaradas de cela percebem que estive muito
longe perdido em pensamentos, por isso um deles reclama:
GAROTO: <Porra, ela me chamou de negro!>
BOCA: <E daí?>
GAROTO: <Eu sou branco,
caralho!>
BETÂNIA OLHANDO MUITO
PREOCUPADO PARA ECUMÊNICUS: <Como a gente vai sair daqui?> Ora, como se o
próprio Ecumênicus tivesse uma resposta.
ECUMÊNICUS: <Essa delegada é
doida!>
MÁRIO:
<Tu não conhece nenhum advogado do partido?>
ECUMÊNICUS: <Só se for o
Sabazinho.>
BOCA: <O caralho
que for, não quero passar o dia inteiro aqui não, sem o meu violão por
perto.>
(ECUMÊNICUS CHACOALHANDO A
CELA E CHAMANDO PELO CARCEREIRO)
CARCEREIRO: Qual que é agora?
ECUMÊNICUS: <A gente quer telefonar pro nosso
advogado!>
CARCEREIRO: <Dá não
mermão! Esperem o delegado chegar pra ouvir vocês. Não posso liberar
não!>
ECUMÊNICUS: <Mas temos o
direito de um telefonema!>
CARCEREIRO: <Aqui é pianinho,
senão ferra de vez pra vocês!>
- E lá se vai ele mascando
outra vez aquela sua prótese imunda e voltamos pro fundo da nossa cela e do
nosso tédio com o desespero começando a aumentar – E nos desligamos desta cena
agora e nos transportemos a uma outra cena em que estamos todos em pé,
parados e com fome na presença do novo
plantonista e e então começam para valer as sessões de tortura, tipo, uma
espécie de tortura psicológica e eu vou lhes dizer que o nosso algoz é mais ou
menos jovem, cabelos compridos e presos para trás, um tipo de plantonista bem
moderninho que pareceu ter saído das páginas noir de Raymond Chandler <vão transformar isto em assassinato se esse
aí morrer, entendeu?> Um cara mais ou menos jovial, cabelos compridos e
presos que brilhavam e ele parecia dialogável e a nossa revista estava aberta
(não sei em que página sobre a mesa dele> e portanto, assim que entramos em
sua sala ele parou de lê-la e olhou
sério para nós:
DELEGADO: Olha, eu sei bem
como são as coisas - Eu passei por essa febre quando eu tinha a idade de vocês
- Eu também fui poeta - Achava que podia mudar o mundo, as pessoas - Me metia
em passeatas, em greves - Fui do sindicato – Só que aí um dia a fome aperta,
saca, e ai a gente entende que não dá pra viver a vida toda de poesia e de papo
pro ar, tentando mudar o mundo! Tomei vergonha na cara e fui arranjar um
trabalho - Fiz um concurso, passei pra direito, casei e hoje sou o que sou –
Então eu lhes digo que esse papo de ideologia não cola - Foi bom nos anos
sessenta, mas toda aquela revolução foi utopia - Muita gente se ferrou - Mudou
alguma coisa? O que vocês pretendem alcançar afinal?>
ECUMÊNICUS: <A gente só
queria dar um telefonema para o nosso advogado, doutor.>
DELEGADO: <Ah, um
advogado! (UM CLOSE NO DELEGADO COÇANDO A BARBA QUE BRILHAVA) Vocês são todos
universitários?>
ECUMÊNICUS: <Sim, somos!>
DELEGADO: <Mas poderiam
estar fazendo outra coisa, gente. Querem um café?>
BOCA: <Com um pãozinho na
manteiga, se não for pedir muito, doutor, é que a gente tá brocado!>
O Delegado levantou-se um
instante e a sala ficou vazia e a gente mesmo não acreditava que pudesse estar
vivendo uma cena típica de realismo fantástico que provocaria RISINHOS em Kafka
- E como se não bastasse havia aquele enorme óleo sobre tela de muito mau gosto
dependurado na parede bem logo atrás das costas do delegado moralista (E QUEM
PODERIA TER SIDO ESSE FILHA DA PUTA QUE PINTOU UM QUADRO DESSES DE MUITO MAU
GOSTO> Um quadro enorme e horrível retratando a paisagem amazônica e
Ecumênicus se aproxima dele agora e o arranca dali, virando-o de cabeça para
baixo, “E o que esse cara está fazendo, porra? Ele quer complicar ainda mais a
nossa situação?” Nos pergunta o Betânia.
ECUMÊNICUS: <Ele nem vai
notar, esse filha da puta!>
BETÂNIA: <Faz isso não,
porra, pode comprometer a gente! Fala pra ele não fazer isso, Mário, pelo amor
de Deus!>
MARIO: <Deixa o cara! Ficou
até melhor assim.>
E de fato ficara - Uma Amazônia
de cabeça pra baixo....
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