sábado, 25 de maio de 2013

CENA CATORZE



O BOI
- não existe algo mais deprimente e desesperador que os cinco olhando ao mesmo tempo para aquele boi - E havia também as marcas de sangue no canto da cela e um sentimento de dor e abandono de arrebentar o coração que eu só viria experimentar outra vez naquele setembro de 2009 no dia em que antecedeu o velório de minha mãe abduzida quando me aproximei trêmulo e casto para olhar o seu corpo sobre a pedra fria do necrotério e ela era um saco de pele e ossos e aqueles homens horríveis não tiveram o mínimo cuidado de arriar o seu corpo sobre aquela pedra fria e naquele momento então eu senti muita raiva e uma solidão franca e particular e um frio enregelando meus ossos e por isso fui para fora e uivei para a chuva que caía assombrada e formidável e eu ainda não havia estabelecido plano algum de futuro e chorei desesperado frente a uma sapataria ouvindo Morris Albert – E puta que pariu a gente ali muito triste e com fome porque ao lá chegar, a delegada de plantão não deu a mínima importância ao que alegamos em nossa defesa e por isso preferiu acreditar na versão do diretor e do pedagogo que juntos tramaram direitinho para piorar ainda mais a nossa situação - Eles usaram a marca de chupão no pescoço da professorinha como álibi (e vocês lembram bem lá atrás que o Boca apenas beijou o rosto da professorinha - e nem lembrávamos desse episódio mais) na verdade, não houve chupão algum, o Boca apenas havia beijado de leve o rosto da professorinha em agradecimento pelos cinco reais que ela havia depositado no saco, e foi isso apenas, eu juro, “E qual desses senhores foi o responsável, professora?” Pergunta a delegada de plantão e agora professora apontando vacilona na direção do Boca e nos dizendo, “Foi o cabeludo ali, doutora!” (Ah, mas é claro, o cabeludo) - E quando ela afirma isto desvia seus olhos claro-trêmulos de vergonha porque estava na cara que aquela professorinha foi obrigada a mentir; a marca foi forjada porque vimos quando o Boca beijou de leve o rosto dela e com carinho, só que havia aquela marca inventada que era para complicar a nossa vida e Ecumênicus e todos nós nos desdobramos para fazer valer a nossa inocência e que só queríamos divulgar uma revista, mas de nada adiantou o uso de nosso logos argumentativo, pois que nos fora lavrado o flagrante de PERTURBAÇÃO DA ORDEM PÚBLICA - e assim fomos confinados em uma cela nos fundos daquela delegacia após assinarmos os documentos de praxe e o carcereiro nos conduzindo agora a esta cela e ordenando que tirássemos a roupa e que o violão, o microfone e a caixa com a nossa causa dentro, ficariam para a averiguação – E eu conhecia bem aquele carcereiro porque eu já o tinha visto brincar com sua dentadura enquanto drenava sua cerveja no Bar do Cinco Trevo e nunca fui com  a cara daquele animal mesmo – Ele ficava só ali manipulando sua prótese nojenta e bebendo sozinho no balcão do Cinco sem dizer nada a ninguém - Um sujeito frio com cara de poucos amigos, era) uma cara mesmo de carcereiro e eu tenho intuição pra coisa e no dia em que eu me aproximei dele e pedi-lhe um cigarro seu ele me atirou o maço na cara sem me olhar nos olhos e isso não se faz, chapa - Sujeito grosseirão – pensei em Agency FB – Só que não podia imaginar que pudesse reencontrar aquele sujeito na delegacia fechando a cela em nossas caras e nos provocando com sua prótese fantástica que deslocava-se dentro de seu buraco negro-chupado que era sua horrível boca - E ACHO QUE RETOMEI A PARADA, APOSTEM NISSO – e a porta da cela sendo fechada duramente e agora ali os cinco, só de cuecas, menos Ecumênicus porque não usava cuecas, “Tu não usa cuecas, porra?” E haviam manchas de sangue grosso e vivo salpicados ao redor da cela porque na verdade haviam arrancado as unhas de um moleque e depois o espancaram até a morte para ele nunca mais roubar bicicletas no Vieira Alves – e quem nos contou isso com frieza foi o Betânia que leu em um jornal semana passada e eu estou vendo mesmo marcas de sangue nesta cela E as marcas ainda estão grossas e vivas e há algumas manchas salpicadas ao redor do boi - este infeliz deve ter passado uns maus bocados aqui dentro antes de morrer, eu reflitoe “porra, quem peidou, caralho? Tudo isso é medo? Eu vou é cagar nesse boi!” Nos diz o Boca à revelia e “por favor vamos ao menos respeitar  o cara que morreu aqui dentro espancado e suas unhas foram arrancadas” - Tento lhes dizer de alguma maneira enquanto olho o boi que me causa um tédio espetacular e ficamos ali, mais ou menos – deixem-me ver  RETICÊNCIAS umas duas horas olhando um para o outro  e o boi como se fosse uma piada de muito mal gosto tanto que o carcereiro reapareceu outra vez acompanhado de uma outra delegada de estatura baixa, cabelos curtos  e fisionomia carrancuda e ela caminha até nós  taludinha trazendo um dos exemplares da revista na mão e pelamor o que nos espera agora quando ela nos diz, “Então são vocês os responsáveis por essa revista?”
              1. Enfiar vibradores no cu de lésbicas?
              2. Queimar igrejas?                  
             3. Enrabar juízes?
             Mas que porra é essa? Quem escreveu esse troço? Quem é o Maizena de vocês?
O que na terra vocês estão tentando fazer?

GAROTO: <Mas é apenas um texto, senhora!>
DELEGADA: <Calado, seu negro! Mas três horas pra esses vândalos aí na cela! E Coloca aí, mas três acusações: Incitação ao álcool, literatura obscena e desacato a autoridade!>
E pois bem, lá se vai ela com o carcereiro logo atrás manipulando a porra de sua dentadura e voltamos todos a sentar e você aí do outro lado desse monitor respire fundo e não desista nunca, é que a delegadazinha tinha encontrado todos aqueles dizeres no Cachaça Estragada que um dos nossos amigos, o próprio Maizena havia escrito pra revista e eu dei um jeito de publicar fazendo com que no inferno das palavras elas criassem por si só uma sonoridade balística sem machucar ou serem machucadas, tipo, que atropelassem sem ferir o próximo, saca? (eu e o meu pântano de delicadezas e o respeito ao próximo) só que ela foi abrir logo naquela página logo naquela página logo naquela página ABSURDA que ninguém compreende a poética do Maisena e seu  dilúvio de palavras jorrando como em rebelião como só agora experimento – E por onde anda o Maizena mesmo eu me pergunto agora, e sabe, sentado aqui agora ouvindovou acidentalmente Morris Albert, e estou curtindo pacas minha temporada doce neste inferno que criei para mim ao lado de minha esposa e do meu cachorro – uma espécie de trégua que faço com os meus pequenos demônios estrategistas e a alma de um escritor é pura e cheia de revelações interiores num plano mui específico e sonoro – portanto vou comprar saltitante mais cervejas e fazer amizade com o taberneiro da esquina para ver se ele me fia mais algumas dessas garrafas gigantes, mas bêbado é bêbado, portanto, vou logo adiantando o que o taberneiro me disse:
TABERNEIRO: “O senhor me deve ainda dois cascos, seu Mário?”
MÁRIO: “DOIS CASCOS? COMO ASSIM DEVO DOIS CASCOS?
- somos mesmo possuídos de algum modo pelas palavras e pronto! - CEBOLAS IÔNICAS – Daqui eu controlo o cão e ele me controla, algo do tipo telepático mesmo a relação do homem com o seu cão – aprendo observando a alma do Horácio e os cães, assim como os gatos, são correspondentes de Deus aqui na terra – e é tão bom quando escrevo imerso em oceanos de lágrimas que outro dia ah, deixa pra lá, você vai achar que estou ficando louco ou que estou enrolando você, mas naquela noite quando abri as janelas do quarto e me deparei com aquele enorme e belo pavão no quintal de casa eu me ajoelhei e chorei, e tudo se inicia com a visita esperada do Mosca que me trouxe algumas mudas de maconha para plantar em meu quintal e depois de fumarmos unzinho na varanda de casa ele me alertou: “vai devagar que isso provoca visões, e nunca, nunca, velho, nunca idolatres o que tu vês,” - cara louco o Mosca, e foi nessa madrugada que ainda chapado, acordei com os latidos estranhos do Horácio e fui abrir a janela do quarto e então eu vi um lindo e enorme  pavão de asas bem abertas e coloridas e eu me ajoelhei e me debulhei em lágrimas e depois fui acordar Selminha para lhe falar sobre o pavão, mas ela só rolou para um lado da cama e me falou com indiferença que lá no interior onde morava, ela criava uns pavõezinhos que não vingaram e voltou a dormir e o pavão esse tempo todo escutando do quintal, parado, imponente e todas essas incontáveis manifestações de nossa mente-pulsante e os meus camaradas de cela percebem que estive muito longe perdido em pensamentos, por isso um deles reclama:  
GAROTO:  <Porra, ela me chamou de negro!>
BOCA: <E daí?>
GAROTO: <Eu sou branco, caralho!>
BETÂNIA OLHANDO MUITO PREOCUPADO PARA ECUMÊNICUS: <Como a gente vai sair daqui?> Ora, como se o próprio Ecumênicus tivesse uma resposta.
ECUMÊNICUS: <Essa delegada é doida!>
 MÁRIO:  <Tu não conhece nenhum advogado do partido?>
ECUMÊNICUS: <Só se for o Sabazinho.>
BOCA: <O  caralho que for, não quero passar o dia inteiro aqui não, sem o meu violão por perto.>
(ECUMÊNICUS CHACOALHANDO A CELA E CHAMANDO PELO CARCEREIRO)
CARCEREIRO: Qual que é agora?
ECUMÊNICUS:  <A gente quer telefonar pro nosso advogado!>
CARCEREIRO: <Dá não mermão! Esperem o delegado chegar pra ouvir vocês. Não posso liberar não!> 
ECUMÊNICUS: <Mas temos o direito de um telefonema!>
CARCEREIRO: <Aqui é pianinho, senão ferra de vez pra vocês!>
- E lá se vai ele mascando outra vez aquela sua prótese imunda e voltamos pro fundo da nossa cela e do nosso tédio com o desespero começando a aumentar – E nos desligamos desta cena agora e nos transportemos a uma outra cena em que estamos todos em pé, parados  e com fome na presença do novo plantonista e e então começam para valer as sessões de tortura, tipo, uma espécie de tortura psicológica e eu vou lhes dizer que o nosso algoz é mais ou menos jovem, cabelos compridos e presos para trás, um tipo de plantonista bem moderninho que pareceu ter saído das páginas noir de Raymond Chandler <vão transformar isto em assassinato se esse aí morrer, entendeu?> Um cara mais ou menos jovial, cabelos compridos e presos que brilhavam e ele parecia dialogável e a nossa revista estava aberta (não sei em que página sobre a mesa dele> e portanto, assim que entramos em sua sala  ele parou de lê-la e olhou sério para nós:
DELEGADO: Olha, eu sei bem como são as coisas - Eu passei por essa febre quando eu tinha a idade de vocês - Eu também fui poeta - Achava que podia mudar o mundo, as pessoas - Me metia em passeatas, em greves - Fui do sindicato – Só que aí um dia a fome aperta, saca, e ai a gente entende que não dá pra viver a vida toda de poesia e de papo pro ar, tentando mudar o mundo! Tomei vergonha na cara e fui arranjar um trabalho - Fiz um concurso, passei pra direito, casei e hoje sou o que sou – Então eu lhes digo que esse papo de ideologia não cola - Foi bom nos anos sessenta, mas toda aquela revolução foi utopia - Muita gente se ferrou - Mudou alguma coisa? O que vocês pretendem alcançar afinal?>
ECUMÊNICUS: <A gente só queria dar um telefonema para o nosso advogado, doutor.>
DELEGADO: <Ah, um advogado! (UM CLOSE NO DELEGADO COÇANDO A BARBA QUE BRILHAVA) Vocês são todos universitários?>
ECUMÊNICUS: <Sim, somos!>
DELEGADO: <Mas poderiam estar fazendo outra coisa, gente. Querem um café?>
BOCA: <Com um pãozinho na manteiga, se não for pedir muito, doutor, é que a gente tá brocado!> 
O Delegado levantou-se um instante e a sala ficou vazia e a gente mesmo não acreditava que pudesse estar vivendo uma cena típica de realismo fantástico que provocaria RISINHOS em Kafka - E como se não bastasse havia aquele enorme óleo sobre tela de muito mau gosto dependurado na parede bem logo atrás das costas do delegado moralista (E QUEM PODERIA TER SIDO ESSE FILHA DA PUTA QUE PINTOU UM QUADRO DESSES DE MUITO MAU GOSTO> Um quadro enorme e horrível retratando a paisagem amazônica e Ecumênicus se aproxima dele agora e o arranca dali, virando-o de cabeça para baixo, “E o que esse cara está fazendo, porra? Ele quer complicar ainda mais a nossa situação?” Nos pergunta o Betânia.
ECUMÊNICUS: <Ele nem vai notar, esse filha da puta!>
BETÂNIA: <Faz isso não, porra, pode comprometer a gente! Fala pra ele não fazer isso, Mário, pelo amor de Deus!>
MARIO: <Deixa o cara! Ficou até melhor assim.>
E de fato ficara - Uma Amazônia de cabeça pra baixo....

Nenhum comentário:

Postar um comentário