sábado, 23 de fevereiro de 2013

O ANÃO DO AÇOUGUE, O HOMEM COM A ABERTURA NA TESTA E O DESENTUPIDOR DE FOSSAS: MÁRCIO SANTANA E A NEGAÇÃO DA TRAGICOMÉDIA ABSURDA DE MANAUS!





Por Ribamar Mitoso
 
Não sei o porquê, mas depois da globalização capitalista- neoliberal, a África, a Ásia e a América começaram a tentar saber aquilo que as tornavam África, Ásia e América. Chamei de “desglobalização” esse movimento cultural de reinventar as identidades culturais nestes continentes , para diferenciá-los do One Way , dos Estados Unidos, e do Two Way, da Europa.
Como sabemos que tudo é humano, e que esta é a identidade central que interessa, a nova identidade dos continentes conectou culturas ditas particulares e fez surgir , a partir de cada continente, várias dimensões humanas globais - particulares e universais ao mesmo tempo. O universal se confirmou como o regional de alguém que não apenas vendeu para todo mundo; mas que pelo menos todo mundo foi informado da sua existência. A aldeia global passou de aldeia globalizada para aldeia desglobalizada.
Mas isto vem de longe!
Quando a globalização dos séculos XVII e XVIII colocou portugueses e ameríndios em confrontos étnicos no Amazonas, a épica da luta criou uma épica da literatura.Era um conflito de culturas entre Muras e Portugueses, digamos assim, criando uma consciência épica e uma consciência épica gerando, também digamos assim, uma expressão artística. Se me faço entender: o poema épico Muraihda, do soldado português Henrique João Wilkens, expressou a visão genocida do invasor, do vencedor provisório. E, de fato, o poema era formalmente épico , com métricas camonianas, mesmo que falso,mesmo que genocida.O que é lamentável. De qualquer modo, a literatura amazonense, digamos assim, nasceu como expressão épica!
Este contexto social extrativista, apêndice do capitalismo, ao mesmo tempo que gerou a expressão da épica renascentista, da vitória de ibéricos sobre os povos indígenas, gerou também um romantismo tardio, lírico, expressando um encontro harmônico entre estes dois mundos. O casamento de militares portugueses com mulheres indígenas, especialmente da tradição arawak, era o tema que tentava mascarar e rever a literatura da dominação. Do épico etnocida ao lirismo melancólico e envergonhado.
De igual modo, em uma simetria histórica, quando a globalização do século XIX exigiu nosso látex para servir de matéria – prima da indústria da vulcanização, o regime dos seringais gerou o conflito de classes. Se portugueses e indígenas geraram um ambiente épico, de epopéia, latifundiários e camponeses em conflito geraram um clima de tragédia . Este ambiente trágico gerou uma consciência trágica. Esta consciência trágica gerou uma expressão artístico- literária igualmente trágica e o ambiente mental para os estilos naturalista e realista. Na sequência da tradição épica e lírica , emerge a literatura trágica.
Todas as tendências modernistas do século XX, com um legado estético e cultural marcante, também moveram-se no contexto sócio-econômico do extrativismo.
A globalização industrial , apelidada de modelo Zona Franca, transferiu essa tragédia social da área rural para a cidade. O realismo também se transferiu. Não mais como expressão do trágico, mas agora como expressão do absurdo social e do absurdo como expressão artística. A estrutura social gerando sua estrutura textual. No rastro das literaturas épicas, líricas e trágicas, emerge a literatura cômica.
Com a industrialização, Manaus passou a ser uma cidade absurda. Um dos maiores Produtos Internos Brutos e um dos menores Índices de Desenvolvimento Humano. Um parque industrial High Tech, cercado por 16 comunidades indígenas e centenas de favela. O maior rio de água doce do mundo e a cidade com um dos piores abastecimentos de água potável. A cidade com maior número de igarapés e todos, tirando o Água Branca, no Tarumã,todos poluídos. Igarapés à disposição e um trânsito insuportável. Manaus é sim uma cidade absurda. Aliás, é a expressão do absurdo. Daí que qualquer outra percepção estética ou qualquer outra expressão estética que não seja a perplexidade do absurdo será absurda, absurdamente deslocada ou desfocada.
No rastro literário desta tradição, surge uma literatura do realismo cômico - fantastico e absurdo.
Surge do submundo do cotidiano dos trabalhadores e do lupen(z)sinato urbano.
Márcio Santana , que teve o azar de ser meu aluno no curso de letras da UFAM, é um dos escritores que emerge neste contexto social e estético.
Márcio emerge como um escritor que escreve, edita e vende seus contos e poemas. Mais: emerge como um dos organizadortes da revista Sirrose, que garantiu a expressão de todos aqueles que não confundem livro com literatura. Márcio Santana é um transgressor.
O Anão do Açougue, O Homem Com a Abertura na Testa e O Desintupidor de Fossas são três de seus fanzines que li junto com ele, no reduto dos transgressores, em Manaus.
São contos e expressões da literatura urbana cômico - realista - fantástica - absurda do Amazonas.
O Anão do Açougue é exemplar. Um trabalhador vivendo uma desdita amorosa conhece um anão e passa a ter com ele , inicialmente, uma grande relação de amizade, digamos assim. Depois, devido a potente ejaculação do anão quando se masturbava , e devido, também, o interesse comercial de um dono de putero nesta qualidade do anão, o trabalhador-narrador, " fodido e explorado" , como ele mesmo se define, passa a ver o anão com outros olhos.
Uma situação ao mesmo tempo realista, cômica,absurda, mas que, pela aparente irrealidade, torna-se , também, fantástica. Real e irreal coeexistindo para gerar uma nova realidade.
Mas engana-se quem não acredita na verossimilhança da trama.
O trabalhador-narrador-observador , narrando em terceira pessoa , não tira o cu da seringa: Ele é parte da trama , ele também frequenta o submundo, como personagem secundária , é verdade, porém decisiva para que o enredo se estabeleça.
E o trabalhador-narrador é sofisticado. Ele para a narrativa e dialoga com o leitor, questiona sua descrença no fato e o ironiza: " Você não acredita não é, leitor? Mas eu estava lá e presenciei tudo".
Dou gargalhadas com este conto. E não é fácil fazer o leitor rir.
Márcio Santana, porém, é muito melhor que seu crítico, que seu professor e melhor ainda que esta breve e sentimental apreciação crítica da obra. Nele , forma , conteúdo e vida estão conectados, encaixados. Ele é a própria obra.
Quem desejar conhecer a literatura deste meu brilhante aluno, pode acessar seu site, que diz tudo: Epístolas do Inferno, embora ele tenha rompido com a tradição do infernismo lamurioso.


Ribamar Mitoso é Escritor,Dramaturgo,Professor da Universidade Federal do Amazonas, Pós-Graduado em Projetos Culturais (FGV), Especialista em Estética e Filosofia da Arte (USP) e Mestre MSC em Literatura Amazônica ( UFAM ). Como dramaturgo ganhou seis prêmios nacionais FUNARTE – MINISTÉRIO DA CULTURA DE TEATRO e é autor de cinco peças do teatro do indígena na cidade e no presente.São elas: Poronominari ( prêmio FUNART- centenário do Teatro Amazonas -1996 e Prêmio FUNART-MINC de Circulação -2005) , A Saga Munduruku ( Prêmio FUNART- MINC de circulação 2007), As Filhas de Yepá (2006), Furo de Olho (2006), além da parceria, como roteirista e diretor, artístico da peça A Casa dos Cinco Tempos, do Kumu Séribhi, Gabriel Gentil, sobre a história do povo Dasxé do alto Rio Negro. Como escritor, escreveu os livros de contos Contos Vagabundos (1990), Povo de Manaus , o camelô (1991) e o inédito Manaus INC. - Contos Amazônicos na Desglobalização. Escreveu ainda três livros de ensaios sobre o movimento artístico-cultural no Amazonas.
 

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