Meu
velho amigo Lima, este ano completa 90 anos da tua morte. Por essa razão, lhe
escrevo. Tu foste sem dúvida - em minha franca opinião - um dos maiores, senão
o melhor escritor maldito de todos os tempos! Pode até soar algum pedantismo ou
exagero meu, mas reintero o que digo revisitando com mais apuro o teu memorável
e impactante, “Cemitério dos Vivos.” Esta tua obra, especificamente, é de uma
profundidade humana sem precedentes. Só
outro livro causou-me similar impressão e aqui me refiro à Recordações
da Casa dos Mortos, do nosso ilustre Dostoievski. Ambas tratam da natureza
humana com realismo e intensidade assombrosa.
O
Cemitério dos Vivos é um livro de tuas memórias escrito quando tu estiveste por
inúmeras vezes internado em casas de saúde mental, naqueles amargos anos de
1919 a 1920, no Rio de Janeiro, em decorrência de tuas fortes crises nervosas movidas
por teu alcoolismo crônico e desenfreado. Ainda sim, foste implacável ao descrever tua experiência
com os loucos, já denunciando naquela época, as mazelas, as injustiças sociais,
os maus tratos, o preconceito e a falta de uma política humanizadora para com
essas instituições de saúde. De características assumidamente realistas, O
Cemitério dos Vivos – como todas as tuas outras grandes obras, é também
cimentado em tuas claras convicções cientificistas e deterministas, no que diz
respeito às ações de teus personagens, sendo eles, meros produtos do meio, das
leis naturais, do momento histórico, da hereditariedade e de tudo o mais que
podia ser cientificamente comprovado. Em
suma: o homem condicionado pelo meio ambiente e pelo estigma hereditário que se
renovam sem parar no ciclo morte-vida; Eros e Tanatos. Embora alguns críticos
literários, ainda teimem apontar a tua obra como um autobiografismo efetivo –
devido, é claro, a tua obsessão constante pela investigação do preconceito
racial, onde tornastes o protagonizador de tua própria tragédia humana, ainda
assim, teus escritos são necessários para compreendermos melhor as válvulas
comportamentais do pensamento moderno, e assim revisitarmos e atualizarmos alguns
conceitos à luz de Taine.
Não
obstante, tu és um investigador da alma humana. O Cemitério dos Vivos é rico em
detalhes e de extremo realismo. É interessante ainda observar como os teus escritos
há tanto tempo realizados pode ainda conter tantas semelhanças com a
atualidade. Cabe aqui observamos também a tua genialidade, que mesmo tendo
vivido em século tão distante do meu, pudesse compor um cenário que
ultrapassasse a barreira do tempo, tornando-se um escritor necessário e atual.
Não
foi o álcool que te matou, meu velho, mas a indiferença, a estupidez, e a incompreensão
imensurável das pessoas para com a tua literatura. Eu sei como são essas coisas!
Deleito-me agora com estas tuas linhas:
(...) Voltei para o pátio. Que coisa,
meu Deus! Estava ali que nem um peru, no
meio de muitos outros, pastoreado por um bom português, que tinha um ar rude,
mas doce e compassivo, de camponês transmontano. Ele já me conhecia da outra
vez. Chamava-me você e me deu cigarros. Da outra vez, fui para a casa-forte e
ele me fez baldear a varanda, lavar o banheiro, onde me deu um excelente banho
de ducha de chicote. Todos nós estávamos nus, as portas abertas, e eu tive
muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoiévski, na Casa dos Mortos. Quando baldeei,
chorei; mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoiévski, que pior deviam
ter sofrido em Argel e na Sibéria.
Ah! A Literatura, ou ela me mata ou me dá o que eu peço dela!”
Do teu livro, O Cemitério dos Vivos
Manaus,
15 de Fevereiro de 2013
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