domingo, 24 de fevereiro de 2013

CARTA A LIMA BARRETO




Meu velho amigo Lima, este ano completa 90 anos da tua morte. Por essa razão, lhe escrevo. Tu foste sem dúvida - em minha franca opinião - um dos maiores, senão o melhor escritor maldito de todos os tempos! Pode até soar algum pedantismo ou exagero meu, mas reintero o que digo revisitando com mais apuro o teu memorável e impactante, “Cemitério dos Vivos.” Esta tua obra, especificamente, é de uma profundidade humana sem precedentes. Só  outro livro causou-me similar impressão e aqui me refiro à Recordações da Casa dos Mortos, do nosso ilustre Dostoievski. Ambas tratam da natureza humana com realismo e intensidade assombrosa.  
O Cemitério dos Vivos é um livro de tuas memórias escrito quando tu estiveste por inúmeras vezes internado em casas de saúde mental, naqueles amargos anos de 1919 a 1920, no Rio de Janeiro, em decorrência de tuas fortes crises nervosas movidas por teu alcoolismo crônico e desenfreado.  Ainda sim, foste implacável ao descrever tua experiência com os loucos, já denunciando naquela época, as mazelas, as injustiças sociais, os maus tratos, o preconceito e a falta de uma política humanizadora para com essas instituições de saúde. De características assumidamente realistas, O Cemitério dos Vivos – como todas as tuas outras grandes obras, é também cimentado em tuas claras convicções cientificistas e deterministas, no que diz respeito às ações de teus personagens, sendo eles, meros produtos do meio, das leis naturais, do momento histórico, da hereditariedade e de tudo o mais que podia ser cientificamente comprovado.  Em suma: o homem condicionado pelo meio ambiente e pelo estigma hereditário que se renovam sem parar no ciclo morte-vida; Eros e Tanatos. Embora alguns críticos literários, ainda teimem apontar a tua obra como um autobiografismo efetivo – devido, é claro, a tua obsessão constante pela investigação do preconceito racial, onde tornastes o protagonizador de tua própria tragédia humana, ainda assim, teus escritos são necessários para compreendermos melhor as válvulas comportamentais do pensamento moderno, e assim revisitarmos e atualizarmos alguns conceitos à luz de Taine.
Não obstante, tu és um investigador da alma humana. O Cemitério dos Vivos é rico em detalhes e de extremo realismo. É interessante ainda observar como os teus escritos há tanto tempo realizados pode ainda conter tantas semelhanças com a atualidade. Cabe aqui observamos também a tua genialidade, que mesmo tendo vivido em século tão distante do meu, pudesse compor um cenário que ultrapassasse a barreira do tempo, tornando-se um escritor necessário e atual.
Não foi o álcool que te matou, meu velho, mas a indiferença, a estupidez, e a incompreensão imensurável das pessoas para com a tua literatura. Eu sei como são essas coisas!
Deleito-me agora com estas tuas linhas:

(...) Voltei para o pátio. Que coisa, meu Deus! Estava ali que nem um peru, no meio de muitos outros, pastoreado por um bom português, que tinha um ar rude, mas doce e compassivo, de camponês transmontano. Ele já me conhecia da outra vez. Chamava-me você e me deu cigarros. Da outra vez, fui para a casa-forte e ele me fez baldear a varanda, lavar o banheiro, onde me deu um excelente banho de ducha de chicote. Todos nós estávamos nus, as portas abertas, e eu tive muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoiévski, na Casa dos Mortos. Quando baldeei, chorei; mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoiévski, que pior deviam ter sofrido em Argel e na Sibéria.

            Ah! A Literatura, ou ela me mata ou me dá o que eu peço dela!”

 Do teu livro, O Cemitério dos Vivos

Manaus, 15 de Fevereiro de 2013

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