quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

UM COLÓQUIO COM O CU NUM BOTECO SUJO ANTES DE DESCEREM AO PUTEIRO



PARTE II .

Bom, não vou entrar em detalhes, mas era um botecozinho desses bem chinfrin, bem nojentinho mesmo. O Cu arredou sua cadeira para mais junto de FraNZ, olhou bem dentro de seus olhos e disse:
_Você é Hilda, o autor de O LIVRO DOS DESEJOS ANAIS, não é mesmo?” FraNZ não disse nada, apenas que sorriu desconsertadamente como um dos sinos desafinados da Igreja dos Remédios.
“Não adianta me esconder nada, querrido, eu sinto essas coisas exteriores.” Disse o Cu. Franz TRIS-TO-NHA-MEN-TE DOIS PONTOS “Se não convenci um Cu de minha representação, não convencerei nem mesmo a própria academia”.
“Você não precisa convencer ninguém. E eu não sou um cu. Eu sou o Cu. E ao contrário do que se imagina, todo Cu tem um nome. O meu é Barros. Barros de Alencar.e Silva. Muito prazer!”
“FraNZ, prazer!!”
FraNZ ficara mesmo meio sem jeito ao cumprimentá-lo. A moça com uma verruga enorme no nariz e que trazia a cerveja, fingiu cinicamente que aquilo não estava acontecendo, assim como também fingira sua vida inteira que aquela verruga enorme e feia em seu nariz nunca existiu. Moscas azuis sobrevoavam curiosamente o Cu. Mas ele parecia não se importar. Era ficha limpa.
AGORA DÊEM-ME SÓ UM SEGUNDINHO PARA PENSAR NA FRASE SEGUINTE RETICENCIAS
Bom, é isso. Olhando ao redor, O Cu que se chamava Barros de Alencar. e Silva, falou com nostalgia:
“Vínhamos sempre aqui, o velhinho e eu, discutir literatura clássica. Ahh, um saco, todo aquele papo helênico. Você me libertou e agora devo tudo a você, FraNZ, querrido.”

PORRA, O CU COMO OS OUTROS TAMBÉM ARRANHAVA O “N” E O “Z” E AINDA POR CIMA HAVIA AQUELE ERRE DOBRADO E AFRANCESSADO E FRANZ OBVIAMENTE COMEÇARIA A DETESTAR AQUILO.

Franz desfilou aquele gestozinho clássico com a mão direita porque FraNZ era destro, tipo TRAVESSÃO Ora quê isso, esquece – “Sério mesmo, o velhinho era um saco, e digo-lhe mais, vivi todo esse tempo na bosta daquela academia servindo aquele velho escroto no meio de toda aquela gente escrota, e portanto chata; uma vida toda desperdiçada, vivendo na mais absoluta escuridão pueril e enferma de ideias e palavras reinantes naquela merda de academia.”
“Bom – FraNZ ia dizer – “Fico contente em ajudar” OU então “Mas eu não fiz nada”, mas Barros de Alencar. e Silva o interrompeu dizendo:
“Não, você não entende querrido, sua alma é livre e você me libertou, e agora me sinto culpado por não ter dinheiro para pagar nem esta cerveja, é que o velho era misarento e não me deixou um único centavo RETICENCIAS TRISTES 

E MAIS: SE O CU TIVESSE MÃOZINHAS TERIA ENFIADO ELAS EM SEUS BOLSOS IMAGINÁRIOS SIMULANDO DUREZA E TAMBÉM TERIA FEITO AQUELA CARA DE MUXOXO, MAS FRANZ ENTENDEU PERFEITAMENTE PORQUE FRANZ JÁ PASSARA POR ISSO, ANTES DE SE TORNAR UM PROFESSORZINHO DE ENSINO MÉDIO COM UMA ÚNICA CADEIRA E MAL PAGO (...) IDEM A MAIS

“Esquenta não! Deixa que eu pago.” FraNZ disse.
FIIIIIUUUUU O Cu assobiou animadinho pedindo outra: “FraNZ meu querrido, quero ouvir mais de você... e não me venha com teorias, á merda com teorias.
O Cu parecia mesmo excitado.
“Não tenho muito o que falar de mim, apenas que escrevo para poder suportar o fardo da vida.” Os olhos do Cu brilharam. Um ventilador de teto ordinário de marca paraguaia girava sobre suas cabeças. Algumas poucas pessoas incomodadas pelo odor que se espalhava pelo botecozinho retiravam-se dali em silenciosos protestos. FraNZ olhou pela ultima vez a verruga enorme e feia no nariz da garçonete e jurou que nunca mais olharia aquilo outra vez enquanto ele permanecesse naquele lugar nojento e fedido. Aí o Cu desandou a falar ES-PAS-MO-DI-CA-MENTE: “FraNZ, meu querrido, anote bem isso: “A VIDA É UMA TELA VANGOGHIANA MAL FEITA E MAL COMPREENDIDA”, você tem brilho, talento, meu rapaz, não precisa mais se esconder atrás dessa máscara de Carlitos, seja você mesmo, deixe o seu cu falar por si, FraNZ, vivemos a época do esvaziamento criativo, da falta da compreensão anal, veja o Joyce, por exemplo, ele ainda é o que é hoje porque deixou seu cu falar, deixe o seu cu falar FraNZ, temos muito o que dizer e o que ensinar, é preciso dosar as coisas, amar e perverter, você está anotando isso, querrido, não está? o amor sem a perversão não existe, e você está no caminho certo, OS ESCRITORES DE HOJE PRECISAM  ABRIR SEUS CUS E VIVER A PLENITUDE DO AMOR E DA PERVERSÃO, o amor não está somente na penetração, não é apenas quando se mete, mas quando se tira também, a palavra é um grande esporão do amor, deixe que ela repouse dentro de você depois de gozar, por que a pressa? a pressa não existe para os amantes, não é mesmo? ela não nos permite chegar a nenhum lugar, FraNZ meu querrido, você me libertou e eu não posso nem pagar-lhe uma cerveja, mas veja bem, estamos bebendo nessa espeluncazinha minúscula e fedida, mas podemos ainda beber em outro lugar mais amplo, que tal, só que não tenho dinheiro, o velhinho era misarento, não me deixou nada, eu catei seus bolsos, você viu, mas ele não tinha mais nada, ele se foi para sempre devendo as pessoas e o mundo, tentei ajudá-lo direcionando-o a uma escrita mais livre, mas ele era teimoso, nunca me ouvia, é um problema dos escritores hoje, não ouvem seus próprios cus, nos subestimam, para eles somos apenas uma pequena peça do mecanismo fisiológico que faz a máquina humana funcionar, mas nós pensamos e jogamos também de forma diversificada, escrever não é só uma questão racional, é ter a carta certa nas mãos certas, é saber girar a roleta, é dar um novo corpo ao mundo, lembra-se de Dosto, ah, o nosso velho Dostoieviski, este sim sabia jogar e ouvir o próprio cu, quanto mais se perde mais se ganha, GRIFO MEU, NÃO, DE FRANZ, NÃO, DO CU, OKEI OKEY, MEU MESMO AH, QUE DIFERENÇA FAZ. AH, FraNZ, vamos aos puteiros, o velhinho não era apreciador desses lugares, tratava-se  de uma alma ranzinza e bastante recatada, e acredite, ia à Igreja aos domingos e me fazia ouvir My Way do Frank Sinatra, um beato, agora imagine FraNZ, todos esses longos e torturantes anos levando uma vida chata e ouvindo Sinatra,  A ESCRITA É LIVRE, imploda mesmo as fibras arquitetônicas do dizer velho, as hierarquias morais, o homem é uma pequena amostra da infelicidade, e daí? foda-se, se um dia você acabar sozinho e cego, não acredite na escuridão, as palavras seguem a voz de dentro.

E ELE ENCERROU DIZENDO

 a vida não é uma novelinha barata, FraNZ querrido, a vida é um romance puro, este século não vai nos cheirar, esqueça a academia, vamos aos puteiros!

E CAÍMOS FORA DALI 

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

DA ACADEMIA DOS BOLINHOS E CHAZINHOS OU UMA EPIFANIA ANAL



PARTE I
         Tudo corria na santa paz gloriosa os misericordiosos de Deus e benfeitores das letras, onde se discutia, além da forma e estética na obra de Ulisses, o projeto do governo para a reforma do prédio e também mais verba para a Academia Amazonense de Letras e para o bolso dos seus cátedras, QUANDO DE REPENTE um palhaço ( pois que tinha um rosto grossamente pintado de Carlitos – e não se sabe de onde surgiu a criatura) resolveu foder com tudo, atirando bocejadamente sobre a mesa, um livro borrado de desgostos, conhaques e café, intitulado: “O LIVRO DOS DESEJOS ANAIS”, causando, é lógico, reações adversas:
       “Mas o que significa isto?” - Berrou um velhinho cadeirante e ranzinza sentado á cabaceira.
        “É um livro, poetinha. O Livro dos desejos Anais." Explicou o infortúnio convidado. Os demais permaneceram em silencio como as pedras ornamentais do Largo.
         “Quem é você?”
        “Sou um escritor marginal”.
       “Como ele entrou aqui?” O velhinho cadeirante virou-se para o homem de jaquetinha verde profetizado por Karl Marx e que ocupava a cadeira de número 34.
      “Calma, poetinha, olhe sua pressão.” Falou o homem da jaquetinha verde. O velhinho cadeirante virando-se outra vez para o importuno convidado, falou: “Escuta aqui, meu camarada, aqui não servimos cachaça. Apenas biscoitos e chás, quando muito - e isso somente em ocasiões especiais - umas dosezinhas de whisky, ademais, isso aqui não é um circo ou um prostíbulo. Isso aqui é uma academia séria. Portanto, o que faz aqui?”
     “Propor a discussão desse livro, considerando que estamos falando sobre forma e estética.” Falou o escritor marginal que tinha o rosto grossamente pintado de Carlitos e que, sentado nos fundos e devido o disfarce, era impossível, portanto, saber de quem se tratava. Um outro membro da academia, de rosto redondo e ligeiramente calvo e que até então se mantinha petrificado como os demais colegas, mas que parecia saber do que tratava, manifestou sua curiosidade:
       “Quem é o autor deste livro? O homem ou o cão?”
      “O homem, é lógico. Assina como Hilda. O Cão apenas ladra e não há qualquer relevância no que diz ou escreve.”
     “Ahh, eu sabia, são aqueles jovens terroristas que adoram atacar a academia e querem a todo custo destruí-la.” Esbravejou o velhinho cadeirante já bastante nervoso.
    “Ran Ran (tosses) se me permitem o adendo, eu li este livro, e afirmo se tratar de um livro sem conteúdo e sem forma, embora a intenção fosse boa como todo livro o é – sem desmerecer também o fôlego das palavras juvenis, não mais, o livro em si, aqui presente, inviabilizaria qualquer discussão acerca do que nos propusemos a falar.” Falou este outro membro da academia que era jornalista e justificavelmente magro e que também usava óculos de lentes grossas que lhe davam um aspecto frio e a capacidade patológica e ameaçadora de matar. Mas o escritor marginal não se intimidou:
     “A forma e a estética proposta neste livro vão muito além de uma simples intenção de ardor juvenil deste escritor. Refiro-me ao objeto estético puro, como forma arquitetônica, mas que possível de implodir e reafirmar o novo.” 
    Os célebres cátedras ajeitaram-se todos de uma só vez em suas cadeiras numeradas, como se todos eles ­- num ato conspirativo - resolvessem peidar de uma vez só. Um deles falou:
    “Você está blefando meu rapaz.” Foi um dos senhores cujos cabelos brancos lembravam nuvens brancas paralíticas.
    “Calma senhores, olhem suas pressões! Seus chás vão esfriar." Insistia o homem da jaquetinha profetizado por Karl Marx e que ocupava a cadeira de número 34.  
     “O que você escreveu até aqui, meu rapaz?” Perguntou um outro que escondia um frasco de Jhonny Walker no bolso esquerdo de seu paletó e parecia o único ali bastante interessado.
    “O que já escrevi até aqui, é irrelevante diante de O Livro dos Desejos Anais. Mas que porventura, o mesmo levou-me ao esboço de A Morte da Sentença e o Cárcere das Aspas que pretendo publicar um dia, ou não.” Foi aí então que todos ouviram uma voz timbrosa falar:
     “O que seria de uma obra clássica se decretarmos a morte da sentença e abrirmos mãos das aspas que guardam em seus interiores, supostas citações uterinas? Muito interessante...” Não se sabe de onde veio a voz. Cogitaram que a voz viesse do homem da jaquetinha verde profetizado por Karl Marx. Mas ele tratou logo de esquivar-se da culpa encolhendo os ombros covardemente.
    “Um acontecimento possível.” Complementou o escritor marginal, tentando também adivinhar de onde vinha a voz.
      “Sem dúvida. Um acontecimento extraordinário”. Tornou a voz.
    “Também acho.” Disse o homem que escondia o frasco de Jhonny Walker no bolso esquerdo de seu paletó.
    “Estamos fugindo da pauta investigativa dessa reunião, senhores!” Falou o homem de cabelos brancos feito nuvens paralíticas.
    “Não! Ainda estamos dentro da análise do plano puramente estético da forma enquanto forma arquitetônica proposta pelo jovem que aqui se faz presente.” Falou a voz misteriosa.
    “MERDA!!” 
   Todos olharam dessa vez para o velhinho cadeirante que se contorcia todo. “O DESPERTAR DE FINERGAN NÃO É MAIS A SÍNTESE DO PENSAMENTO MODERNO. JOYCE É UM GÊNIO, MAS ESTÁ MORTO!! PROSSIGAM! PROSSIGAM” 
  “NÃO! NÃO! NÃO LIGUEM PARA O QUE ELE FALA”. Berrou o velhinho cadeirante. 
  “HÁ UMA SONORIDADE EM HILDA. UM DESESPERO ÚNICO E BELO. NADA MAIS SE ESGOTA. Insistia a voz enquanto a parte inferior que correspondia ao ânus do velhinho cadeirante, começou a inchar e a inchar, de maneira que formou-se uma bola gigante de inchaço e pus, até finalmente aquilo explodir cobrindo de merda todos os cátedras que ali se faziam presentes. No entanto, todo aquele espetáculo bizarro parecia não ter mais fim, pois que, do meio daquele escombro de merda e vísceras humanas, eis que surge um CU enorme tentando a todo custo, manter-se ereto. O escritor marginal que parecia já ter visto de tudo, era o único que assistia passível toda aquela cena. O Cu olhou fixamente para o escritor marginal e disse com belíssimo timbre e postagem de voz:
   “Me desculpa todo esse constrangimento, meu querrido, mas é que eu precisava cumprimentá-lo e agradecer por ter me libertado.” O escritor marginal não sabia o que dizer. “Vamos tomar uma cerveja e conversarmos longe dessa merda toda!” Propôs o cu.

domingo, 24 de fevereiro de 2013

CARTA A LIMA BARRETO




Meu velho amigo Lima, este ano completa 90 anos da tua morte. Por essa razão, lhe escrevo. Tu foste sem dúvida - em minha franca opinião - um dos maiores, senão o melhor escritor maldito de todos os tempos! Pode até soar algum pedantismo ou exagero meu, mas reintero o que digo revisitando com mais apuro o teu memorável e impactante, “Cemitério dos Vivos.” Esta tua obra, especificamente, é de uma profundidade humana sem precedentes. Só  outro livro causou-me similar impressão e aqui me refiro à Recordações da Casa dos Mortos, do nosso ilustre Dostoievski. Ambas tratam da natureza humana com realismo e intensidade assombrosa.  
O Cemitério dos Vivos é um livro de tuas memórias escrito quando tu estiveste por inúmeras vezes internado em casas de saúde mental, naqueles amargos anos de 1919 a 1920, no Rio de Janeiro, em decorrência de tuas fortes crises nervosas movidas por teu alcoolismo crônico e desenfreado.  Ainda sim, foste implacável ao descrever tua experiência com os loucos, já denunciando naquela época, as mazelas, as injustiças sociais, os maus tratos, o preconceito e a falta de uma política humanizadora para com essas instituições de saúde. De características assumidamente realistas, O Cemitério dos Vivos – como todas as tuas outras grandes obras, é também cimentado em tuas claras convicções cientificistas e deterministas, no que diz respeito às ações de teus personagens, sendo eles, meros produtos do meio, das leis naturais, do momento histórico, da hereditariedade e de tudo o mais que podia ser cientificamente comprovado.  Em suma: o homem condicionado pelo meio ambiente e pelo estigma hereditário que se renovam sem parar no ciclo morte-vida; Eros e Tanatos. Embora alguns críticos literários, ainda teimem apontar a tua obra como um autobiografismo efetivo – devido, é claro, a tua obsessão constante pela investigação do preconceito racial, onde tornastes o protagonizador de tua própria tragédia humana, ainda assim, teus escritos são necessários para compreendermos melhor as válvulas comportamentais do pensamento moderno, e assim revisitarmos e atualizarmos alguns conceitos à luz de Taine.
Não obstante, tu és um investigador da alma humana. O Cemitério dos Vivos é rico em detalhes e de extremo realismo. É interessante ainda observar como os teus escritos há tanto tempo realizados pode ainda conter tantas semelhanças com a atualidade. Cabe aqui observamos também a tua genialidade, que mesmo tendo vivido em século tão distante do meu, pudesse compor um cenário que ultrapassasse a barreira do tempo, tornando-se um escritor necessário e atual.
Não foi o álcool que te matou, meu velho, mas a indiferença, a estupidez, e a incompreensão imensurável das pessoas para com a tua literatura. Eu sei como são essas coisas!
Deleito-me agora com estas tuas linhas:

(...) Voltei para o pátio. Que coisa, meu Deus! Estava ali que nem um peru, no meio de muitos outros, pastoreado por um bom português, que tinha um ar rude, mas doce e compassivo, de camponês transmontano. Ele já me conhecia da outra vez. Chamava-me você e me deu cigarros. Da outra vez, fui para a casa-forte e ele me fez baldear a varanda, lavar o banheiro, onde me deu um excelente banho de ducha de chicote. Todos nós estávamos nus, as portas abertas, e eu tive muito pudor. Eu me lembrei do banho de vapor de Dostoiévski, na Casa dos Mortos. Quando baldeei, chorei; mas lembrei de Cervantes, do próprio Dostoiévski, que pior deviam ter sofrido em Argel e na Sibéria.

            Ah! A Literatura, ou ela me mata ou me dá o que eu peço dela!”

 Do teu livro, O Cemitério dos Vivos

Manaus, 15 de Fevereiro de 2013

sábado, 23 de fevereiro de 2013

O ANÃO DO AÇOUGUE, O HOMEM COM A ABERTURA NA TESTA E O DESENTUPIDOR DE FOSSAS: MÁRCIO SANTANA E A NEGAÇÃO DA TRAGICOMÉDIA ABSURDA DE MANAUS!





Por Ribamar Mitoso
 
Não sei o porquê, mas depois da globalização capitalista- neoliberal, a África, a Ásia e a América começaram a tentar saber aquilo que as tornavam África, Ásia e América. Chamei de “desglobalização” esse movimento cultural de reinventar as identidades culturais nestes continentes , para diferenciá-los do One Way , dos Estados Unidos, e do Two Way, da Europa.
Como sabemos que tudo é humano, e que esta é a identidade central que interessa, a nova identidade dos continentes conectou culturas ditas particulares e fez surgir , a partir de cada continente, várias dimensões humanas globais - particulares e universais ao mesmo tempo. O universal se confirmou como o regional de alguém que não apenas vendeu para todo mundo; mas que pelo menos todo mundo foi informado da sua existência. A aldeia global passou de aldeia globalizada para aldeia desglobalizada.
Mas isto vem de longe!
Quando a globalização dos séculos XVII e XVIII colocou portugueses e ameríndios em confrontos étnicos no Amazonas, a épica da luta criou uma épica da literatura.Era um conflito de culturas entre Muras e Portugueses, digamos assim, criando uma consciência épica e uma consciência épica gerando, também digamos assim, uma expressão artística. Se me faço entender: o poema épico Muraihda, do soldado português Henrique João Wilkens, expressou a visão genocida do invasor, do vencedor provisório. E, de fato, o poema era formalmente épico , com métricas camonianas, mesmo que falso,mesmo que genocida.O que é lamentável. De qualquer modo, a literatura amazonense, digamos assim, nasceu como expressão épica!
Este contexto social extrativista, apêndice do capitalismo, ao mesmo tempo que gerou a expressão da épica renascentista, da vitória de ibéricos sobre os povos indígenas, gerou também um romantismo tardio, lírico, expressando um encontro harmônico entre estes dois mundos. O casamento de militares portugueses com mulheres indígenas, especialmente da tradição arawak, era o tema que tentava mascarar e rever a literatura da dominação. Do épico etnocida ao lirismo melancólico e envergonhado.
De igual modo, em uma simetria histórica, quando a globalização do século XIX exigiu nosso látex para servir de matéria – prima da indústria da vulcanização, o regime dos seringais gerou o conflito de classes. Se portugueses e indígenas geraram um ambiente épico, de epopéia, latifundiários e camponeses em conflito geraram um clima de tragédia . Este ambiente trágico gerou uma consciência trágica. Esta consciência trágica gerou uma expressão artístico- literária igualmente trágica e o ambiente mental para os estilos naturalista e realista. Na sequência da tradição épica e lírica , emerge a literatura trágica.
Todas as tendências modernistas do século XX, com um legado estético e cultural marcante, também moveram-se no contexto sócio-econômico do extrativismo.
A globalização industrial , apelidada de modelo Zona Franca, transferiu essa tragédia social da área rural para a cidade. O realismo também se transferiu. Não mais como expressão do trágico, mas agora como expressão do absurdo social e do absurdo como expressão artística. A estrutura social gerando sua estrutura textual. No rastro das literaturas épicas, líricas e trágicas, emerge a literatura cômica.
Com a industrialização, Manaus passou a ser uma cidade absurda. Um dos maiores Produtos Internos Brutos e um dos menores Índices de Desenvolvimento Humano. Um parque industrial High Tech, cercado por 16 comunidades indígenas e centenas de favela. O maior rio de água doce do mundo e a cidade com um dos piores abastecimentos de água potável. A cidade com maior número de igarapés e todos, tirando o Água Branca, no Tarumã,todos poluídos. Igarapés à disposição e um trânsito insuportável. Manaus é sim uma cidade absurda. Aliás, é a expressão do absurdo. Daí que qualquer outra percepção estética ou qualquer outra expressão estética que não seja a perplexidade do absurdo será absurda, absurdamente deslocada ou desfocada.
No rastro literário desta tradição, surge uma literatura do realismo cômico - fantastico e absurdo.
Surge do submundo do cotidiano dos trabalhadores e do lupen(z)sinato urbano.
Márcio Santana , que teve o azar de ser meu aluno no curso de letras da UFAM, é um dos escritores que emerge neste contexto social e estético.
Márcio emerge como um escritor que escreve, edita e vende seus contos e poemas. Mais: emerge como um dos organizadortes da revista Sirrose, que garantiu a expressão de todos aqueles que não confundem livro com literatura. Márcio Santana é um transgressor.
O Anão do Açougue, O Homem Com a Abertura na Testa e O Desintupidor de Fossas são três de seus fanzines que li junto com ele, no reduto dos transgressores, em Manaus.
São contos e expressões da literatura urbana cômico - realista - fantástica - absurda do Amazonas.
O Anão do Açougue é exemplar. Um trabalhador vivendo uma desdita amorosa conhece um anão e passa a ter com ele , inicialmente, uma grande relação de amizade, digamos assim. Depois, devido a potente ejaculação do anão quando se masturbava , e devido, também, o interesse comercial de um dono de putero nesta qualidade do anão, o trabalhador-narrador, " fodido e explorado" , como ele mesmo se define, passa a ver o anão com outros olhos.
Uma situação ao mesmo tempo realista, cômica,absurda, mas que, pela aparente irrealidade, torna-se , também, fantástica. Real e irreal coeexistindo para gerar uma nova realidade.
Mas engana-se quem não acredita na verossimilhança da trama.
O trabalhador-narrador-observador , narrando em terceira pessoa , não tira o cu da seringa: Ele é parte da trama , ele também frequenta o submundo, como personagem secundária , é verdade, porém decisiva para que o enredo se estabeleça.
E o trabalhador-narrador é sofisticado. Ele para a narrativa e dialoga com o leitor, questiona sua descrença no fato e o ironiza: " Você não acredita não é, leitor? Mas eu estava lá e presenciei tudo".
Dou gargalhadas com este conto. E não é fácil fazer o leitor rir.
Márcio Santana, porém, é muito melhor que seu crítico, que seu professor e melhor ainda que esta breve e sentimental apreciação crítica da obra. Nele , forma , conteúdo e vida estão conectados, encaixados. Ele é a própria obra.
Quem desejar conhecer a literatura deste meu brilhante aluno, pode acessar seu site, que diz tudo: Epístolas do Inferno, embora ele tenha rompido com a tradição do infernismo lamurioso.


Ribamar Mitoso é Escritor,Dramaturgo,Professor da Universidade Federal do Amazonas, Pós-Graduado em Projetos Culturais (FGV), Especialista em Estética e Filosofia da Arte (USP) e Mestre MSC em Literatura Amazônica ( UFAM ). Como dramaturgo ganhou seis prêmios nacionais FUNARTE – MINISTÉRIO DA CULTURA DE TEATRO e é autor de cinco peças do teatro do indígena na cidade e no presente.São elas: Poronominari ( prêmio FUNART- centenário do Teatro Amazonas -1996 e Prêmio FUNART-MINC de Circulação -2005) , A Saga Munduruku ( Prêmio FUNART- MINC de circulação 2007), As Filhas de Yepá (2006), Furo de Olho (2006), além da parceria, como roteirista e diretor, artístico da peça A Casa dos Cinco Tempos, do Kumu Séribhi, Gabriel Gentil, sobre a história do povo Dasxé do alto Rio Negro. Como escritor, escreveu os livros de contos Contos Vagabundos (1990), Povo de Manaus , o camelô (1991) e o inédito Manaus INC. - Contos Amazônicos na Desglobalização. Escreveu ainda três livros de ensaios sobre o movimento artístico-cultural no Amazonas.