baratas
era velho. comprido.
sujo. as varizes estouradas. ganhava a
vida desmontando ventiladores da marca Britânia. vidinha de merda. mas não tão menos desgraçada quanto a minha e
quanto a sua, lhes garanto.
não daremos nome
a ele, me desculpem. um qualquer. mas um dia ele viu aparecer aquela barata no
canto da casa. aproximou-se dela. parecia morta. emborcada. embora ele
convivesse diariamente com as baratas, tinha horror á elas. asco. nojo. vermelhidão.
de modo que não havia outra alternativa senão esmagá-la com os pés. mas ele investigou
bem de perto aquela. lembrava-lhe um nenenzinho com suas patinhas entrecruzadas
sobre o peito, numa atitude de clemência. as anteninhas se agitavam devagar. nunca lhe ocorreu antes pena de matar uma
barata. foi a primeira vez aquele sentimento estranho lhe invadindo. ficou ali
pensando aquele homem comprido. um milhão de vezes. que diferença faria se ele
a deixasse viver ou morrer. a escolha era sua. e não há momento mais desgraçado
na vida de uma barata do que depender da escolha do outro, no momento de sua
morte, eu suponho. deixou então que a vivesse, portanto. com uma cara terrível
e enojada de mulher grávida ele pegou pelas anteninhas dela e a levou até o
quintal. ela ainda se debatia. alegre ou infeliz por aquela decisão, sabe-se
lá. pouco importa. atirou-a no esgoto. esfregou bem as mãos na hora de lavá-las
e voltou ao seu velho ofício que era desmontar ventiladores da marca Britânia. era
como ganhava a vida. há pessoas que vivem para parir. outras para sentir
ciúmes. outras para escrever. outras
para futricar a vida alheia. e outras tantas para desmontar ventiladores da
marca Britânia. ele pertencia a este último grupo. não tinha ninguém. mulher. filhos.
cachorros. nem fotografias. nada. ainda não sei como chamá-lo. no bairro o
chamam de cachorro doido. pronto, Cachorro Doido. Cachorro Doido notou que
havia mais baratas espalhadas pela casa. mas do que o normal. elas foram
surgindo aos borbotões. um montão delas. diria milhares. baratinhas e baratões.
na China, comem-se baratas. são bem cozidas
antes de fritá-las. mas Cachorro Doido não
sabe disso. nunca saberá. e isto também não terá importância nenhuma para ele. não
irá redimí-lo. tampouco salvá-lo. avancemos é que é. o fato é que as baratas
invadiam a sua casa que era o seu único bem e que não lhe pertencia. nada nos
pertence. nenhum bem. a vida de punhos fechados o ensinou que nada pertence a
ninguém. somente o egoísmo que destrói e nos torna secos de alma. e aquelas
baratas voando sobre o único cômodo da casa de Cachorro Doido, reparem! não tinha não, como detetizá-las. as grandonas
entravam pela janela. já as graúdas, pelas frestas do assoalho podre. cercavam os
pés do Cachorro Doido. subiam por suas pernas. ganhavam as virilhas dele. colonizavam-lhe
as axilas e o cu. vinham aos milhares. danadinhas que eram. havia também umas
baratas bem estranhas cujas asas eram de uma transparência líquida e viscosa. essas
exalavam um cheiro terrível que não saberia descrever aos senhores em suas mesas
de almoçar. era um cheiro desagradável, por certo, diferente das baratas
comuns. um cheiro que não sei mesmo descrever. mas que talvez eu consiga. um
cheiro de solidão, medo, esquecimento e morte. não, não, não, não, não, nada se
iguala ao cheiro de uma barata. ah, meu Deus, porque tanto desespero e sofrimento
e ódio e inveja e solidão e desamor que guardamos dentro de nossos corações
naufragantes. logo aquela casa se transformou num enxame de baratas. voavam em
torno dele. zumbinizavam. um som oco e perturbador. as cascudas que deslizam em
seu corpo, causavam-lhe estranhos arrepios na pele. em Beijing, servem-se
baratas com ovos de mosca. ele olhou horrorizado o montoeiro de baratas
formando uma nuvem espessa no interior da casa. nuvens de baratas. ele nem
podia mais se mover direito. nada mais enxergava. e havia aqueles ventiladores
para desmontar. todo um resto de vida. o certo era ficar ali parado, até que
elas fossem embora. mas elas nunca iriam. as baratas vieram pra ficar. tomar-lhe
o corpo. o espírito. a casa.
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