terça-feira, 28 de outubro de 2014

baratas

baratas

era velho. comprido. sujo.  as varizes estouradas. ganhava a vida desmontando ventiladores da marca Britânia. vidinha de merda.  mas não tão menos desgraçada quanto a minha e quanto a sua, lhes garanto.

não daremos nome a ele, me desculpem. um qualquer. mas um dia ele viu aparecer aquela barata no canto da casa. aproximou-se dela. parecia morta. emborcada. embora ele convivesse diariamente com as baratas, tinha horror á elas. asco. nojo. vermelhidão. de modo que não havia outra alternativa senão esmagá-la com os pés. mas ele investigou bem de perto aquela. lembrava-lhe um nenenzinho com suas patinhas entrecruzadas sobre o peito, numa atitude de clemência. as anteninhas se agitavam devagar.  nunca lhe ocorreu antes pena de matar uma barata. foi a primeira vez aquele sentimento estranho lhe invadindo. ficou ali pensando aquele homem comprido. um milhão de vezes. que diferença faria se ele a deixasse viver ou morrer. a escolha era sua. e não há momento mais desgraçado na vida de uma barata do que depender da escolha do outro, no momento de sua morte, eu suponho. deixou então que a vivesse, portanto. com uma cara terrível e enojada de mulher grávida ele pegou pelas anteninhas dela e a levou até o quintal. ela ainda se debatia. alegre ou infeliz por aquela decisão, sabe-se lá. pouco importa. atirou-a no esgoto. esfregou bem as mãos na hora de lavá-las e voltou ao seu velho ofício que era desmontar ventiladores da marca Britânia. era como ganhava a vida. há pessoas que vivem para parir. outras para sentir ciúmes. outras para escrever.  outras para futricar a vida alheia. e outras tantas para desmontar ventiladores da marca Britânia. ele pertencia a este último grupo. não tinha ninguém. mulher. filhos. cachorros. nem fotografias. nada. ainda não sei como chamá-lo. no bairro o chamam de cachorro doido. pronto, Cachorro Doido. Cachorro Doido notou que havia mais baratas espalhadas pela casa. mas do que o normal. elas foram surgindo aos borbotões. um montão delas. diria milhares. baratinhas e baratões.  na China, comem-se baratas. são bem cozidas antes de fritá-las.  mas Cachorro Doido não sabe disso. nunca saberá. e isto também não terá importância nenhuma para ele. não irá redimí-lo. tampouco salvá-lo. avancemos é que é. o fato é que as baratas invadiam a sua casa que era o seu único bem e que não lhe pertencia. nada nos pertence. nenhum bem. a vida de punhos fechados o ensinou que nada pertence a ninguém. somente o egoísmo que destrói e nos torna secos de alma. e aquelas baratas voando sobre o único cômodo da casa de Cachorro Doido, reparem!  não tinha não, como detetizá-las. as grandonas entravam pela janela. já as graúdas, pelas frestas do assoalho podre. cercavam os pés do Cachorro Doido. subiam por suas pernas. ganhavam as virilhas dele. colonizavam-lhe as axilas e o cu. vinham aos milhares. danadinhas que eram. havia também umas baratas bem estranhas cujas asas eram de uma transparência líquida e viscosa. essas exalavam um cheiro terrível que não saberia descrever aos senhores em suas mesas de almoçar. era um cheiro desagradável, por certo, diferente das baratas comuns. um cheiro que não sei mesmo descrever. mas que talvez eu consiga. um cheiro de solidão, medo, esquecimento e morte. não, não, não, não, não, nada se iguala ao cheiro de uma barata. ah, meu Deus, porque tanto desespero e sofrimento e ódio e inveja e solidão e desamor que guardamos dentro de nossos corações naufragantes. logo aquela casa se transformou num enxame de baratas. voavam em torno dele. zumbinizavam. um som oco e perturbador. as cascudas que deslizam em seu corpo, causavam-lhe estranhos arrepios na pele. em Beijing, servem-se baratas com ovos de mosca. ele olhou horrorizado o montoeiro de baratas formando uma nuvem espessa no interior da casa. nuvens de baratas. ele nem podia mais se mover direito. nada mais enxergava. e havia aqueles ventiladores para desmontar. todo um resto de vida. o certo era ficar ali parado, até que elas fossem embora. mas elas nunca iriam. as baratas vieram pra ficar. tomar-lhe o corpo. o espírito. a casa.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário