X – NÃO SE MORRE NUNCA. A VIDA É UM DEVIR.
Acordei
em uma cama de hospital. As paredes brancas ao meu redor. Um cheiro de soro.
Doíam-me todos os ossos. Dei com
Ecumênicus sentado em uma cadeira de frente para mim, lendo o Capital, de Marx.
Parou de ler um instante, fechou o livro e sorriu dizendo:
“Que
bom que voltou. Podemos agora rediscutir a tomada do estado.” Ecumênicus não
havia desistido daquela ideia idiota de tomar o estado.
“O
que houve, porra!” Perguntei com uma voz que não era minha.
“Ficaste
em coma alcoólico durante três semanas. Diarréia e vômitos. Achei que tua ia se
dissolver.”
“Caralho!
Quero sair daqui!”
“Tá
ainda muito fraco. Vais ficar mais esta semana, o médico disse.”
E
fiquei ali com Ecumênicus me fazendo companhia. Ele vinha todas as tardes ler
para mim O Capital, de Marx. Falou da Mais-Valia. Da exploração do homem pelo
homem. E veio-me com uma teoria maluca que o mundo está dividido em quatro
tipos de horas: a hora pra dormir, a hora pra comer, a hora pra trabalhar e a
hora pra se masturbar. Distraia-me com Ecumênicus que nem via o tempo correr. Recebi
alta e fui morar uns tempos com ele numa kitinete, no Bairro da Glória. Dei um
tempo nas minhas bebedeiras e refleti mais sobre a vida que eu levava. Decidi
mudar. Arranjei trabalho e resolvi freqüentar os alcoólicos anônimos. Mais
fiquei entediado com aqueles depoimentos idiotas. Não deu muito certo, não.
Procurei igrejas diversas. Tentei até o espiritismo. Mas não me encaixei em
nenhuma doutrina daquelas. Não nasci pra ser escravo. Sentia-me um buraco
enorme e negro. Era como se a minha alma tivesse me abandonado. Fugido em um
tapete voador. Evitava passar em frente á açougues porque entrava em profunda
depressão. Lembrava-me do anão. Precisava estar desesperadamente com alguém. O
sorriso doce de Selminha escolhendo as cebolas em um supermercado, como nos velhos
tempos, me vinha à cabeça em noites solitárias de domingo. Resolvi ligar para
ela:
“Oi,
Selmnha!” Aqui é o Mário Augusto.”
“Vai
tomar no seu cu, Mário Augusto!” Gritou de lá. E desligou. Nunca mais a veria.
Saí para as ruas. Sozinho. A cabeça atrapalhada. Mas sem um pingo de álcool no
sangue. Afastei definitivamente a ideia de morte. De me sentir vazio. Pensei em
voltar a escrever. Mas não sabia exatamente sobre o quê. Contei para Ecumênicus
a experiência louca que tinha vivido, e ele, sem mesmo acreditar em uma única
palavra minha, sugeriu que eu escrevesse sobre aquilo. Não seria fácil. Mesmo
assim, sentei a bunda e escrevi. Freneticamente. Entre uma punheta e outra.
Voltei a me masturbar como um louco. Ao cabo de um mês, tinha uma novela
pronta. O anão do Açougue. A história mais louca que já tinha escrito em toda
minha vida. Me senti vivo outra vez. Enviei para todas as editoras e esperei.
Espero até hoje. Mas tudo bem. A vida é isso. Um corredor de longa espera.
***
Mais
disposto e trabalhando como zelador em uma escola pública resolvi dar uma volta
no centro. Ali pelas imediações da Mauá e Frei José. Tomei coragem e parei
diante do prédio onde funcionava o Delirium. Havia se tornado uma Igreja da
Assembléia de Deus. Uns poucos bares em torno dele ainda resistiam por ali.
Sentei em um deles e tomei uma cerveja. Minha primeira depois de longos e
tenebrosos meses. Fiquei ali plantado bebendo e relembrando de como fui do
paraíso ao inferno. Foi quando vi Dagmar parada frente ao Nacondas, fumando
elegantemente um cigarro. Gostosa naquele seu velho jeans apertadíssimo. Meu
pau deu uma pinicada. Estava vivo de novo. Não se morre nunca. A vida é um
devir.
Levantei-me
animado, paguei a conta e fui ao seu encontro. Não me importaria se caísse
novamente naquele papo de epilepsia. Dagmar tinha uma boca milagrosa. Ah, tinha!
Era uma tarde de dezembro ensolarada. Ela sorriu de lá. Subimos as escadas do
Nacondas outra vez...
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