domingo, 27 de outubro de 2013

O ANÃO DO AÇOUGUE



IX – MORRER É COMO ESTAR DENTRO DE UMA GARRAFA

Era fevereiro de 2002. Eu havia voltado á estaca zero. Distanciei-me do centro e agora andava de bar em bar pelos bairros poeirentos e esquecidos da periferia, com o anão dentro de uma garrafa. Tentava negociar com os caras. Convencê-los que havia um homenzinho ali dentro e que eles podiam ganhar muito dinheiro com aquilo. Riam de mim. Olhavam-me como um louco. Voltei a beber como um desgraçado. Xingava aqueles que não acreditavam em mim. “Homens sem fé!” Gritava bêbado. Cheguei a ser expulso de alguns bares aos pescoções. Amanhecia pelas ruas. Fodido. Jogado debaixo de marquises. Acordava sempre ao lado de uma garrafa de cachaça, e do outro, o recipiente contendo o anão que diminuía ridiculamente. Senti fome e frio. Não vi o carnaval passar. Me desesperava. Cheguei a ponto de procurar os circos e as casas de forrós. Apresentava-me aos empresários contando-lhes todo meu drama. Nem se preocupavam em olhar a garrafa. Iam logo dizendo: “Não nos interessa, seu Mário. O que faremos com um homenzinho preso dentro de uma garrafa?” Me sentia quando eu vendia os meus livretos pelos bares. Ninguém os comprava. O desespero foi tomando conta de mim. Tornei-me uma sombra amarga. Fui provando de um processo lento de degradação humana que não desejo ao meu pior inimigo. Definitivamente eu não estava preparado para tanto sofrimento. Ninguém está, não é mesmo? Eu me afogava em miséria total. Tornara-me um velho. Um traste! Um cara sem nenhum valor. Uma barata! Sonhava todas as noites com urubus devorando minha carne. Acordava suando e olhava para o homenzinho lá dentro ficando cada vez mais pequeno. Morrendo dentro de uma garrafa. Morrer é como estar dentro de uma garrafa. Entre um gole e outro de cachaça que compartilhava com os mendigos da Praça Independência, comecei então a compreender o valor da significância humana. Só depois que desaparecemos ou diminuímos de tamanho é que percebemos a nossa ínfima grandeza.

Numa manhã de quarta feira de cinzas, acordei e percebi que o anão havia se dissolvido. Tornara-se um líquido amarelado no fundo da garrafa. Literalmente um sêmen. Olhei o sol. Minha barriga doía. Veio-me a ideia de vender o sêmen do anão como um creme milagroso. Como fazia antes. Mas eu havia mesmo caído em descrédito total. Em desgraça. Não tinha mais força. Destruído, dirigi-me então à Ponte da Sete de Setembro e do seu alto, arremessei a garrafa no Igarapé podre que corria lá embaixo. Pronto! Tudo acabado. Havia me livrado definitivamente do anão. Agora eu podia me tornar  livre de meu egoísmo. Deixei a ponte e parei no primeiro boteco baleado que encontrei no caminho pra comemorar. Bebi tudo que me restava no bolso. Dancei, pulei, cantei marchinhas, xinguei o mundo. O carnaval mais triste da minha vida. Depois, apaguei. Ali mesmo. No chão fio de madeira, leproso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário