IX – MORRER É COMO ESTAR
DENTRO DE UMA GARRAFA
Era
fevereiro de 2002. Eu havia voltado á estaca zero. Distanciei-me do centro e
agora andava de bar em bar pelos bairros poeirentos e esquecidos da periferia,
com o anão dentro de uma garrafa. Tentava negociar com os caras. Convencê-los
que havia um homenzinho ali dentro e que eles podiam ganhar muito dinheiro com
aquilo. Riam de mim. Olhavam-me como um louco. Voltei a beber como um
desgraçado. Xingava aqueles que não acreditavam em mim. “Homens sem fé!”
Gritava bêbado. Cheguei a ser expulso de alguns bares aos pescoções. Amanhecia
pelas ruas. Fodido. Jogado debaixo de marquises. Acordava sempre ao lado de uma
garrafa de cachaça, e do outro, o recipiente contendo o anão que diminuía
ridiculamente. Senti fome e frio. Não vi o carnaval passar. Me desesperava.
Cheguei a ponto de procurar os circos e as casas de forrós. Apresentava-me aos
empresários contando-lhes todo meu drama. Nem se preocupavam em olhar a garrafa.
Iam logo dizendo: “Não nos interessa, seu Mário. O que faremos com um
homenzinho preso dentro de uma garrafa?” Me sentia quando eu vendia os meus
livretos pelos bares. Ninguém os comprava. O desespero foi tomando conta de
mim. Tornei-me uma sombra amarga. Fui provando de um processo lento de
degradação humana que não desejo ao meu pior inimigo. Definitivamente eu não
estava preparado para tanto sofrimento. Ninguém está, não é mesmo? Eu me afogava
em miséria total. Tornara-me um velho. Um traste! Um cara sem nenhum valor. Uma
barata! Sonhava todas as noites com urubus devorando minha carne. Acordava
suando e olhava para o homenzinho lá dentro ficando cada vez mais pequeno.
Morrendo dentro de uma garrafa. Morrer é como estar dentro de uma garrafa.
Entre um gole e outro de cachaça que compartilhava com os mendigos da Praça
Independência, comecei então a compreender o valor da significância humana. Só
depois que desaparecemos ou diminuímos de tamanho é que percebemos a nossa
ínfima grandeza.
Numa
manhã de quarta feira de cinzas, acordei e percebi que o anão havia se
dissolvido. Tornara-se um líquido amarelado no fundo da garrafa. Literalmente um
sêmen. Olhei o sol. Minha barriga doía. Veio-me a ideia de vender o sêmen do
anão como um creme milagroso. Como fazia antes. Mas eu havia mesmo caído em
descrédito total. Em desgraça. Não tinha mais força. Destruído, dirigi-me então
à Ponte da Sete de Setembro e do seu alto, arremessei a garrafa no Igarapé podre
que corria lá embaixo. Pronto! Tudo acabado. Havia me livrado definitivamente
do anão. Agora eu podia me tornar livre
de meu egoísmo. Deixei a ponte e parei no primeiro boteco baleado que encontrei
no caminho pra comemorar. Bebi tudo que me restava no bolso. Dancei, pulei,
cantei marchinhas, xinguei o mundo. O carnaval mais triste da minha vida.
Depois, apaguei. Ali mesmo. No chão fio de madeira, leproso.
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