terça-feira, 30 de abril de 2013

O DESENTUPIDOR DE FOSSAS


“Dancemos, nós os vivos, á beira da cratera
Uma última e agonizante dança
Mas que seja uma dança...”
 Henry Miller





PARTE I - RAIMUNDO PERFUMADO.

FOI LÁ PRA TRÁS, BEM LÁ PRA TRÁS, na ocasião dos meus onze anos de idade, quando fiquei pela primeira vez frente a frente com Raimundo Perfumado. Ele lá sentado na varanda de casa. Sua silhueta desfocada projetada do outro lado do vidro da porta de correr.
Vem cá com o teu primo, garoto!
 Gritava de lá com a voz grossa e arrastada de quem havia bebido todas as garrafas do mundo. Sete e pouco da manhã. Lembro-me bem. Sempre quando ele ia lá em casa, eu me escondia debaixo da máquina de costura de minha mãe. Eu ainda não sabia de sua profissão profunda, mas já sentia de longe, o fedor de merda seca misturada com aguardente que emanavam daquela sua pele de lagarto. Vem cá, garoto! Gritava ele. Naquele dia não deu pra fugir dele, não. Havia minha mãe que ralhava comigo enquanto fritava seus bolinhos de chuva no meio do verão de Manaus.
Vai lá ver o que ele quer Mário Augusto. Ele é teu primo, cuida!
Fui ao seu encontro me borrando de medo. Seu fedor escroto de merda. A cabeça troncha como o do Homem Elefante. Ah, assombrava-me a existência daquele homem.

IIA VIDA DA GENTE É UMA MERDA BOIANDO.

CHEGA MAIS PERTO, GAROTO!
 Aproximei-me dele bem devagar. Ele sorria de lá mostrando seus dentes estilhaçados. A camisa sobre um dos ombros euma garrafa de Chora Rita ao pé da cadeira de embalar, de meu finado pai. Ele então tomou uma golada consistente daquele veneno. Eu fiquei olhando pra ele tentando manter a calma. O pêndulo do relógio da parede, incansável, me provocava ir á escola. Aí ele me perguntou:
Sabe por que a cobra devora o jacaré, garoto? Han? Fiz que não sabia, olhando envergonhado para o chão. Por que o jacaré é um covarde e a cobra sente muita fome. Não seja um covarde. Agora da cá um abraço no primo, seu merdinha! E me abraçou contra minha vontade. Abraçou bem forte. Contou outras histórias. Fui me acostumando encostado a sua pele. Seu odor de merda seca me impregnando o corpo e a casa toda. O curioso é que quando somos crianças, as nossas almas são puras e francas, de modo que perguntei:
Por que você fede tanto a cocô?
Demorou a responder, passando a mão na barba. Os pelos compridos e afiados escapando de seu nariz grosseiro. Deu outra golada considerada na maldita, e finalmente me respondeu:
Por que a vida da gente é uma merda boiando, garoto. Foi o que ele disse. Naquele momento, não compreendi muito bem. Só mais tarde é que viria entender. Minha mãe já se aproximava com um café bem quente e com seus bolinhos de chuva também.

II – A FESTA PERFUMADA

A SEGUNDA VEZ QUE FIQUEI FRENTE A FRENTE COM RAIMUNDO PERFUMADO, foi durante os festejos de São João na casa de minha tia Olívia, no Bairro de São Jorge, ainda naquele verão escaldante de 81. A família toda reunida. No terreiro limpo e capinado, uma enorme fogueira ardia em chamas. A gurizada envolta dela brincava de atirar bombinhas e peidos-de-velhas umas nas outras. Minha mãe toda linda e contente – com seu lenço colorido sobre a cabeça – servia aluás e outras iguarias do tipo. A lua glamorosa, e um céu estalando de estrelas. Tudo transcorrendo na santa paz. Foi quando vi surgir dos fundos do quintal, a sombra enorme e desgraçada de Raimundo Perfumado eclipsando a lua. Descalço e só de bermudas, pôs-sea dançar a sua dança de curandeiro. Apertava contra o peito, uma garrafa de Chora Rita. As crianças, apavoradas, correram todas para perto dos seus pais. Os convidados protestavam balançando suas cabeças, em gestos de desaprovação. Raimundo Perfumado era como um disco arranhado arranhando a harmonia da festa. Fiquei ali olhando ele dançar sua dança de curandeiro. Sua enorme sombra avolumada, projetada no limiar do muro branco que cercava todo o quintal. Quando me viu, olhou sério e gritou:
Venha cá, garoto!
 Avancei subjugado que era pela sua voz cavernosa. Aproximei-me bem dele. Perto o bastante para ver o reflexo fantasmagórico da fogueira que queimava e tremia dentro de suas pupilas vermelhas e dilatadas. Ele parecia um demônio feliz. Assustado, corri até a cozinha, para perto de minha mãe. Ao lá chegar, dei com minha tia Olívia pedindo profundas desculpas a ela:
Me desculpa, minha irmã. É que contratei os serviços de capinagem de Raimundo Perfumado.
Não me deves desculpas nenhuma. Raimundo Perfumado não é nenhum bicho. E eu não admito que ninguém faça mal a ele nessa festa, senão vão se ver comigo.
 Disse imperativa, minha mãe. E virando-se para mim: E você, Mário Augusto, pare de ficar se escondendo do seu primo, ouviu? E me pegando pelos braços, ganhamos o quintal a passos lépidos, com minha mãe levando um prato de comida nas mãos. O seu lenço colorido sobre a cabeça. Seus passos firmes e voluntariosos de mãe. Sentia muito orgulho caminhando ao lado de minha mãe. Admirava a sua beleza e a sua coragem. Só não entendia até ali a razão pela qual ela defendia com unhas e dentes o Raimundo Perfumado. Era como se ele tivesse saído de dentro de seu ventre.
Tem coisas que é melhor não entender, Mário Augusto.
Ela viria me dizer isso mais lá pra frente.
III – A GRANDE FOSSA ABERTA
O LUAR METÁLICO E DENSO DERRAMAVA-SE CHOROSO SOBRE O QUINTAL. Ajoelhado, Raimundo Perfumado beijava calorosamente as mãos de minha mãe, até deixá-la em profundo embaraço. Depois, agradeceu pelo prato de comida; bebeu, dançou, cantou as modinhas tristes de São João. Sozinho agora em seu canto escuro, tal e qual um bicho do mato, Raimundo Perfumado era a própria personificação da solidão, da alegria e da dor. A grande fossa humana aberta espalhando seu doce aroma de merda, pela noite de minhas memórias...

IV – TEM COISAS QUE É MELHOR NÃO ENTENDER, MÁRIO AUGUSTO.

ONZE E POUCO DA MANHÃ DAQUELE COMECINHO DE AGOSTO. O centro da cidade era um alvoroço. Atravessávamos a Marechal Deodoro com certa urgência. Agarrava-me a mão de minha mãe com relativa alegria que nem me importava com o sol tirânico que ardia sem piedade sobre as nossas moleiras. Mas havia todas aquelas perguntas que me atazanavam a cabeça. Uma delas saiu abrupta pela boca quando alcançamos á Praça da Polícia:
Mãe, por que chamam o Raimundo Perfumado de Raimundo Perfumado, se ele fede tanto a merda seca? Acho que foi como uma cotovelada no vento. É, foi. Ela parou e fuzilou-me com seus olhos de santa aborrecida:
Seu primo não fede, Mário Augusto. Ele cheira, ouviu bem?
Não, mãe, ele fede a merda sim. Teimei. Ela olhou bem sério no fundo dos meus olhos, enquanto uma brisa morna soprava de leve esvoaçando o lenço colorido sobre sua cabeça.
Seu primo é desentupidor de fossas, Mário Augusto. É por isso que ele transpira daquela maneira. Devo ter coçado um milhão de vezes a pele de uma de minhas pálpebras, pois que ainda tropegava sobre as minhas próprias dúvidas formigantes que eram como pedrinhas no meu kichute novo. Continuamos andando, parando em seguida bem embaixo do sinal vermelho da Avenida Sete:
Mas mãe, o seu Alderval, da rua de cima, trabalha no Limpa Fossas Confiança e nem por isso ele fede tanto a merda.
Seu primo faz um serviço diferente, Mário Augusto. É por isso.
Que trabalho, mãe?
Um trabalho mais profundo. Fiquei pensando que tipo de trabalho mais profundo seria aquele que não se igualava ao trabalho do seu Alderval, da rua de cima. E que também não fedesse tanto, ora! O sinal abriu. Atravessamos. Ela agora me puxava com certa impaciência pelas mãos:
O seu Defunto disse que ele não evoluiu.
O Defunto não sabe o que diz.
Por quê?            
Porque... bom, porque as pessoas evoluem de maneiras diferentes, Mário Augusto.
Como assim, mãe?
Tem coisas que é melhor não entender, Mário Augusto.
Era mesmo. Passaram-se alguns minutos de silencio até eu me convencer de que não havia mais perguntas que eu pudesse arrancar do vento seco daquela manhã abrasadora de agosto daquele ano de 81, de maneira que demos por encerrado aquela estranha conversa. E então cortamos pela Quintino Bocaíuva, fugindo da tirania do sol que ardia implacavelmente.

VI – QUANTO MAIS APERTO MEUS OLHOS, MAIS PRÓXIMO EU FICO DOS MEUS FANTASMAS

A CASA DE MINHA TIA AMÁLIA FICAVA NA RUA DETRÁS, descendo uma enorme ladeira que dava para o rio. Era uma casa doce e triste de madeira como tantas outras casas doces e tristes de madeiras que havia naquele enorme declive, na Rua São Pedro, bairro de Educandos. Até hoje tenho sonhos com esta casa. Em um deles, adentro nela devagar. Vejo a pequena sala. Os móveis duros. O retrato antigo e oval dos meus avós, pendurados na parede. Um rádio chiando as novelas. O elixir da longa vida. As pílulas para o amarelão:“TOMA PÍLULA DO NORTE, PRA ACABAR COM O AMARELÃO.”A cortina puída e triste separando os dois cômodos. Mais lá pro fundo, a velha cozinha, o pote, o galo de gesso sobre a cristaleira, os pratos de alumínio, e finalmente minha tia no quintal abanando o peixe sobre a brasa. Sua aparência de árvore milenar. Sorri. Dez anos mais velha que minha mãe. Mas o mesmo espírito valente. Era um domingo, e como sucedia aos domingos pela manhã, eu ficava aos cuidados de tia Amália, enquanto minha mãe saía para cumprir seus deveres religiosos e também visitar alguns parentes, sem alguma preocupação quanto ao horário de retorno. Aí então eu ganhava a liberdade daquele quintal mágico e nele gozava os folguedos de minha tenra idade, subindo nas árvores, cavando minhocas, me divertindo á valer. Só não contava naquele dia com a presença dele. Sua cabeça achatada. As costas nuas e largas, que logo verifiquei tratar-se de Raimundo Perfumado, sentado em um banco de madeira improvisado ao pé da goiabeira, onde, afoito, eu já tencionava subir. Ainda de costas e em silencio, ele contava com seus dedos sujos e trêmulos, umas notas de cruzeiro, já dando leve mostra de embriaguez. E como se notasse instintivamente a minha pequena sombra petrificada no meio do quintal, chamou-me com sua voz de trovão. Caminhei devagar para ele:
Toma aqui, garoto! Vai lá no Defunto e me compra uma garrafa de pinga. Não queres saber de minha profissão?
Fiz que sim, balançando minha cabeça. Deu-me então os cruzeiros e eu saí em disparada subindo de um fôlego só, a ladeira, rumo á taberna.

VII – MERGULHANDO NA MERDA

LEMBRO-ME BEM DE COMO ELE ABRIU COM OS SEUS DENTES ESTILHAÇADOS a tampa daquela garrafa para em seguida entornar de uma golada só todo o líquido maldito que nela havia, sem que restasse uma única gota sequer. Depois, fitou-me com seus imensos olhos de fogo – ao mesmo tempo, que soltava vapores quentes de suas narinas animalescas, como se fosse um dragão ou a própria figura do Minotauro. Tia Amália, com sua calma serena, largou um pouco de lado o peixe que assava e foi encher um balde de creolina. Ele então caminhou cambaleante na direção da fossa que ficava nos fundos. Segui no seu encalce. Um sol banido e desesperado lutava para ver por entre as nesgas de nuvens densas que se formaram estranhas e repentinamente no céu, a cena dantesca que se desenvolveria dali há instantes. O fato é que Raimundo Perfumado abriu solenemente a porta daquele banheiro de madeira e entrou. Recuei ante o impacto do fedor insuportável que soprara lá de dentro. Então para minha surpresa, o vi mergulhar naquela fossa, retornando segundos depois, e acreditem ou não, pudesse eu aqui expressar com enorme franqueza o que os meus olhos de menino testemunharam, não conseguiria jamais detalhar pormenorizadamente, no dorso desta folha em branco, tamanho nojo e horror que senti ao vê-lo ali em pé, parado diante de mim, o corpo todo coberto de larvas e tapurus que ainda lhe escorriam vivos e pegajosos. Eram como os filmes de zumbis e mortos vivos saindo de suas sepulturas e pântanos, que mais adiante viriam povoar-me o imaginário durante as matinês daquelas tardes quentes e ociosas de minha adolescência, nos cinemas do centro de Manaus. Mais nada comparado a que os meus olhos de criança viram. Naquele dia eu entendi porque afinal o apelidavam de Raimundo Perfumado.

VIIIA ORIGEM DE RAIMUNDO PERFUMADO.

DERAM-LHE O MENINO JÁ BEM ESTRAGADINHO, enrolado em um pano velho, bem na entrada da Santa Casa de Misericórdia, conta minha mãe. Tinha o crânio afundado e a pelezinha desprendendo-se do corpo. Havia sobrevivido milagrosamente ás inúmeras pauladas e facadas que lhe foram desferidas ainda no ventre de sua mãe biológica, que não tivera a mesma sorte. O pai não queria mesmo que ele existisse. Morreria ali, não fosse minha vó Ernestina derramar-se de tamanha compaixão e amor pela criaturinha, levando-a consigo, passando, pois, a tratá-lo como um verdadeiro filho. Ela e meu avô Elizeu, que sempre a apoiou em suas decisões (é bom que se diga isso) deram à criança muito amor e carinho, despertando a ira no seio de uma parte da família que viam na atitude dos meus avós, um ato extremo e descabido. Ora, onde já se viu, só pode estar louca, vó Ernestina. Esse monstrinho ainda vai nos dar muita dor de cabeça.Alguns já prediziam. Apesar dos pesares, aqueles anos foram os melhores anos na vida de Raimundo Perfumado, garante minha mãe. Aconteceu que, quando ele inteirou quinze anos de idade, vó Ernestina entregou-se a uma depressão profunda ocasionada pelo desaparecimento de meu avô Elizeu que enfartou bem longe dela, em uma de suas viagens ao Acre. Contam que o encontraram sentado em um vaso sanitário, na rodoviária. A despeito do ocorrido, o sofrimento de minha vó foi se agravando de tal modo, que meses depois, ela viria também a falecer, não de enfarto ou de outra doença qualquer, mas de enormes saudades de meu avô, e disso entendia muito bem minha mãe.
O mundo ficou mais feio para Raimundo Perfumado. Era visto o tempo todo carrancudo, revoltado. A alma escurecida. Tratado á revelia pela família como um selvagenzinho, ou garoto de recados, aos dezessete, largou o colégio e tomou gosto pela bebida. Era frequente vê-lo embriagado pelas ruas, proferindo impropérios ou riscando o asfalto com o seu terçado amolado, ameaçando quem o provocasse. Mas só a quem o provocasse – deixa claro, minha mãe – pois que Raimundo Perfumado não era de causar desavença alguma. O curioso é que ela e minha tia Amália, acabaram tornando-se seus anjos protetores. Houvesse o que houvesse, sempre estavam ali para protegê-lo com unhas e dentes. Não foram poucas as vezes, afirma minha mãe, que precisou apartar as brigas de Raimundo Perfumado e livrá-lo das mãos da polícia. Certa feita, em uma de suas bebedeiras no Bar do Defunto, Raimundo quase mandou á sete palmos de terra, o irmão caçula de Zé Arigó. Mas foi só para se defender que ele teve que sacar o seu terçado afiado, e com um único golpe, abrir o ventre do desafeto. Foi a maior fuzarca. A polícia baixou em peso na Rua São Pedro, na captura dele. Zé Arigó jurando matá-lo. As pessoas apontavam para a casa de tia Amália. Minha mãe foi avisada as pressas, e junto com minha tia, tiveram que escondê-lo dentro da fossa, onde ele permaneceu durante todo aquele dia. Agora não me perguntem se foi á partir deste episódio inusitado, que Raimundo Perfumado descobrira sua verdadeira vocação. O fato é que desentupir fossas passou a ser de menos. Bastava alguém lhe dar alguns trocados e uma garrafa cheinha de pinga, que ele dava cabo direitinho do serviço. E naquela época – vale lembrar – muitos dos moradores da São Pedro e de outras ruas adjacentes do bairro, possuíam fossas secas que normalmente costumavam entupir, e quando isso ocorria, Raimundo Perfumado era chamado para resolver o problema. E ele fazia com tal perícia. Não tardou para que mais tarde ganhasse o alcunho que lhe valeria para o resto de sua vida...

IX – O FINAL DA RUA

MAS FOI NUM FINALZINHO DE TARDE DAQUELE DOMINGO DE AGOSTO DE 83, que fiquei mais uma vez frente a frente com Raimundo Perfumado. Um dos filhos de seu Alderval veio correndo avisar que Raimundo e Zé Arigó se engalfinhavam. Minha mãe largou sua máquina de costura e ganhou desesperada a rua em direção á Taberna do Defunto. Também não pensei duas vezes, partindo atrás dela. Quando lá chegamos, Zé Arigó já sangrava no chão, enquanto Raimundo Perfumado gingava como um capoeirista, limpando com a costa da mão, o sangue que escorria da boca. Tem que chamar a polícia pra prender este homem. Já outros diziam: Mas foi Zé Arigó que provocou a briga. Opiniões se dividiam em volta do corpo furado de Zé. Mas foi só pra assustar. Raimundo não matava ninguém. Fiquei de longe olhando a viatura chegar. Vi também quando Raimundo Perfumado começou a riscar o asfalto com seu terçado amolado,desafiando os guardas que queriam cercá-lo. Minha mãe gritava desesperada de lá, Ninguém toca nele! Ninguém toca nele! O som do terçado no asfalto fazia zimmmm-zummm e eu nunca me esqueço ozimmmm-zummm daquela arma afiada riscando o couro da rua, parecendo rasgar uma vida. Aí ele tropeçou nas próprias pernas e caiu. A arma voou longe. Não deu tempo dele apanhar, não. Eles o imobilizaram e o algemaram. Meteram-lhe logo no camburão junto com Zé Arigó. Acompanhava tudo do outro lado da rua. Meu coração pedia para que eles levassem embora Raimundo Perfumado pra sempre. Ao mesmo tempo, sentia muita pena dele e de minha mãe que sofreria muito. Mas aí quando tentaram fechar a bocarra detrás do monstro de lata, minha mãe meteu-se sentada na sua beirada, e cruzandofirme seus braços, disse:
Se levarem ele embora, vão ter que me levar junto também. Respondeu obstinada, minha mãe. O lenço colorido brilhando sobre sua cabeça. A rua toda olhava. Eles bem que tentaram fechar a bocarra detrás do monstro metálico, mas eram impedidos pela teimosia de minha mãe:
Saia daí, senhora! Disse um dos cabos.Ela mantinha os braços cruzados como uma santa possuída de fúria e bondade terrena:
Daqui ninguém me arranca, e o senhor que se atreva! Disse ela ao soldadinho.
Então a senhora vai junto! Respondeu valente um dos cabos. Quando finalmente a empurraram para dentro, corri desesperado e me agarrei a ela. Fechei bem meus olhos e a abracei com toda minha força. Mãe! Gritei. Os cabos se batiam diante do apelo desesperador de minha mãe e das lágrimas que me desciam torrencialmente dos olhos. Acabaram desistindo de levar preso, Raimundo Perfumado. Tiraram-lhe as algemas e o deixaram livre. Lembro-me dele pulando da boca do monstro. Os curiosos se afastandopara ele poder passar. Seguiu transtornado, costurando a rua. Minha mãe gritava atrás dele: Vamos pra casa, Raimundo! Chegou a puxá-lo pelo braço. Ele virou-se furioso para ela. Os punhos erguidos bem alto, em menção de murro. Os olhos de minha mãe paralisados de terror:
Bate se for homem, desgraçado!
Me deixa em paz, Eunice!
E baixando os punhos devagar, os olhos ardendo de lágrimas e de ódio, deu as costas a ela, seguindo cambaleante o seu caminho. Eram seis horas da tarde daquele domingo. Não esqueço nunca mais o semblante estupefato de minha mãe, como se olhasse sem entender, um cavalo indomado que tomava o atalho do céu. No final da rua, bem na esquina, havia outra taberna escura. Raimundo Perfumado escapuliu pra dentro dela. Nunca mais o veria de novo. O irmão caçula de Zé, já o esperava...







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