“Dancemos,
nós os vivos, á beira da cratera
Uma última e
agonizante dança
Mas que seja
uma dança...”
Henry
Miller
PARTE I - RAIMUNDO PERFUMADO.
FOI
LÁ PRA TRÁS, BEM LÁ PRA TRÁS, na
ocasião dos meus onze anos de idade, quando fiquei pela primeira vez frente a
frente com Raimundo Perfumado. Ele lá sentado na varanda de casa. Sua silhueta desfocada
projetada do outro lado do vidro da porta de correr.
Vem cá com o teu primo, garoto!
Gritava
de lá com a voz grossa e arrastada de quem havia bebido todas as garrafas do
mundo. Sete e pouco da manhã. Lembro-me bem. Sempre quando ele ia lá em casa,
eu me escondia debaixo da máquina de costura de minha mãe. Eu ainda não sabia
de sua profissão profunda, mas já sentia de longe, o fedor de merda seca
misturada com aguardente que emanavam daquela sua pele de lagarto. Vem cá,
garoto! Gritava ele. Naquele dia não deu pra fugir dele, não. Havia minha mãe
que ralhava comigo enquanto fritava seus bolinhos de chuva no meio do verão de
Manaus.
Vai lá ver o que ele quer Mário Augusto. Ele é
teu primo, cuida!
Fui ao seu encontro me borrando de medo. Seu
fedor escroto de merda. A cabeça troncha como o do Homem Elefante. Ah,
assombrava-me a existência daquele homem.
II – A
VIDA DA GENTE É UMA MERDA BOIANDO.
CHEGA
MAIS PERTO, GAROTO!
Aproximei-me dele bem devagar. Ele sorria de
lá mostrando seus dentes estilhaçados. A camisa sobre um dos ombros euma
garrafa de Chora Rita ao pé da cadeira de embalar, de meu finado pai. Ele então
tomou uma golada consistente daquele veneno. Eu fiquei olhando pra ele tentando
manter a calma. O pêndulo do relógio da parede, incansável, me provocava ir á
escola. Aí ele me perguntou:
Sabe por que a cobra devora o jacaré, garoto?
Han? Fiz que não sabia, olhando envergonhado para o chão. Por que o jacaré é um
covarde e a cobra sente muita fome. Não seja um covarde. Agora da cá um abraço
no primo, seu merdinha! E me abraçou contra minha vontade. Abraçou bem forte.
Contou outras histórias. Fui me acostumando encostado a sua pele. Seu odor de
merda seca me impregnando o corpo e a casa toda. O curioso é que quando somos
crianças, as nossas almas são puras e francas, de modo que perguntei:
Por que você fede tanto a cocô?
Demorou a responder, passando a mão na barba.
Os pelos compridos e afiados escapando de seu nariz grosseiro. Deu outra golada
considerada na maldita, e finalmente me respondeu:
Por que a vida da gente é uma merda boiando,
garoto. Foi o que ele disse. Naquele momento, não compreendi muito bem. Só mais
tarde é que viria entender. Minha mãe já se aproximava com um café bem quente e
com seus bolinhos de chuva também.
II –
A FESTA PERFUMADA
A SEGUNDA VEZ QUE FIQUEI FRENTE A FRENTE COM
RAIMUNDO PERFUMADO, foi durante os festejos de São João na casa de minha tia
Olívia, no Bairro de São Jorge, ainda naquele verão escaldante de 81. A família
toda reunida. No terreiro limpo e capinado, uma enorme fogueira ardia em
chamas. A gurizada envolta dela brincava de atirar bombinhas e peidos-de-velhas
umas nas outras. Minha mãe toda linda e contente – com seu lenço colorido sobre
a cabeça – servia aluás e outras iguarias do tipo. A lua glamorosa, e um céu
estalando de estrelas. Tudo transcorrendo na santa paz. Foi quando vi surgir
dos fundos do quintal, a sombra enorme e desgraçada de Raimundo Perfumado
eclipsando a lua. Descalço e só de bermudas, pôs-sea dançar a sua dança de
curandeiro. Apertava contra o peito, uma garrafa de Chora Rita. As crianças,
apavoradas, correram todas para perto dos seus pais. Os convidados protestavam
balançando suas cabeças, em gestos de desaprovação. Raimundo Perfumado era como
um disco arranhado arranhando a harmonia da festa. Fiquei ali olhando ele
dançar sua dança de curandeiro. Sua enorme sombra avolumada, projetada no
limiar do muro branco que cercava todo o quintal. Quando me viu, olhou sério e
gritou:
Venha cá, garoto!
Avancei
subjugado que era pela sua voz cavernosa. Aproximei-me bem dele. Perto o
bastante para ver o reflexo fantasmagórico da fogueira que queimava e tremia
dentro de suas pupilas vermelhas e dilatadas. Ele parecia um demônio feliz.
Assustado, corri até a cozinha, para perto de minha mãe. Ao lá chegar, dei com
minha tia Olívia pedindo profundas desculpas a ela:
Me desculpa, minha irmã. É que contratei os
serviços de capinagem de Raimundo Perfumado.
Não me deves desculpas nenhuma. Raimundo
Perfumado não é nenhum bicho. E eu não admito que ninguém faça mal a ele nessa
festa, senão vão se ver comigo.
Disse
imperativa, minha mãe. E virando-se para mim: E você, Mário Augusto, pare de
ficar se escondendo do seu primo, ouviu? E me pegando pelos braços, ganhamos o
quintal a passos lépidos, com minha mãe levando um prato de comida nas mãos. O
seu lenço colorido sobre a cabeça. Seus passos firmes e voluntariosos de mãe.
Sentia muito orgulho caminhando ao lado de minha mãe. Admirava a sua beleza e a
sua coragem. Só não entendia até ali a razão pela qual ela defendia com unhas e
dentes o Raimundo Perfumado. Era como se ele tivesse saído de dentro de seu
ventre.
Tem coisas que é melhor não entender, Mário
Augusto.
Ela viria me dizer isso mais lá pra frente.
III –
A GRANDE FOSSA ABERTA
O LUAR METÁLICO E DENSO DERRAMAVA-SE CHOROSO
SOBRE O QUINTAL. Ajoelhado, Raimundo Perfumado beijava calorosamente as mãos de
minha mãe, até deixá-la em profundo embaraço. Depois, agradeceu pelo prato de
comida; bebeu, dançou, cantou as modinhas tristes de São João. Sozinho agora em
seu canto escuro, tal e qual um bicho do mato, Raimundo Perfumado era a própria
personificação da solidão, da alegria e da dor. A grande fossa humana aberta
espalhando seu doce aroma de merda, pela noite de minhas memórias...
IV –
TEM COISAS QUE É MELHOR NÃO ENTENDER, MÁRIO AUGUSTO.
ONZE E POUCO DA MANHÃ DAQUELE COMECINHO DE
AGOSTO. O centro da cidade era um alvoroço. Atravessávamos a Marechal Deodoro
com certa urgência. Agarrava-me a mão de minha mãe com relativa alegria que nem
me importava com o sol tirânico que ardia sem piedade sobre as nossas moleiras.
Mas havia todas aquelas perguntas que me atazanavam a cabeça. Uma delas saiu
abrupta pela boca quando alcançamos á Praça da Polícia:
Mãe, por que chamam o Raimundo Perfumado de
Raimundo Perfumado, se ele fede tanto a merda seca? Acho que foi como uma
cotovelada no vento. É, foi. Ela parou e fuzilou-me com seus olhos de santa
aborrecida:
Seu primo não fede, Mário Augusto. Ele cheira,
ouviu bem?
Não, mãe, ele fede a merda sim. Teimei. Ela
olhou bem sério no fundo dos meus olhos, enquanto uma brisa morna soprava de
leve esvoaçando o lenço colorido sobre sua cabeça.
Seu primo é desentupidor de fossas, Mário
Augusto. É por isso que ele transpira daquela maneira. Devo ter coçado um
milhão de vezes a pele de uma de minhas pálpebras, pois que ainda tropegava
sobre as minhas próprias dúvidas formigantes que eram como pedrinhas no meu
kichute novo. Continuamos andando, parando em seguida bem embaixo do sinal
vermelho da Avenida Sete:
Mas mãe, o seu Alderval, da rua de cima,
trabalha no Limpa Fossas Confiança e nem por isso ele fede tanto a merda.
Seu primo faz um serviço diferente, Mário
Augusto. É por isso.
Que trabalho, mãe?
Um trabalho mais profundo. Fiquei pensando que
tipo de trabalho mais profundo seria aquele que não se igualava ao trabalho do
seu Alderval, da rua de cima. E que também não fedesse tanto, ora! O sinal
abriu. Atravessamos. Ela agora me puxava com certa impaciência pelas mãos:
O seu Defunto disse que ele não evoluiu.
O Defunto não sabe o que diz.
Por quê?
Porque... bom, porque as pessoas evoluem de
maneiras diferentes, Mário Augusto.
Como assim, mãe?
Tem coisas que é melhor não entender, Mário
Augusto.
Era mesmo. Passaram-se alguns minutos de
silencio até eu me convencer de que não havia mais perguntas que eu pudesse
arrancar do vento seco daquela manhã abrasadora de agosto daquele ano de 81, de
maneira que demos por encerrado aquela estranha conversa. E então cortamos pela
Quintino Bocaíuva, fugindo da tirania do sol que ardia implacavelmente.
VI –
QUANTO MAIS APERTO MEUS OLHOS, MAIS PRÓXIMO EU FICO DOS MEUS FANTASMAS
A CASA DE MINHA TIA AMÁLIA FICAVA NA RUA
DETRÁS, descendo uma enorme ladeira que dava para o rio. Era uma casa doce e
triste de madeira como tantas outras casas doces e tristes de madeiras que
havia naquele enorme declive, na Rua São Pedro, bairro de Educandos. Até hoje
tenho sonhos com esta casa. Em um deles, adentro nela devagar. Vejo a pequena
sala. Os móveis duros. O retrato antigo e oval dos meus avós, pendurados na
parede. Um rádio chiando as novelas. O elixir da longa vida. As pílulas para o
amarelão:“TOMA PÍLULA DO NORTE, PRA
ACABAR COM O AMARELÃO.”A cortina puída e triste separando os dois cômodos.
Mais lá pro fundo, a velha cozinha, o pote, o galo de gesso sobre a
cristaleira, os pratos de alumínio, e finalmente minha tia no quintal abanando
o peixe sobre a brasa. Sua aparência de árvore milenar. Sorri. Dez anos mais
velha que minha mãe. Mas o mesmo espírito valente. Era um domingo, e como
sucedia aos domingos pela manhã, eu ficava aos cuidados de tia Amália, enquanto
minha mãe saía para cumprir seus deveres religiosos e também visitar alguns
parentes, sem alguma preocupação quanto ao horário de retorno. Aí então eu
ganhava a liberdade daquele quintal mágico e nele gozava os folguedos de minha
tenra idade, subindo nas árvores, cavando minhocas, me divertindo á valer. Só
não contava naquele dia com a presença dele. Sua cabeça achatada. As costas
nuas e largas, que logo verifiquei tratar-se de Raimundo Perfumado, sentado em
um banco de madeira improvisado ao pé da goiabeira, onde, afoito, eu já
tencionava subir. Ainda de costas e em silencio, ele contava com seus dedos
sujos e trêmulos, umas notas de cruzeiro, já dando leve mostra de embriaguez. E
como se notasse instintivamente a minha pequena sombra petrificada no meio do
quintal, chamou-me com sua voz de trovão. Caminhei devagar para ele:
Toma aqui, garoto! Vai lá no Defunto e me
compra uma garrafa de pinga. Não queres saber de minha profissão?
Fiz que sim, balançando minha cabeça. Deu-me
então os cruzeiros e eu saí em disparada subindo de um fôlego só, a ladeira,
rumo á taberna.
VII –
MERGULHANDO NA MERDA
LEMBRO-ME BEM DE COMO ELE ABRIU COM OS SEUS
DENTES ESTILHAÇADOS a tampa daquela garrafa para em seguida entornar de uma
golada só todo o líquido maldito que nela havia, sem que restasse uma única
gota sequer. Depois, fitou-me com seus imensos olhos de fogo – ao mesmo tempo,
que soltava vapores quentes de suas narinas animalescas, como se fosse um
dragão ou a própria figura do Minotauro. Tia Amália, com sua calma serena,
largou um pouco de lado o peixe que assava e foi encher um balde de creolina.
Ele então caminhou cambaleante na direção da fossa que ficava nos fundos. Segui
no seu encalce. Um sol banido e desesperado lutava para ver por entre as nesgas
de nuvens densas que se formaram estranhas e repentinamente no céu, a cena
dantesca que se desenvolveria dali há instantes. O fato é que Raimundo
Perfumado abriu solenemente a porta daquele banheiro de madeira e entrou.
Recuei ante o impacto do fedor insuportável que soprara lá de dentro. Então
para minha surpresa, o vi mergulhar naquela fossa, retornando segundos depois,
e acreditem ou não, pudesse eu aqui expressar com enorme franqueza o que os
meus olhos de menino testemunharam, não conseguiria jamais detalhar
pormenorizadamente, no dorso desta folha em branco, tamanho nojo e horror que
senti ao vê-lo ali em pé, parado diante de mim, o corpo todo coberto de larvas
e tapurus que ainda lhe escorriam vivos e pegajosos. Eram como os filmes de
zumbis e mortos vivos saindo de suas sepulturas e pântanos, que mais adiante
viriam povoar-me o imaginário durante as matinês daquelas tardes quentes e
ociosas de minha adolescência, nos cinemas do centro de Manaus. Mais nada
comparado a que os meus olhos de criança viram. Naquele dia eu entendi porque
afinal o apelidavam de Raimundo Perfumado.
VIII – A
ORIGEM DE RAIMUNDO PERFUMADO.
DERAM-LHE O MENINO JÁ BEM ESTRAGADINHO,
enrolado em um pano velho, bem na entrada da Santa Casa de Misericórdia, conta
minha mãe. Tinha o crânio afundado e a pelezinha desprendendo-se do corpo.
Havia sobrevivido milagrosamente ás inúmeras pauladas e facadas que lhe foram
desferidas ainda no ventre de sua mãe biológica, que não tivera a mesma sorte.
O pai não queria mesmo que ele existisse. Morreria ali, não fosse minha vó
Ernestina derramar-se de tamanha compaixão e amor pela criaturinha, levando-a
consigo, passando, pois, a tratá-lo como um verdadeiro filho. Ela e meu avô
Elizeu, que sempre a apoiou em suas decisões (é bom que se diga isso) deram à
criança muito amor e carinho, despertando a ira no seio de uma parte da família
que viam na atitude dos meus avós, um ato extremo e descabido. Ora, onde já se viu, só pode estar louca, vó
Ernestina. Esse monstrinho ainda vai nos dar muita dor de cabeça.Alguns já
prediziam. Apesar dos pesares, aqueles anos foram os melhores anos na vida de
Raimundo Perfumado, garante minha mãe. Aconteceu que, quando ele inteirou
quinze anos de idade, vó Ernestina entregou-se a uma depressão profunda
ocasionada pelo desaparecimento de meu avô Elizeu que enfartou bem longe dela,
em uma de suas viagens ao Acre. Contam que o encontraram sentado em um vaso
sanitário, na rodoviária. A despeito do ocorrido, o sofrimento de minha vó foi
se agravando de tal modo, que meses depois, ela viria também a falecer, não de
enfarto ou de outra doença qualquer, mas de enormes saudades de meu avô, e
disso entendia muito bem minha mãe.
O mundo ficou mais feio para Raimundo Perfumado.
Era visto o tempo todo carrancudo, revoltado. A alma escurecida. Tratado á
revelia pela família como um selvagenzinho, ou garoto de recados, aos
dezessete, largou o colégio e tomou gosto pela bebida. Era frequente vê-lo
embriagado pelas ruas, proferindo impropérios ou riscando o asfalto com o seu
terçado amolado, ameaçando quem o provocasse. Mas só a quem o provocasse –
deixa claro, minha mãe – pois que Raimundo Perfumado não era de causar
desavença alguma. O curioso é que ela e minha tia Amália, acabaram tornando-se
seus anjos protetores. Houvesse o que houvesse, sempre estavam ali para protegê-lo
com unhas e dentes. Não foram poucas as vezes, afirma minha mãe, que precisou
apartar as brigas de Raimundo Perfumado e livrá-lo das mãos da polícia. Certa
feita, em uma de suas bebedeiras no Bar do Defunto, Raimundo quase mandou á
sete palmos de terra, o irmão caçula de Zé Arigó. Mas foi só para se defender
que ele teve que sacar o seu terçado afiado, e com um único golpe, abrir o
ventre do desafeto. Foi a maior fuzarca. A polícia baixou em peso na Rua São
Pedro, na captura dele. Zé Arigó jurando matá-lo. As pessoas apontavam para a
casa de tia Amália. Minha mãe foi avisada as pressas, e junto com minha tia,
tiveram que escondê-lo dentro da fossa, onde ele permaneceu durante todo aquele
dia. Agora não me perguntem se foi á partir deste episódio inusitado, que
Raimundo Perfumado descobrira sua verdadeira vocação. O fato é que desentupir
fossas passou a ser de menos. Bastava alguém lhe dar alguns trocados e uma
garrafa cheinha de pinga, que ele dava cabo direitinho do serviço. E naquela
época – vale lembrar – muitos dos moradores da São Pedro e de outras ruas
adjacentes do bairro, possuíam fossas secas que normalmente costumavam entupir,
e quando isso ocorria, Raimundo Perfumado era chamado para resolver o problema.
E ele fazia com tal perícia. Não tardou para que mais tarde ganhasse o alcunho
que lhe valeria para o resto de sua vida...
IX – O
FINAL DA RUA
MAS
FOI NUM FINALZINHO DE TARDE DAQUELE DOMINGO DE AGOSTO DE 83, que fiquei mais
uma vez frente a frente com Raimundo Perfumado. Um dos filhos de seu Alderval
veio correndo avisar que Raimundo e Zé Arigó se engalfinhavam. Minha mãe largou
sua máquina de costura e ganhou desesperada a rua em direção á Taberna do
Defunto. Também não pensei duas vezes, partindo atrás dela. Quando lá chegamos,
Zé Arigó já sangrava no chão, enquanto Raimundo Perfumado gingava como um
capoeirista, limpando com a costa da mão, o sangue que escorria da boca. Tem
que chamar a polícia pra prender este homem. Já outros diziam: Mas foi Zé Arigó
que provocou a briga. Opiniões se dividiam em volta do corpo furado de Zé. Mas
foi só pra assustar. Raimundo não matava ninguém. Fiquei de longe olhando a
viatura chegar. Vi também quando Raimundo Perfumado começou a riscar o asfalto
com seu terçado amolado,desafiando os guardas que queriam cercá-lo. Minha mãe
gritava desesperada de lá, Ninguém toca nele! Ninguém toca nele! O som do
terçado no asfalto fazia zimmmm-zummm e eu nunca me esqueço ozimmmm-zummm
daquela arma afiada riscando o couro da rua, parecendo rasgar uma vida. Aí ele
tropeçou nas próprias pernas e caiu. A arma voou longe. Não deu tempo dele
apanhar, não. Eles o imobilizaram e o algemaram. Meteram-lhe
logo no camburão junto com Zé Arigó. Acompanhava tudo do outro lado da rua. Meu
coração pedia para que eles levassem embora Raimundo Perfumado pra sempre. Ao
mesmo tempo, sentia muita pena dele e de minha mãe que sofreria muito. Mas aí
quando tentaram fechar a bocarra detrás do monstro de lata, minha mãe meteu-se
sentada na sua beirada, e cruzandofirme seus braços, disse:
Se levarem
ele embora, vão ter que me levar junto também. Respondeu obstinada, minha mãe.
O lenço colorido brilhando sobre sua cabeça. A rua toda olhava. Eles bem que
tentaram fechar a bocarra detrás do monstro metálico, mas eram impedidos pela
teimosia de minha mãe:
Saia daí,
senhora! Disse um dos cabos.Ela mantinha os braços cruzados como uma santa possuída
de fúria e bondade terrena:
Daqui ninguém
me arranca, e o senhor que se atreva! Disse ela ao soldadinho.
Então a
senhora vai junto! Respondeu valente um dos cabos. Quando finalmente a
empurraram para dentro, corri desesperado e me agarrei a ela. Fechei bem meus
olhos e a abracei com toda minha força. Mãe! Gritei. Os cabos se batiam diante
do apelo desesperador de minha mãe e das lágrimas que me desciam
torrencialmente dos olhos. Acabaram desistindo de levar preso, Raimundo
Perfumado. Tiraram-lhe as algemas e o deixaram livre. Lembro-me dele pulando da
boca do monstro. Os curiosos se afastandopara ele poder passar. Seguiu
transtornado, costurando a rua. Minha mãe gritava atrás dele: Vamos pra casa,
Raimundo! Chegou a puxá-lo pelo braço. Ele virou-se furioso para ela. Os punhos
erguidos bem alto, em menção de murro. Os olhos de minha mãe paralisados de
terror:
Bate
se for homem, desgraçado!
Me
deixa em paz, Eunice!
E
baixando os punhos devagar, os olhos ardendo de lágrimas e de ódio, deu as
costas a ela, seguindo cambaleante o seu caminho. Eram seis horas da tarde
daquele domingo. Não esqueço nunca mais o semblante estupefato de minha mãe,
como se olhasse sem entender, um cavalo indomado que tomava o atalho do céu. No
final da rua, bem na esquina, havia outra taberna escura. Raimundo Perfumado
escapuliu pra dentro dela. Nunca mais o veria de novo. O irmão caçula de Zé, já
o esperava...