I – O REGRESSO
O pub nojentinho tinha um aspecto mais degradante do
que os outros dias; do que a última vez que eu botara meus pés ali naquele bar
da Lobo D’Almada. Todos se portavam e bebiam massacradamente como se algum mal,
uma praga, uma peste bubônica ou sei lá o quê, houvesse atingido em cheio o
lugar e todas aquelas criaturas ali. Até o quadro de Nossa Senhora, que ainda
teimosamente permanecia presa à parede, sorria com certa indulgência. O ar não
funcionava e fazia um calor escroto. Havia também aquele cheiro de queijo
rançoso misturado ao suor brutal daquela gente. Um bartender (uma espécie de leão de chácara) me serviu uma cerveja e
lembrou-me que eu tinha que pagar adiantado. Pelo menos eles não haviam
aumentado o preço da cerveja, o que me deixou mais contente. Mas havia algo de
muito sombrio pairando por ali. “Não sei
por que raios tenho sempre que parar aqui. Não há nada de atrativo nessa merda
de lugar!” Resmunguei dando um gole na bebida. De repente, uma puta com uma
feiura medonha arrastou-se como uma aranha da outra ponta do balcão e veio
sentar-se bem ao meu lado. Trazia consigo um copo de plástico vazio e disse:
“Enche meu copo, bebê! Ele anda vazio como a minha
vida.” Disse assim mesmo, abrindo um sorriso demente. Sua boca era uma fenda
negra sem dentes. Ficou ali me olhando um tempão e depois perguntou:
“Veio atrás de Sônia, não foi?”
“Hein?”
“Veio, sei que veio. Todos aqui vêm atrás de Sônia. É
ela que dá sentido ao lugar. Tem cigarro?” Atirei o Macbeth amarrotado sobre o
balcão. Empregado àquela altura da vida dava-me ao luxo de fumar cigarros
caros.
“Macbeth? Hummmm chic, hein?” Ela pegou um e tragou
sem arredar de mim aqueles olhos fundos e monstruosos.
“Então, bebê? Veio ou não veio atrás de Sônia?”
“Não sei de quem se trata, senhorita. Entrei aqui só
para tomar uma cerveja em paz, só isso.”
“É o que todos dizem. Mas na verdade todos vêm mesmo
atrás de Sônia. Olhe só pra eles! É de causar pena.” Olhei e o que vi era mesmo
desolador. Os bebuns tinham olhos fundos e esbugalhados como se quisessem pular
fora das suas órbitas. Alguns deles não conseguiam sequer segurar direito seus
copos de plásticos transparentes porque as mãos tremiam muito. Um
SURTO-DELIRIUM-TREMENS-COLETIVO, era o que eu via, mas não impulsionado pela
bebedeira, mas por uma outra razão: a ausência de Sônia. Era o que mais tarde eu viria entender.
“Estão nesse estado desde ontem, a espera de Sônia.
Mas o que eles não sabem é que Sônia não vem. Nem hoje e nem amanhã. Enche mais
um pouco meu copo, bebê?” Obedeci. “E sabes por que ela não vem?” Continuou, me
olhando com seus olhos fundos e sorrindo com sua boca de abismo.
“Sabe por quê?”
“Não, não sei senhorita.”
“Por que Sônia foi presa quando desembarcava no porto.
Eu estava lá e vi tudo. Também esperava por ela. Mas ela foi interceptada.
IN-TER-CEP-TA-DA!! Coisa triste de se ver.”
“E por que prenderam esta tal de Sônia?” Aventurei-me
em perguntar já começando a achar aquilo um pouco interessante.
“Porque alguém cantou as pedras do jogo e a casa caiu,
moço! Quase uma tonelada. Daria pra abastecer por um ano esse lugar e todas essas
almas fodidas.” Aí a porta do pub se abriu e entraram dois policiais baixos e
taciturnos; meteram-se lá pros fundos, voltando em seguida com uma tristeza
redobrada. Ela disse:
“Entram e saem atrás do dinheiro de Sônia, esses dois
infelizes aí.”
“Todos parecem sentir mesmo a necessidade de Sônia.”
Fui embarcando naquela viagem.
“Sônia é Deus, moço. Misericórdia!”
Apossou-se de minha cerveja e foi enchendo seu copo.
Deu uma golada nele e o despejou com violência sobre o balcão. Já estava
bêbada.
“Mas o que eles não sabem moço – prosseguiu ela – é
que eu posso arranjar um pouco de Sônia pra eles. Sou a única aqui que posso.”
“Mesmo?”
“Mesmo. E aí? Interessado?”
“Não, não estou.”
Pedi outra cerveja. Depois de um tempo, ela tornou
outra vez:
“É uma pena, porque essa Sônia que trago comigo também
é da boa. Tenho uma ‘cabecinha’ dela aqui, vai?”
“Não estou interessado em sua Sônia, aliás, em Sônia
alguma.”
Então ela calou-se um instante. Olhei casualmente pra
santa, e como ocorre nesses meus momentos de ócio, divaguei: Não obstante seu
olhar penalizante de mãe, tendo em vista as circunstancias ocasionada pela
ausência de Sônia e, sobretudo pelo lugar, Nossa Senhora, se vocês prestarem
bem atenção nela, possui características que se assemelham muito a uma outra
santa: A Gioconda, de da Vinci. Pelo menos sob o aspecto estético facial, como
por exemplo, seu sorriso doce e acolhedor, ao mesmo tempo, que cínico, sedutor,
introspectivo e maternal. Somado ainda a aura enigmática que envolve tanto uma
quanto a outra. Nossa Senhora e Gioconda: a certeza de uma não anula a
existência da outra. Ambas existiram de
fato em algum período da história. E aqui me refiro tanto no plano material
quanto no plano espiritual. Creio nos dois processos. Como creio em santos e
demônios. Santos e demônios? Então você pergunta daí, em que você fundamenta
sua crença? E eu respondo daqui, crendo no que não é certo. Me afirmo na
incerteza da minha crença. Paradoxal? Até pode ser. Sou um homem deste século e
este é afinal o século das incertezas ABSOLUTAS que porventura irá sedimentar a
fé e mover o universo. Portanto, a dúvida gera a crença. A certeza, a
descrença. Não há nada de novo, eu suponho, no que não estou afirmando, outros
filósofos talvez já tenham esboçado essa teoria. Não quero aqui me comparar a
eles, mas partir da observação dessas duas figuras maternas para chegar à
esfera de Deus. Sendo assim, eu afirmo que a minha descrença NELE é óbvia.
Assim como a minha crença na civilização. Sob esse ângulo inversamente
proporcional, cito Niestche, o qual tolamente matou Deus. Matou algo em que ele
acreditava consubstancialmente achando que, ao sobrepujar a fé do homem este
chegaria à verdade suprema. Este é o
ponto. Não, não, este não é ponto. Não existe ponto algum. (Ahh, isso renderia uma noite inteira na
companhia daquele meu amigo filósofo dos quadrinhos, o da Reinvenção da Pólvora
e das Crônicas de Aluguel), mas ele infelizmente não está aqui. Mas quem
está aqui? Não levem isso a sério! São meras divagações. Sei que ainda brinco
na superfície das ideias, e de algum modo, não alcancei o grau apreciável da
emancipação, postulado por Miller em sua ‘Crucificação Encarnada.’ Não entendeu
coisa alguma, não é leitor? Pois eu também não. Seguimos?
II - DIVAGAÇÕES
Olhei para o lado e a puta não estava mais ali. Cocei
prazerosamente as entranhas dos meus ouvidos e cheirei a cera. Adoro cheirar
cera de ouvido quando ninguém está olhando. É um prazer indescritível e faz-me
sentir organicamente vivo. Escritores têm lá suas manias. Gutierrez, o escritor
cubano, por exemplo, só consegue atingir a plenitude do orgasmo cheirando as
axilas. Genet tinha uma queda violenta por meias sujas e pelo odor azedo que
fica entre os dedos dos pés. Rabelais sofria de abulomania, o Marques de Sade,
de cheirar as próprias flatulências. Sem citar outros tantos. Portanto, meus
queridos, o meu não é de todo estranho assim. Já cheirou cera de ouvido? Vamos,
experimente leitor, agora que ninguém está olhando pra você, vamos, coragem,
leve o indicador até o ouvido direito ( é o meu preferido) e agora gire o dedo
lá dentro bem devagar, iiissooo, assim, bem fundo, gire, gire, feche os olhos e
vá girando girando sem pensar em nada, agora leve o dedo até o seu nariz e
sinta só o prazer indescritível da cera entorpecendo, isso, muito bem. Que
sensação, não é leitor? Mais há ainda quem prefira cheirar o sebo que fica em
volta da base circular do pênis... Mas vamos voltar ao conto? Onde paramos?
III – A VIDA É
UM GRANDE COCOZÃO FAZENDO PA DE DEUX EM UMA LATRINA CHEIA DE MERDA.
Sim. A porta do Pub entreabriu-se novamente e Gerusa foi
quem dessa vez entrou vestindo seu costumeiro traje negro. Parecia mais magra,
abatida, um ar satânico; a pele branca europeizante desbotara um pouco. Tinha
os olhos lânguidos, caídos de bêbada, porém ainda verdes, um verde-lodo. Apesar
do sorriso, parecia de algum modo arruinada por dentro. Arrastava-se pela noite
de Manaus como um fantasma europeu. Corria boatos que ela não largara o
satanismo, apenas havia entrado para uma nova irmandade. Fora por muito tempo
companheira do Garoto. (o nosso velho
Dean Moriarty amazonense - aquele aspirante a escritor que falei bem lá atrás,
lembram? Ah, não foi aqui, foi em outro conto, esqueçam!) Bom, tiveram um
affair diabolizante regado á bebedeiras e drogas pesadas que quase levaram os
dois à morte debaixo dos viadutos da Grande São Paulo, quando por lá estiveram
naquele ano de 2002. Notou-me e veio ao meu encontro:
“Oi Mário! Sabia que ia te encontrar aqui!” Sua voz
rouca e arrastada era quase um sussurro. Olhando bem pra ela, não conseguia
imaginar o quanto ela fora bonita no passado. E quanto ela ainda conservava um
pouco disso. Mas estava acabada. Lembrava-me uma canção triste e soluçante de
jazz do tipo “A FOOGY DAY” Da Billie Holliday.
“Oi Gerusa.”
“Chateado comigo não, né?”
“Por que haveria de estar?”
“Estava muito bêbada da ultima vez.” Referia-se a um
episódio desconcertante de alguns meses atrás naquele pub que aqui não vale
mencionar.
“Me dá um pouco da tua cerveja?” Pedi um copo do
bartender e servi-lhe a cerveja. Na certa estava ali para uma audiência com
Sônia. Pedir-me-ia alguns trocados para a intera e perguntaria sobre o Garoto. Sabia de cor seu itinerário e de
suas investidas:
“Empresta-me dois reais, Mário?” Emprestei-lhe os dois
reais. Mais uma que daria com os burros n´água.
“E Miguel? Continua escrevendo?” Perguntou acendendo
seu cigarro. Suas mãos engelhadas lembravam as patas de uma tartaruga.
“Sim. Terminou seu livro: “Saltos Ornamentais no
Escuro.”
“Mas não se chamava “Porca Prenha?”
“Ele mudou o título. Disse que estava desgastante.”
“Miguel é louco.”
“Todos nós somos.” Rimos.
“E você? O que anda escrevendo?”
“Finalmente vou publicar “O Homem com uma Abertura na
Testa”. É uma novela. E estou escrevendo um outro livro. Um de contos. Ainda
não tenho o título”.
“Por que não escreve sobre a minha vida? Tenho uma
vida muito louca.”
“Quem sabe um dia não escrevo algo sobre você. Sobre o
Miguel.” Ela ficou calada um pouco e depois disse:
“Fui jubilada, Mário. Dessa vez foi pra valer.”
“Acho que também serei jubilado. Um brinde a nossa
jubilação.” Propus.
“Engraçado. Nunca passei pela dor da jubilação. Nunca
imaginei. Acho que até merecia.
“E será que existe alguma dor? Talvez seja até um
alívio”.
“É, talvez seja mesmo. Ficou sabendo da minha aparição
na televisão? No programa daqueles irmãos otários?”
“Não, não fiquei.”
“Ainda bem.” Risos dela.
“O que houve?” Virei-me pra ela. Ainda possuía os
lábios vermelhos e carnudos. Gerusa era sem dúvida uma mistura exótica do
europeu com o caboclo.
“Foi numa dessas madrugadas. Fui fumar um com um
figura num desses casarões abandonados na Joaquim
Nabuco, já ali bem pra perto da Igreja dos Remédios. Nem bem havíamos
fumado o terceiro quando a policia chegou e invadiu o lugar. O figura que
estava comigo conseguiu se safar, enquanto que eu fiquei lá, acuada, chapadona,
sem poder mexer minhas pernas. Um deles meteu uma luz forte na minha cara. Eram
da televisão. Porra é foda! Uma sensação escrota. Fizeram eu falar até o que eu
não sabia. Não sabia se ria ou se chorava.
“Mas isto é uma sacanagem. Violação de imagem é
inconstitucional.”
“E o que não é inconstitucional nesse país?” Tomei uma
golada considerada da minha cerveja, cocei minhas têmporas e disse: “São uns
filhas das putas!”
“São sim, Mário. Eles montam o circo e você dança.”
“A vida é um
circo...”
“A vida é um grande cocozão fazendo Pa de Deux numa latrina cheia de merda.
É isso que a vida é.” Desabafou de maneira brilhante. Refleti sobre o que ela
disse.
“E como acabou esse circo?”
“Fiquei detida a madrugada toda. Lá pelas sete da
manhã, me liberaram.”
IV - PIEDADE
Gerusa ainda ficou ali bebendo um tempo comigo e
depois foi fazer sua missão, desaparecendo nos intestinos do bar. Aproveitei a
ocasião e fui ao banheiro. Atravessei um corredor estreito e penumbroso,
cercado de quartinhos vagabundos de ambos os lados. Um deles estava aberto e eu
olhei de relance para dentro dele: um cara chupava o pau do outro cara em troca
de um pouco de Sônia. Desviei meus olhos enojado. Do lado de fora, ao longo do
corredor haviam umas mesinhas coladas à parede onde algumas poucas almas bebiam
solitariamente com seus rostos afogados de fissura e desespero. No banheiro
urinei como um príncipe, sem aporrinhações, na volta, porém, senti uma mão fria
e pontiaguda me puxar violentamente para dentro do quarto. Olhei e era a boca do abismo. Passou a tranca na
porta, sorriu para mim e me presenteou o pó. Não tive alternativa. Senti-me
tentado. Dei uma cafungada de um lado do nariz e depois do outro e novamente
aquela sensação estranha e prazerosa de estrelas explodindo; o pó aos
pouquinhos se dissolvendo corrosivamente dentro do meu corpo e da minha mente.
Sentei vertiginosamente à beira da cama e sorrindo abestalhado, olhei para a boca do abismo. Ela chupava o meu pau
enquanto me dizia: “Meu filho, a vida é um trapézio!” Meu pau entrando e saindo
de dentro de sua boca lisa. Era como se
eu fodesse mesmo um imenso buraco negro e vazio. Agarrei-lhe com força seus
cabelos desgrenhados e disse-lhe:
“Como é teu nome, sua puta velha do caralho?”
“Piedade”. Houve então uma batida forte na porta, seguida
de outra mais forte ainda que me fez saltar da cama. Na terceira, a porta
abriu-se na marra e um gorilão mal encarado invadiu o quarto e foi cobrindo a
mulher com tapas e pescoções. Ele estava atrás de Sônia e estava furioso:
“Sua filha da puta! Sua vadia!” Ele esmurrava pra
valer a boca dela. O último dente dela pulou. Entendi porque sua boca era um
abismo negro. Escapuli dali antes que sobrasse pra mim. Lá fora, tudo parecia
normal. De volta ao balcão, ainda muito nervoso, as mãos tremendo, tomei a
última cerveja, olhei pra Santa pendurada na parede, paguei a cerveja e cai
fora daquele pub nojentinho. Lá fora, olhei a rua deserta. Àquela hora da
noite, já não tinha tanta certeza para aonde ir...